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novembro 17, 2009
Auto-Referência em Abismo por Ricardo Perufo Mello
Uma reflexão sobre alguns trabalhos da mostra Projetáveis
Ele costumava fazer longos passeios a pé na cidade à noite. Aquele fragmento latente de idéia parecia escapar toda vez. Algo tinha a intenção de ser concebido, mas não se anunciava de maneira óbvia ou fácil.
Idéias pedem para se tornar projetos ou esboços. Matrizes mentais são (mas, é importante dizer, não somente elas) responsáveis pela constituição final a que temos acesso em trabalhos de artes. Constituição que, na exposição aqui considerada, raramente é física, uma vez que prima por imagens e sons intangíveis.
Com efeito, os trabalhos que encontramos na mostra Projetáveis da 7ª Bienal do Mercosul incitam de modo mais enfático essas condições particulares de constituição. Aqui expressa pelas palavras projeto e projeção, circunscritas pelo curador Roberto Jacoby para determinar o conceito curatorial dessa mostra. Nesse sentido podemos considerar igualmente a noção de matriz, para aproximarmo-nos do que parece representar a semântica de tais palavras para os artistas participantes dessa exposição – e, por conseqüência, quais as implicações que isto determinou para alguns dos trabalhos que hoje lá estão.
Uma matriz na técnica de xilogravura representa o trabalho resultante do esforço pessoal e direto do artista sobre um pedaço de madeira e possibilita a reprodução da imagem ali escavada numa série limitada e numerada. Uma matriz é algo como o projeto de uma ou mais séries de impressões entintadas em papel. Uma matriz é o resultado do acúmulo de idéias mais as ações que o artista elabora numa etapa anterior, num estágio de pré-finalização do trabalho. Uma etapa matricial.
Essa idéia ampliada de matriz que estamos procurando aqui traçar se assemelha às questões processuais que Marcel Duchamp pondera no texto intitulado “O Ato Criador”:
No ato criador, o artista passa da intenção à realização, através de uma cadeia de reações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma série de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes, pelo menos no plano estético.
O resultado deste conflito é uma diferença entre a intenção e a sua realização, uma diferença de que o artista não tem consciência. (2004, p.73)
A noção da existência, e mais ainda, da importância, do que aqui chamamos de etapa matricial pode ser reveladora do direcionamento seguido (e evidenciado) por esses artistas. Os trabalhos da mostra Projetáveis pressupõem – ou intencionam – um menor distanciamento entre as suas matrizes (suas etapas matriciais) e o que poderíamos comumente esperar em relação às apresentações acabadas dos meios em que se inserem 1 . Em especial os trabalhos comentados abaixo.
Os trabalhos intitulados Moonwalk e Virtual Redundandy (de Martin Kohout e Paul Matosic respectivamente) exemplificam isto quase que literalmente. Uma barra de marcação do tempo transcorrido em um determinado vídeo, oriunda do site de vídeos on-line You Tube, marca o tempo de outra barra, que por sua vez marca o tempo de outra, e assim por diante constituindo uma sequência ao infinito. O sistema refere-se continua e permanentemente a si mesmo. Uma grande placa de vidro negro reflete a imagem dessa projeção e multiplica essa auto-referência em abismo.
De maneira similar, no trabalho de Matosic, encontramos peças e pedaços de computadores desmontados (esses ao longo do tempo da exposição continuamente substituídos e repostos por outros), e ao lado – na projeção – vemos o próprio artista desmontando computadores e periféricos no vídeo que é projetado no chão. O artista admite em seus trabalhos uma relação com o fascínio infantil existente em relação ao mecanismo e construção das coisas, ele age ali de maneira similar a uma criança que, ao desmontar um brinquedo, busca conhecer mais intimamente o mundo que a ela se apresenta.
Past Participle de Shirin Sabahi projeta na parede slides fotográficos com imagens oriundas de um arquivo de fotos que data da década de 30. Sua escolha de usar esse meio específico de projeção compactua-se com o anacronismo inerente às imagens (anacronismo que aqui é intensificado pelas mídias empregadas nos outros trabalhos da mostra). Trata-se de uma proposta que busca explorar um caminho oposto ao fluxo midiático no qual estamos imersos, que constitui um “universo da sobreexposição e da obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao extremo” (Peixoto, 1988: 361). Os aspectos de simplicidade e quietude contidos na montagem do trabalho reverberam igualmente naquilo que é visto nas três projeções: um transeunte francês cuja única ação é a de caminhar gradualmente em direção à câmera. A montagem também promove um processo de auto-referência uma vez que a altura em que as projeções foram dispostas coincide fisicamente com o ato de caminhar do próprio espectador da mostra.
Além de Past Participle, o trabalho intitulado drawing for Filó de Oto Hudec resgata também uma técnica muito simples – quase naif, apesar de lançar mão de duas projeções digitais. Numa delas, Hudec desenha e pinta as experiências de vida que são relatadas simultaneamente em uma entrevista com Filó na outra projeção. Filó é uma mulher de origem angolana que vive agora em Porto, Portugal. Suas lembranças de anos atrás são tão maleáveis e livres em relação à realidade quanto a pintura executada de modo bastante gestual pelo artista. A fotografia, comumente considerada como a reprodução perfeita daquilo que experenciamos anteriormente, sempre foi um veículo insuficiente para a memória, que não corresponde à precisão do meio fotográfico. Alison Gingeras afirma que “a imagem pintada, com sua sensibilidade material, tatibilidade e possibilidades atmosféricas, corresponde melhor à imprecisão das funções mnemônicas do cérebro humano” 2 (Gingeras, 2009).
Já o trabalho do Coletivo C.D.M. (Centro de Desintoxicação Midiática), que se constitui de uma série de vinhetas sonoras que podemos escutar nas duas escadarias do prédio do Santander Cultural, recorre igualmente a um anacronismo, uma vez que remete às antigas rádios AM. Um locutor fala algumas frases (em português e espanhol) retiradas dos diários (Cage, 1985) do artista, músico e compositor americano John Cage, enquanto sua voz é acompanhada por músicas populares do Brasil e de diversos países da América Latina. Novamente, a projeção (nesse caso, sonora) se auto-referencia, pois o que é lido é da autoria de outrem, e as músicas instauram uma situação radiofônica que é na verdade particular a uma ferramenta de comunicação de abrangência popular (a rádio AM).
Assim, os trabalhos do recorte aqui analisado empreendem uma manipulação de determinadas linguagens das quais se utilizam na via contrária da que usualmente é seguida nos meios de comunicação e informação. Os artistas aqui citados fazem com que os sistemas das ferramentas com que trabalham retornem a si mesmas, seja através de uma auto-referência direta e/ou através de apropriações de fragmentos que instauram diálogos nas diferentes projeções com situações que os colocam em um contraponto mútuo semântico constante.
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1 Uma obra de arte que deixa aparente – das mais diversas formas possíveis – o seu próprio fazer é uma situação que, segundo o teórico Alberto Tassinari no livro “O Espaço Moderno”, começou a ser trazida a tona pelos artistas num processo que teve início no movimento do Impressionismo e que culminou no que em história da arte se convencionou chamar de Modernismo. Ou, como atesta Tassinari: “o espaço moderno, mais que um espaço de colagem ou um espaço manuseável, é um espaço em obra, assim como é dito de uma casa em construção que ela está em obras.” (2001, p. 48)
2 Livre tradução do autor.
Referências Bibliográficas
CAGE, JOHN. John Cage: De segunda a um ano. Introdução e revisão da tradução de Rogério
Duprat, São Paulo: Hucitec,1985.
DUCHAMP, Marcel. “O Ato Criador” In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
GINGERAS, Alison M. “The mnemonic function of the painted image”, salvo de
http://www.saatchi-gallery.co.uk/current/essays.htm
Último acesso em 01/11/2009.
PEIXOTO, Nelson Brissac. “O olhar do estrangeiro”. In: NOVAES, Adauto
(Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
TASSINARI, Alberto. O Espaço Moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Sobre Ricardo Perufo Mello
Ricardo Perufo Mello é doutorando em Artes Visuais / Poéticas Visuais pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do IA/UFRGS, orientado pela Prof.ª Drª. Icléia Cattani. Atua como docente de terceiro grau, na área de pintura, no Instituto de Arte e Design da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Foi selecionado pelo programa Rumos Artes Visuais 2008/2009 do Instituto Itaú Cultural e ganhou uma Menção Especial no 59º Salão Paranaense do MAC/PR em dezembro de 2002.
Serviço:
Mostra Projetáveis - 7ª Bienal do Mercosul
Santander Cultural
Rua Sete de Setembro, 1028, Praça da Alfândega, Porto Alegre - RS
51-3287.5718 ou imprensa@bienalmercosul.art.br
www.santandercultural.com.br
Terça a domingo, das 9h às 21h
Entrada franca