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novembro 26, 2009

A mediação como compartilhamento por Diogo de Moraes


“A partilha democrática do sensível faz do trabalhador um ser duplo. Ela tira o artesão
do “seu” lugar, o espaço doméstico do trabalho, e lhe dá o “tempo” de estar no
espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante.”

Jacques Rancière - A partilha do sensível


Ao receber o convite para escrever este artigo, me pus a pensar nos diversos contextos, situações e circunstâncias em que a mediação pode ser realizada. Em princípio, o convite trazia como sugestão o desenvolvimento de uma abordagem pelo viés da arte-educação, designação representativa das práticas educativas acerca da produção e fruição das artes visuais. No entanto, certo de sua abrangência e versatilidade, optei por considerar a prática mediadora em uma perspectiva ampliada, evitando concentrá-la em um campo ou exemplo específico.

Neste sentido, dedicarei minhas ponderações à tentativa de indicar algumas direções a este tipo de atuação, na medida em que se mostrem (ou não) substanciais. Já de saída, destaco a seguinte pressuposição: levando em conta determinados aspectos da contemporaneidade – globalização, fluxos migratórios, circulação ininterrupta de informações e bens de consumo, conflitos civis e militares, multiplicação dos meios de comunicação, fragmentação da família e super-povoação das cidades – a figura do mediador surge como elemento chave nos processos de intercâmbio cultural e compartilhamento de saberes, contribuindo para a dinamização e incremento das interações sociais.

A opção por espraiar a reflexão revela uma indisposição em tratar a mediação como disciplina do saber, associada a um gênero artístico, como é o caso da arte-educação. Parece-me mais produtivo considerá-la como não-disciplina, sem lugar discursivo definido, desprovida de “caixa de ferramentas” teórico-prática e/ ou repertório próprio, justamente por ela, enquanto procedimento interativo volúvel e influenciável, de negociação permanente, posicionar-se e desenvolver-se em zonas intermediárias, de traçado impreciso: entre as coisas, os saberes e as pessoas. Talvez esta identidade difusa, circunstancial, seja justamente o seu principal trunfo.

Ademais, este desvio em relação à sua afirmação como ramo do conhecimento tende a potencializar e ampliar a performance mediadora naquilo que ela tem como proposta: intervir para promover relações significativas entre sujeitos e entre sujeitos e objetos, o que não corresponde a uma suposta anulação de conflitos, incomunicabilidades, desinteresses, antipatias e insucessos. Ao abdicar de estratégias pré-concebidas, o mediador, antes de mais nada, tem de assumir e cultivar uma atitude perscrutadora, de escuta, sustentando as dúvidas em lugar de rechaçá-las, buscando perceber os indivíduos e elementos do processo no meio do qual ele se coloca e atua, como agenciador, para aí sim proceder sua abordagem.

A plataforma (momentânea) em que o mediador atua, por não estar definida de antemão, é formada em tempo real, com os elementos presentes e suas respectivas contribuições, durante a interação com os sujeitos e os objetos em questão. Sua composição, para evocarmos um exemplo, assemelha-se muito mais a um círculo à altura do chão, formado pela posição dos corpos e dos objetos, do que a uma edificação elevada, alicerçada por estruturas e metodologias. Assim, corresponde muito mais a um agrupamento de pessoas do que a uma aula no sentido tradicional do termo, cujo formato costuma condicionar a (não)participação dos pseudo-interlocutores. A plataforma rasteira (na melhor acepção da palavra) e efêmera da mediação, ao agregar e dinamizar os interesses e vozes das partes envolvidas, tem o potencial de funcionar como lugar de encontro.

É neste lugar temporário que o mediador, consciente de sua posição medianeira e distante de qualquer neutralidade, busca estimular e articular os anseios, repertórios, códigos e inquietações dos sujeitos em suas relações entre si e em suas interações com os objetos. Atento aos equívocos provocados pelo apriorismo das fórmulas e pelas generalizações, o mediador procura “trazer para a roda” as linguagens, desejos e visões de mundo dos indivíduos que, necessariamente, pertencem a grupos sociais, gerações, culturas, camadas sócio-econômicas, regiões geográficas, credos e gêneros específicos, assim como ele. Portanto, os recursos que compõem a plataforma mencionada irão, inevitavelmente, surgindo aos poucos, ao longo da conversa, produzindo tanto entrelaçamentos como entrechoques.

Quanto aos ‘objetos’, trata-se de uma categoria abrangente, podendo incluir conjuntos como: saberes, manifestações culturais, produções artísticas, tradições, fenômenos sociais e naturais, coisas, vocabulários, locais, elementos da natureza, ou seja, tudo aquilo que faz parte dos universos material e imaterial, histórico e conceitual, passível de análise, interpretação e rearranjo. O mediador transita por este incomensurável cosmos de referências, exercitando sua capacidade de estabelecer recortes e verticalizações em campos e temas do seu interesse, desenvolvendo, a cada plataforma de mediação vivenciada, formas de aproximação e diálogo entre os indivíduos e entre estes e os objetos. Evidente que se mostrará mais apto para realizar mediações acerca de determinados assuntos em detrimento de outros, que não façam parte da sua gama de interesses. Mas o que importa, neste caso, é ressaltar que o mediador aqui delineado não é um especialista neste ou naquele assunto. Mesmo quando se dedica às filigranas de alguma área do conhecimento ou fenômeno, nunca perde de vista as zonas de fronteira e intersecção entre os saberes. Aliás, como já foi dito, é lá que ele costuma atuar. É lá que agencia os lugares de encontro, a tal plataforma em círculo.

Alinhavando estes modos de perceber os sujeitos e os objetos com os quais interage, o mediador é um atento observador das dinâmicas interpessoais, e também um propositor neste terreno. Por este motivo, as noções de identidade/alteridade, reciprocidade, negociação, deslocamento, recombinação, flexibilidade, plasticidade, reconhecimento (em vez de tolerância) e ressignificação lhe são muito caras, visto que contribuem para o agenciamento de experiências coletivas constituídas pelos meios disponibilizados pelo próprio grupo e pelas características dos objetos. Desta forma, o mediador privilegia o instante da interação, o compartilhamento ali em jogo.

Permeada por diálogos, opiniões, olhares, discordâncias, análises, movimentos dos corpos, réplicas, ruídos, dúvidas, tonalidades das vozes, descobertas, interpretações, nebulosidades, acordos e divergências, esta experiência adquire um valor em si, distanciando-se da perspectiva utilitarista e instrumental, que tenderia a subjugá-la à condição de simples meio de transmissão e aquisição de informações e explicações.

Norteado pelo que podemos chamar de ética da compartilha, o mediador procura deflagrar situações em que os indivíduos envolvidos tomem parte como representantes de si e porta vozes de seus pontos de vista, participando de maneira efetiva e particular das discussões em pauta, de modo a expor e cotejar suas opiniões. Com isso, não sobraria espaço para uma indesejável monopolização (e hierarquização) da fala que, em lugar disso, passaria a projetar-se e repercutir de maneira distribuída, no plural. Os movimentos de distribuição e deslocamento dão o tom da dinâmica que, entre outras coisas, proporciona momentos de alternância entre os interlocutores, convidando-os a se escutar, deslocando-se de seus lugares, saindo um pouco de si, para considerar e buscar compreender o outro e interpretar os objetos.

Para finalizar, sugiro que o leitor assista (se já não o fez) ao recente filme Entre os muros da escola, dirigido pelo francês Laurent Cantet. Pode ser produtiva a confrontação das idéias levantadas no presente texto com as situações apresentadas pelo filme.


Sobre Diogo de Moraes
Diogo de Moraes é mediador, artista visual e, atualmente, técnico de programação cultural no SESC Santo André. Licenciado em Artes Visuais pelo Unicentro Belas Artes de São Paulo.

Instituições culturais em que atuou como mediador de exposições: Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu Lasar Segall, Itaú Cultural e Paço das Artes.

Instituições culturais e galerias onde já expôs sua produção artística: Centro Cultural São Paulo, Funarte Rio de Janeiro, Museu Murillo La Greca, Museu Victor Meirelles. Museu de Arte de Ribeirão Preto, Galeria Vermelho, Galeria Virgilio, entre outras.

Leia tembém o texto: O que esperar de um educador, por Leandro Ferre Caetano

Posted by Marília Sales at 1:07 PM | Comentários(4)
Comments

Diogo,

Muito profícua e necessária a reflexão. Comentaria muitas coisas num ambiente menos formal,'um pouco acima do chão'(Soa incrível aqui esse formal? O tom do discurso (o)chancela...). Aproximo a figura do mediador que vc situa neste texto aos meus estudos, dos fins dos 80, sobre política cultural e ação cultural e à figura do agente cultural(uma das referências: Dicionário Crítico de Políticas Culturais-Cultura e Imaginário, do Teixeira Coelho et al). Na ocasião, me encantei ao descobrir a antropologia do imaginário, que forneceu a base aos estudos sobre arte e cultura e com o papel do mediador, no caso, do agente cultural,independente do fator arte-educação, sorry. O tal agente se apresentava mais que um mediador ( e isto também pude apreciar na prática), mas um provocador de imersões, em que uma inesperada expressão de singularidades, de um olhar de uma outra forma, de sujeitos bio-ético-culturais,cuja atitude autônoma (anômica?)teria sido engendrada no âmbito da criação e da imaginação(ver Nelson Levy, O Princípio da Liberdade,in O Desejo, org Adauto Novaes). Para bons entendedores, tudo a ver com arte.Bem, mas esta pode ser uma longa (infinita) conversa.Muito prazerosa, meu amigo.

Posted by: beth brait alvim at novembro 28, 2009 2:47 PM

achei muito bom o texto diogo, apesar de não ver aplicada a praxis pretendida de "consciente de sua posição medianeira e distante de qualquer neutralidade " (que adorei) na própria fatura do texto. um outro problema, que vc aponta com muita inteligência, na educação em geral, é a ausência de um objeto, levando o mediador a um ponto de superioridade ao meu ver, logocêntrico e, portanto, etnocêntrico etc. mas isso é minha opinião, é lógico. sou contra a pedagogia e continuo procurando os meios de varre-la para baixo do tapete dos bons hábitos como a estética foi varrida (ainda bem) da arte contemporânea.
um abraço e parabéns

Posted by: rafael at novembro 30, 2009 10:02 AM

Olá, querido! Muito bom o texto! A mediação é algo que também me interessa muito, mas nesse caso, voltada sim, à arte-educação e precisamente com as camadas sociais menos favorecidas. Concordo com a Beth que é um assunto que daria horas infintas de conversa, reflexão, atuação... Beijos!

Posted by: Kelly Teixeira at dezembro 7, 2009 2:56 PM

um beijo por este compartilhamento!
chuac!

Posted by: Adriana Aguiar at maio 16, 2010 10:50 PM
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