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março 15, 2010
Da memória à memória, ou entre marca e esquecimento por Alessandra Monachesi Ribeiro
Da memória à memória, ou entre marca e esquecimento – divagações a partir da exposição Monumenta 2010 / Personnes de Christian Boltanski no Grand Palais, em Paris.
Lá estou eu, perdida no Grand Palais.
O Grand Palais é uma construção feita para uma feira mundial dos idos de 1900, toda em vidro e ferro retorcido. Muitos franceses acham-na horrorosa, mas não. Para mim, é maravilhosa, monumental, digna da grandeza e da delicadeza arquitetônica dessa cidade.
Os semi-círculos verdes se repetem entre cada coluna que ladeia um imenso hall vazio. Ou nem tanto, já que no verão deve ficar repleto de luz e de azul de uma beleza insuportável que chega até a doer, como eu mesma já pude constatar numa tarde ensolarada de começo de outono. O Grand Palais não é fácil com o que quer que se ponha lá dentro.
Então Christian Boltanski coloca, logo na entrada, uma parede de caixas de ferro numeradas, iluminadas e enferrujadas pelo tempo. A passagem do tempo e essa parede silenciosa a nos lembrar dela de maneira irrevogável. Cada número uma pessoa, uma pessoa que passou por ali mas, por onde ?
A parede impede que o olhar descubra o imenso hall do Grand Palais logo de cara e, quando isso acontece, é um choque. Boltanski adora brincar com o espaço e nos enredar de imediato em seu ambiente. A parede de cores quentes e luz quente e melancólica que ainda nos parecia próxima dá lugar a uma imensidão… de roupas. Roupas espalhadas pelo chão compondo indistintamente quadrados de roupas cercadas por postes de métal e iluminadas por uma luz baixa e fria. Boltanski é esperto : fossem apenas todas as roupas espalhadas pela imensidão do Grand Palais e não haveria quem agüentasse. Quadrados de roupas cercados e seriados por luzes frias… não chega a ser um deleite, mas é uma dor suportável.
As cores se perdem no excesso de cada uma delas e tornam-se uma massaroca pálida e indistinta. Nem o vermelho, nem o laranja, nem o amarelo ajudam. A luz invernal adentrando todo o telhado do Grand Palais e suas colunas esverdeadas e a luz fria seriando cada quadrado de roupas estendidas no chão gelam o ambiente, pesam com o doloroso peso das memórias esse lugar tão leve.
Impossível não lembrar das fotos feitas nos campos de concentração, das montanhas de roupas empilhadas, das pessoas que deixaram de existir e rechear essas roupas. Não se trata de uma referência direta, mas a memória coletiva inundada dessas imagens não consegue evitar a alusão. Ainda mais sendo Boltanski, ainda mais sendo um judeu, ainda mais sendo em Paris, na França, em tempos de recrudescimento de uma xenofobia que não foi enterrada ou esquecida, mas ficou ali de lado, cozinhando e ganhando corpo, até estar a ponto de explodir, como parece ser o caso nos dias atuais. A memória das coisas não nos ensinou nada.
As roupas de Boltanski estendidas no chão são todas de inverno. Casacos, malhas, blusas. Deveria ser tão quentinho e, no entanto…
No fundo do hall uma pilha gigantesca de roupas e um guindaste que, incessantemente, retira algumas roupas da pilha, suspendendo-as bem alto para, em seguida, soltá-las. Na realidade, isso se vê antes ou junto com os quadrados de roupas no chão, logo que o muro de caixinhas numeradas revela a imensidão desolada daquele hall. O guindaste enorme e maquínico que retira e devolve aquelas roupas. Elas vão e voltam a compor aquela massaroca, uma indistinção de cores, de gente, de histórias. Algo sai dali apenas para voltar no instante seguinte. Não vai para algum outro lugar, não se destaca, nunca difere.
Um som de fundo grave como um tambor ecoa por toda a imensidão do Grand Palais e, frente a cada quadrado de roupa estendida, o som de um coração batendo. Sim, o som de um coração batendo como em um ecocardiograma, cada coração batendo de um jeito, em um ritmo, mas muitas batidas de coração. Heartbeat.
Na exposição elles@centrepompidou, a respeito da qual divaguei recentemente noutro texto aqui neste Canal, Nan Goldin fez sua versão de Heartbeat : fotos desfilando como diaporama ao som de Björk cantando Prayer of the heart de John Tavener em uma Clara alusão à sacralidade do amor. Ali, pessoas insignificantes e cotidianas, casais, permitem à lente de Nan Goldin o convívio com suas intimidades. Cenas bannais, gestos, detalhes. Cenas de carinho, de amor, de desejo. A luz quente que destaca cada banalidade como algo extremamente significativo na vida de uma pessoa. O heartbeat de Nan Goldin é quente, cheio de desejo, torna cada sujeito especial em se user mais comum.
Christian Boltanski, em Personnes, é como o oposto de Heartbeat. As pessoas de Boltanski se perdem umas em meio às outras. Elas se dissolvem até não sobrar mais o que as distingue, o que as faça terem existido. Um coração, uma roupa, uma luz, um calor, um amor… tudo se perde na passagem do tempo e na opacidade da memória tão frágil, tão vulnerável, que tudo registra para logo em seguida esquecer. As pessoas de Boltanski não são nada.
Curioso como ele sempre trata disso, da memória frágil frente à passagem do tempo que a carrega consigo. Tente agrupar todas as listas telefônicas do mundo inteiro de um determinado ano, como ele fez na instalação permanente do Musée d’art moderne de la ville de Paris, e logo se vê que esse destaque, esse registro trabalham contra eles mesmos. O que é destacado se desfaz no caldo de seu proprio contorno. Tente juntar todas as roupas de crianças de uma dada referência, ou as fotos de pessoas em determinada situação. Estão todas ali, alguém as guardou, as salvou do esquecimento, as transformou em obra de arte mas, em seguida, em sua profusão é para que ninguém as veja, é para que sejam apenas sua ausência, a inescapabilidade de sua ausência. O tempo passou, elas se foram, as marcas do artista ajudaram a garantir sua desaparição. Boltanski é quase uma encarnação do arquivo de Derrida que trabalha contra e por sua própria extinção. Um jogo contra a morte que a torna presente de um jeito inevitável. Não sua evitação, mas sua presença como ruído de fundo constante, coração que bate de quem já morreu, presença que mostra a ausência. A perpetuação proposta nos trabalhos de Boltanski de tudo o que é banal e comum serve para fazer desaparecer.
Nan Goldin destacou um a um, de um jeito que não há como desaparecer. Como diria Lacan sobre a mulher, que se diz uma a uma. Ou sobra a singularidade do sintoma, o sintoma sendo a singularidade do sujeito. O um a um de Nan Goldin é um em relação ao outro, um para o outro, cada um para alguém que soube que ele existiu, para quem esse alguém fez indelevelmente marca. Será essa a única maneira de não desaparecer ? Será que permanecer depende do outro, de um a um ?
Alessandra Monachesi Ribeiro – psicanalista, doutoranda na área de arte e psicanálise pelo Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ com estágio doutoral no Centre de Recherches en Psychanalyse et Médicine da Université de Paris VII e bolsa de estudos da CAPES.