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maio 27, 2009
O documentar e as estéticas digitais por Ananda Carvalho
Sobre a exposição Demasiada Presença
ANANDA CARVALHO
especial para o Canal Contemporâneo
A vivência cotidiana com as tecnologias possibilita aproximar o documentário com a mobile arte, a netarte e a instalação. Esses três formatos estão presentes na exposição Demasiada Presença, com curadoria de Christine Mello, na Escola São Paulo até 30 de maio. A exposição apresenta os trabalhos Casa Aberta (Claudio Bueno), Subindo a Torre Eiffel (Denise Agassi) e Panorâmicas Contidas (Lucas Bambozzi).
As confluências entre videoarte e documentário já são encontradas na programação das últimas edições do Festival de arte eletrônica Videobrasil e nos trabalhos de artistas consolidados como Cao Guimarães, Maurício Dias e Walter Riedweg, entre outros. Considerando as relações e as ações humanas no viver tecnológico, pode-se observar configurações da documentação, do documento e do documentar contemporâneo. Procuro repensar esses conceitos a partir de algumas questões que permeiam as estéticas digitais: o “ao vivo”, a interação móbile, os bancos de dados e a reinterpretação do cotidiano.
A documentação e a estética do “ao vivo” e da interação mobile
Claudio Bueno convida os espectadores da exposição a visitarem “virtualmente” sua casa. Na sala de visitas foi colocada uma webcam que transmite em tempo real para a Escola São Paulo o espaço em que está a sua televisão. O visitante, através de ligações de celular, pode ligar, desligar ou trocar os canais da TV. Essa possibilidade de ação e de escolha faz com que o espectador torne-se um interator. Priscila Arantes retoma Peter Weibel para observar que “obra/mundo/espaço só se manifesta na medida mesma de sua inter-relação com o interator/observador/sujeito: ambos fazem parte de um mesmo sistema, de um mesmo conjunto de inter-relações como diria Vilém Flusser” (Sobre esse tema leia também o texto Fronteiras Líquidas: o artista construtor de espaços-afetos por Priscila Arantes).
Enquanto os programas de televisão convidam o espectador a escolher alternativas a partir de ligações telefônicas, Claudio Bueno desloca o personagem principal. O objeto de interação de Casa Aberta é o aparelho eletrônico e não o conteúdo de uma programação. Do mesmo modo, o foco da câmera também privilegia o objeto, e não o que acontece na casa. Aliás, a sala está quase sempre vazia. A presença, que Christine Mello observa no texto curatorial, está no meio eletrônico, nas transmissões e nas ações do interator. São essas questões que são exibidas no espaço expositivo. Através de um monitor, o visitante pode observar uma documentação efêmera que dura apenas o instante de visualização, que não é arquivada, assim como os diversos arquivos perdidos e esquecidos em meio aos excessos na sociedade da informação. O objeto de documentação seria como algo ordinário, numa espera do por vir, do acontecer... que não chega.
O acontecer também não depende do artista, apesar dele estar exibindo o espaço pessoal da sua casa. O vazio da sala convida à participação e o acontecer depende de um outro, do visitante da exposição. As relações entre o eu (o realizador) e o outro (o documentado) são uma das principais questões do documentário. Mas, no trabalho de Claudio, esse outro é ampliado, transformado. E ainda, esse outro pode ser caracterizado pela ação: de interagir e transmitir.
A transmissão ao vivo evidencia sobreposições de transmissões: a transmissão broadcasting da TV, a transmissão da webcam via internet, a transmissão de dados do celular. Ao relacionar tudo isso com o espaço privado, Claudio ressalta como estamos conectados de diversas maneiras ao longo das 24 horas do dia. A opção de mostrar o que acontece agora reflete uma estética do acaso, do cotidiano, do banal. E nesse tempo todo, o que transmitimos? O que é documentado? E o que deve-se documentar?
O documento e a estética dos bancos de dados
Denise Agassi cria uma netarte que busca vídeos no youtube a partir de uma lista de tags que tematizam a subida à Torre Eiffel em diversas línguas. O resultado é uma edição em tempo real de um vídeo que pode mudar o tempo todo de acordo com o que é postado na web. Os arquivos online tornam-se matéria prima para edição do trabalho, estética que também aparece em youTAG de Lucas Bambozzi exibido no último Emoção art.ficial no Itaú Cultural.
Denise parte de uma “imposição” contemporânea em que uma viagem, ou qualquer vivência, só é válida se for fotografada, filmada e postada na web. O turista precisa registrar essa espécie de “conquista” de visitar um monumento. Subindo a Torre Eiffel, exibido em três monitores justapostos na vertical (a referência ao formato de torre é instantânea), evidencia que vídeos realizados por diferentes pessoas de diferentes nacionalidades apresentam uma perspectiva semelhante da mesma experiência. Entretanto, se por um lado, são exibidos vídeos que apresentam conteúdos homogêneos, por outro lado aparecem imagens que não se relacionam diretamente com os temas propostos.
Esse conflito trás uma outra questão, a indexação online e a nomeação das tags. As tags explicitam escolhas permeadas pela subjetividade de cada usuário. Desse modo, as tags materializam uma perspectiva que sempre esteve escondida por trás do conceito de documento. O documento, do latim documentum, significa, segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, "título ou diploma que serve de prova, declaração escrita para servir de prova". Essa definição, que permeou a história do documentário, foi questionada por alguns realizadores do século passado e ganhou fôlego com a produção documental contemporânea. Entretanto, a relação de veracidade com o documento permanece implícita no imaginário cultural.
Retomo o historiador Jacques Le Goff, que defende que o documento deve ser entendido como um monumento, ou seja, explicita questões sociais, culturais e, neste caso, pessoais. As tags e suas respectivas subjetividades de nomeação nos chamam a atenção para a memória construída. Pensando tudo isso, tomo emprestado as palavras que Lucas Bambozzi usa para apresentar o projeto YouTAG: "Em tempo de tags, metatags e indexadores de busca, o quê é o nome da 'coisa' e o quê é o nome possível da representação da 'coisa'?" Então, me pergunto: o que seriam documentos?
O documentar e a estética de reinterpretação do cotidiano
Lucas Bambozzi apresenta uma instalação com fotografias e vídeos panorâmicos feitas por câmera de celular. As imagens panorâmicas são obtidas a partir de um software simples instalado no aparelho. E os vídeos são as mesmas fotos com outro efeito simples, desta vez de software de edição, que simula um movimento horizontal.
Panorâmicas são formatos de imagens que são tradicionalmente associadas a paisagens e ao extraordinário. Entretanto, os alvos da câmera de Lucas são lugares fechados em situações banais e cotidianas: restaurante, metrô, salas de espera, etc. Neste trabalho, assim como no de Claudio Bueno, opera-se com a inversão do dispositivo. São produzidos significados a partir do que não é esperado do uso habitual das máquinas. Ou seja, não espera-se que fotografias panorâmicas sejam captadas através do celular, e muito menos, que enfoquem ambientes fechados.
As pequenas imagens exibidas em conjunto na instalação são, segundo Lucas, "frestas, ambientes privados fora de seus domínios". E o artista, ressalta que nossa visão não alcança mais toda a panorâmica, elas parecem ter ficado restritas. Por esse caminho, poderíamos pensar na paisagem cotidiana. O plano fechado comum às fotos de celular também está nos nossos olhos. O todo que a metáfora de panorama engloba talvez seja uma utopia. E o espaço contemporâneo seja mesmo só percebido em pequenas partes, que se repetem, misturam-se, confundem-se. Assim, como o formato de organização de Panorâmicas Contidas no espaço expositivo.
A estética de reinterpretação do cotidiano permeia diversos trabalhos de Lucas: O fim do sem fim (realizado em parceria com Cao Guimarães e Beto Magalhães), Do outro lado do rio, O tempo não recuperado, Cartões Postais, entre outros. Em todos eles, os índices da realidade são matérias primas para formalizar criações estéticas.
A linguagem da mobilidade trazida pelas câmeras de celulares permite aproximar o documentar do criar. Sempre penso que a imagem é um lugar que não existe. O que me faz lembrar dos vídeos que compõem Fast/Slow Scapes de Giselle Beiguelman. Este trabalho da Giselle, assim como o de Lucas, evidencia abstrações subjetivas que utilizam e reinventam as técnicas possibilitadas por uma câmera ou um software de edição. As paisagens tornam-se, então, paisagens recriadas.
Os três trabalhos trazem questões da estética digital contemporânea. São reconfigurações tecnológicas de uma época apresentadas pelo fazer artístico. São cotidianos que se fazem documentar, que constituem uma documentação, que materializam documentos. Entretanto, também são cotidianos recriados. E afinal, os documentários não são releituras do cotidiano?