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dezembro 17, 2008

Sobre a arte literalista, por Artur Freitas

Sobre a arte literalista

Artur Freitas1

Tenho acompanhado com grande interesse boa parte dos debates que a 28ª Bienal de São Paulo vem suscitando. Em linhas gerais, percebo que via de regra a discussão tem circulado ao redor de um núcleo de questões bem pontuais e nem sempre articuladas entre si, como a crise institucional da Bienal, a mão pesada da curadoria, a intervenção dos pichadores, a prisão de Caroline Pivetta da Mota, a reação do ministro da cultura e o abaixo-assinado em favor da jovem detida2. Não sei realmente onde tudo isso vai dar, mas adianto que não apenas sou favorável à imediata libertação de Caroline, cuja detenção é um absurdo sem precedentes, como inclusive simpatizo com os “ataques” realizados ao pavilhão “vazio” da Bienal. Por outro lado, afirmo de antemão que a minha simpatia não decorre do reconhecimento de um eventual status “artístico” das ações dos pichadores. A questão sem dúvida não é essa. Intervir literalmente no prédio da Bienal, no meu entender, é algo que ganha legitimidade pública na medida em que se apresenta como forma efetiva de reação a uma compreensão equivocada de arte – uma compreensão, é preciso dizer, que ganha lastro institucional em eventos como a atual Bienal de São Paulo.

Em boa parte dos casos, os textos mais importantes sobre a Bienal optaram por comentar o peso das decisões curatoriais. O artigo de Guy Amado, por exemplo, reforça a leviandade com que muitas vezes foi tratada a questão do “vazio”, proposta e executa por Ivo Mesquita3. Paulo Sérgio e Waltércio, por seu lado, divertem-se ao mencionar que o “curadorismo” seria o “último ‘ismo’ do século XX”, chegando a afirmar que depois da “arte pela arte, temos agora a curadoria pela curadoria” 4. Enquanto Ricardo Basbaum, finalmente, celebra “a forte reação negativa” ao evento e considera um mérito que a 28ª Bienal tenha se “assumido plenamente” 5. Partindo de posturas diferentes e chegando a diferentes conclusões, os artigos no entanto concordam quanto a forte presença autoral da curadoria. Adequada a um orçamento minguado, a mostra, que se pretende “Em vivo contato” não sabemos bem com o quê, foi analisada em pormenores por esses e outros artigos, e não pretendo aqui me ater mais uma vez às minúcias das decisões curatoriais. Antes, gostaria de aproveitar a ocasião para defender a idéia de que tais decisões, tanto quanto as reações dos pichadores e a prisão de Caroline, devem ser vistas não como resultados da mera decisão curatorial, mas sim como sintomas de um certo entendimento de arte que, como vejo, tende à hegemonia desde a última Bienal de São Paulo, organizada por Lisette Lagnado, em 2006.

Para resumir, considero uma lástima o que vem ocorrendo. Discordo completamente de Basbaum quando ele afirma que, juntas, as duas últimas edições da Bienal vão “aos poucos recuperando a credibilidade do evento enquanto plataforma de investigação e experimentação” 6. Há aqui uma evidente confusão entre, de um lado, experimentar, e de outro, reiterar o que já foi experimentado. No impacto geral, acho a atual Bienal de São Paulo fraca e opressora, ainda mais problemática que a da Lisette, e não por conta do peso das decisões dos curadores, mas pelo modo com que o circuito de arte institucionaliza uma visão literalista da experiência artística na contemporaneidade.

A realidade apropriada: o grande telos vanguardista

As duas últimas Bienais de São Paulo, assim como a reação dos pichadores à atual edição, trazem à tona a relação entre arte e realidade. O tema, claro, é de grande importância e merece desdobramentos críticos urgentes. O próprio lugar da arte contemporânea, aliás, é em geral compreendido – seja no campo universitário, seja no de arte – com base em aproximações com o mundo da vida. A definição simplista das poéticas contemporâneas em função da superação da autonomia modernista e da conseqüente permeabilidade com o real, por exemplo, já se tornou um clichê para lá de enjoativo. Mas se olharmos com atenção, veremos que não é somente a arte que se aproxima da vida e que afinal se define nos meandros desta aproximação: é também a realidade que se aproxima da arte – o que não deixa de ser, na condição contemporânea, uma provocação permanente aos nossos critérios de interpretação, juízo e discernibilidade. E se simpatizo, como disse, com as ações dos pichadores, é sobretudo em vista dos problemas que elas impõem à própria tradição das vanguardas – e aqui gostaria de me explicar um pouco melhor.

Como talvez pareça, não se trata de entender tais ações como se fossem a mera atualização dos projetos de vanguarda, o que seria compreender as coisas pela metade. Não nego, contudo, que sejam evidentes as semelhanças entre os propósitos de tais intervenções e as estratégias das vanguardas históricas das décadas de 1910 e 20 ou das neovanguardas dos anos 1960 e 70. Afinal, diante da rebeldia anti-institucional dos grupos pichadores, é mesmo difícil não imaginar um caminho que parta de Marcel Duchamp, passe por nomes como Marcel Broodthaers, Daniel Buren ou Hans Haacke e chegue ao presente. Um caminho, enfim, cujo critério político, entendido como a própria fusão entre arte e vida, seria o denominador comum que permitiria colar, numa teleologia possível, eventos tão distintos no tempo e no espaço7.

Contudo, se destaco o que há de comum nisso tudo – de Duchamp à Bienal de São Paulo – é porque percebo aí uma espécie de crença de que a vanguarda possui uma história que se sustenta na aproximação entre a arte e a realidade, mas numa aproximação que vai da arte à realidade. Pois nas vanguardas, percebemos facilmente, é a arte que pretende expandir-se, apropriar-se da vida, do museu e dos espaços da cultura, e não o inverso. É a arte, enfim, que se apresenta como um modelo de intervenção sobre mundo – mas um modelo, também é fácil perceber, que entra em crise no exato momento em que é plenamente enunciado.

Em 1974 – para citar um exemplo forte desta plena enunciação – o sociólogo alemão Peter Bürger publicou o seu hoje clássico livro Teoria da vanguarda8. O texto, escrito num momento de crise dos próprios movimentos de vanguarda, logo se tornou literatura obrigatória sobre o assunto. Pouco afeito à arte do seu próprio tempo, Bürger no entanto teve a sensibilidade e o ímpeto crítico necessários para a compreensão dos contornos gerais das vanguardas históricas dos anos 1910 e 20. Para o autor, em síntese, a idéia de “vanguarda” consistia basicamente num comportamento estético-ideológico voltado à negação da autonomia da arte, à recusa dos mecanismos de autoridade da “instituição-arte” e, mais que tudo, à tentativa de recondução da produção artística à “práxis vital”, ou seja, ao mundo prático da vida9. Em resumo, Peter Bürger acreditava que o conceito de vanguarda consistia não apenas na recusa da idéia de “arte pela arte” e de suas conseqüências autonomistas, mas sobretudo na proposição utópica de certas formas de arte que se mostrassem capazes de intervir literalmente na realidade, burlando assim seus principais condicionantes sociais e mercadológicos. Com tal definição, o sociólogo pensava sobretudo no legado dadaísta e em especial na obra de Marcel Duchamp, mas também nas proposições sócio-estéticas do construtivismo russo, bem como em certa radicalização implícita na fase sintética do cubismo. Bürger, por esse caminho, acabou demonstrando uma importante contradição histórica da arte do século XX – uma contradição, para simplificar, a que eu gostaria de nomear de o impasse das vanguardas. Em linhas gerais, tal impasse pode ser descrito como a consciência da impossibilidade lógica e sociológica de vermos os propósitos históricos das vanguardas plenamente realizados. Vejamos porque.

Para Peter Bürger, a idéia de autonomia modernista consistiu numa espécie de reação histórica necessária, algo como uma afirmação exaustiva dos valores internos da arte em detrimento de uma ordem social externa, injusta e deteriorada. No entanto, ao contrário de Adorno, Bürger não via na posição autonomista uma recusa simplesmente afirmativa. “Uma arte que já não seja erguida sobre a práxis vital” – disse ele – “mas dela se encontre completamente separada, perde com a distância que a separa também a possibilidade de criticá-la” 10. Para o autor, se de um lado a arte autônoma protesta “contra a ordem deteriorada do presente”, de outro ela falha ao propor “uma ordem melhor”, uma vez que esta seria “melhor” apenas “na aparência da ficção” 11. É diante disso, enfim, diante da fragilidade da autonomia modernista, que afinal teria surgido, sempre segundo Bürger, toda a forma de “intervenção vanguardista”, agora compreendida não como a reintegração da arte naquela mesma ordem social deteriorada, mas como a “tentativa de organizar, a partir da arte, uma nova práxis vital”
12. Por outras palavras, o conceito de vanguarda passa a ser visto como o próprio momento de consciência histórica da impotência autonomista – e é a partir deste ponto que podemos começar a compreender em que consiste o tal impasse há pouco mencionado.

Opor-se ao princípio da autonomia, em arte, é em grande parte opor-se ao próprio conceito de “arte”, dado que todas as formas artísticas – assim como as filosóficas ou as científicas – são do domínio da representação, na exata medida em que consistem em formas de mediação do homem com a realidade. Portanto, em relação ao mundo, a arte seria sempre, por definição, um elemento discernível, mesmo que minimamente, e nunca um duplo imediato do real. É nesse registro, por exemplo, que o velho slogan vanguardista da “anti-arte como arte” (ou vice-versa) soa mais como hábito discursivo – aliás bastante comum – que propriamente como fundamentação lógica ou condição de probabilidade. Reconheço, evidentemente, que numa certa perspectiva é mesmo possível sustentar que toda forma de arte é “anti-artística”, uma vez que toda obra, enquanto obra “de arte”, acrescenta um sentido novo ao mundo, e que para fazê-lo precisa recusar alguns dos sentidos “artísticos” já previamente estabelecidos pela cultura. Mas não é disso que estamos falando. O sentido vanguardista de “anti-arte” pressupõe na origem a “reintegração” da arte na vida, ainda que numa “nova” forma de vida, como disse Bürger, e o modelo desse processo é justamente aquele que prevê, nesta mesma origem, um fim cujo telos é sempre o “fim da arte”.

Estou me referindo, é claro, à teleologia histórica de Hegel, com todos os padrões fundamentalmente “modernos” de compreensão do tempo e do homem que lhe correspondem e lhe seguem. Por esse caminho, abrindo mão de sua condição de mediação, a arte tende a tornar-se “vida”, “espírito absoluto”, “sistema socialista” ou o que for, e assim deixa de existir como fenômeno necessário, discernível e autônomo, ainda que isto seja dito de modo relativo. É o tema clássico do “fim da arte”, que no limite consiste na expressão mais bem acabada não da morte da “arte”, como parece evidente, mas sim da morte da “vanguarda”, o que é sem dúvida mais exato. Enfim, o fato é que a aspiração de poder da arte sobre a vida acabou levando a uma contradição lógica e histórica cuja natureza se poderia resumir ao confronto de dois importantes axiomas que me ocorrem. O primeiro consiste no seguinte: quanto mais a arte se dispersa na heteronomia do real, mais ela perde as suas propriedades representacionais e com isso vai deixando de ser arte, ao menos em termos lógicos. Já o segundo axioma, por sua vez, pode ser assim resumido: quanto mais a arte, pelo menos em termos institucionais, se mantém firme como arte, menos ela se assume como vanguarda – o que afinal coloca em xeque a viabilidade efetiva de todo um projeto histórico revolucionário.

Em síntese, é precisamente nisto que consiste o tal impasse das vanguardas – algo que também pode ser descrito como a própria consciência das contradições inerentes à sobreposição daqueles dois axiomas. Assim, se a arte se torna vida, deixa de ser arte; e se se mantém como arte – o que de fato aconteceu, pelo menos enquanto atribuição histórica e institucional – deixa de ser vanguarda. Não espanta, portanto, que daí por diante “tornar-se indiscernível do real, mas sem deixar de ser arte” passe a ser o mais novo slogan do impossível, a chave de um projeto que se torna inviável no exato momento em que pode ser plenamente enunciado. Aliás, quando menciono esse “momento”, refiro-me à conjuntura de difusão internacional dos postulados mais radicais das vanguardas dos anos 1960 e 70, que no meu entender é justamente o contexto em que ocorre o processo de conscientização histórica do impasse das vanguardas. O pensamento de Peter Bürger, por exemplo, é parte ativa deste contexto, assim como também o são a teoria institucional de George Dickie, a sociologia da cultura de Pierre Bourdieu ou Howard Becker ou mesmo o debate sobre o “mundo da arte” conforme proposto por Arthur Danto. Deste modo, apesar da inegável diversidade de posturas e métodos disciplinares, não há dúvidas que todo esse variado arcabouço teórico tem em comum, além do recorte cronológico, a pretensão de compreender a arte a partir de seus pressupostos institucionais, ou seja, a partir da dinâmica viva do sistema de produção, distribuição e recepção da arte numa certa época e lugar, o que obviamente engloba os museus e as galerias, os ateliês e as coleções, passando pela mídia especializada, as instituições de ensino e a curadoria, só para mencionar os aparelhos culturais mais comuns.

Incapaz de isolar “internamente” o componente “artístico” das obras e ações de vanguarda, a Teoria sessentista passa a interpretar os caminhos da legitimação simbólica da arte a partir da relação com o dado contextual, o que sem dúvida explica algo do fascínio pela “instituição-arte” – para usar outro termo de Bürger –, uma vez que a instituição seria sim o primeiro componente concreto de mediação da “arte” com o “mundo” 13. Não por acaso, tal fascínio é correlato, no tempo e no espaço, à preocupação “contextualista” de boa parte das intervenções artísticas das novas vanguardas dos anos 1960 e 70. O assunto, aliás, é amplamente conhecido, e não há espaço aqui para esmiuçar os diversos modos com que as neovanguardas, sobretudo em sua faceta conceitualista, buscaram explorar a permeabilidade da arte com os contextos movediços da ideologia, do comportamento e da linguagem. De todo modo, talvez caiba apenas mencionar que foi exatamente este o ambiente criativo que possibilitou que o problema genérico da relação entre arte e vida assumisse o contorno mais pontual da relação entre a arte e seus condicionantes institucionais. As questões ontológicas da “obra” e da “instituição”, daqui por diante, tornam-se questões poética e ideologicamente complementares, dado que contestar um sentido “convencional” implica em agir sobre os meios de conservação e difusão das próprias “convenções”, aí incluídos, no caso da arte, os museus, os salões e as galerias. Ou como notou Lorenzo Mammì, há um momento em que a situação da arte se teatraliza a ponto de permitir que “o cubo branco, enquanto espaço exemplar das instituições artísticas” passe “a desempenhar o papel do antagonista, do tirano que deve ser desafiado para que o herói-artista possa exercer sua ação” 14. Batizada de “cubo branco”, a galeria de arte, que agora incorpora todas as vilanias do poder do Estado e da lógica do capital, passa a ser compreendida como um espaço ideológico voltado única e exclusivamente a separar a arte – como distinção social e mercadoria de luxo – de toda a vitalidade de um mundo ainda visto como livre e expressivo15. Tratada como uma forma de comportamento, a arte almeja nada menos que a linguagem do mundo, e para tanto aspira a vitória sobre o único vilão que lhe impede o gozo eterno da vida mundana: o aparelho institucional.

Evidentemente, e aqui chegamos a outra faceta do mesmo impasse, não é preciso ir muito longe para perceber que a retórica “anti-institucional”, radical nas vanguardas sessentistas, não só não derrubou historicamente as paredes dos museus, como não tardou por ser reabilitada pela própria instituição-arte. Por questões lógicas e institucionais, a vanguarda não tomou a vida pela arte e assim não cumpriu seus desígnios históricos, o que também não impediu, já no ambiente neoconceitual dos anos 1990, que alguns de seus propósitos fossem novamente reconsiderados, ainda que em nova chave. O problema, contudo, é que no contexto da pós-vanguarda, talvez em função da consciência histórica do tal impasse, tanto a diluição da arte na vida quanto a superação da vida pela arte deixam de ser uma utopia prospectiva para retornar como um simples recurso retórico. “Tornar-se indiscernível do real, mas sem deixar de ser arte” – a velha angústia das vanguardas – não tem aqui mais o peso de um impasse. Trata-se apenas de um clichê, risonho e bem-nutrido, que segue se alimentando da restauração mais cínica – ou ingênua – da velha teleologia vanguardista. E uma restauração, cumpre ainda dizer, que não raro se apóia nas colunas mais robustas do aparelho institucional dominante.

Pós-vanguarda e arte literalista

Lá se vão mais de dez anos desde que o crítico norte-americano Hal Foster, num livro conhecido, interpretou parte importante da arte contemporânea como uma espécie de “retorno do real” 16. O argumento, bem informado e influente, é também o sintoma evidente de um certo entendimento de arte ou de prática discursiva. Nele, de saída, há tanto uma aposta direta e quase solene na criticidade pós-estruturalista, de Derrida a Julia Kristeva, quanto, digamos, uma curiosa confiança histórica nos expedientes das “vanguardas” – e “curiosa”, note-se, porque enunciada em fins do século XX.

Num mundo como o nosso, de acumulação flexível, simulações midiáticas e choques multiculturais, não admira que o sentido do “real” muitas vezes se confunda com a própria idéia de “cultura”, ela mesma imersa num impulso antropológico totalizante. As práticas, os valores e as mais diversas formas de representação das mais variadas sociedades: tudo é cultura e tem ou deveria ter o mesmo peso, a mesma medida, o mesmo e exato fundamento. Daí por diante, claro, num contexto em que intervir na “cultura” soa como intervir diretamente no “real”, é quase natural que qualquer ação “cultural” ganhe ou arrisque ganhar uma condição de intervenção – e que a sua validade se meça, sem qualquer cerimônia, pelo grau de impacto e eventual transformação da “realidade”. Fluxos comportamentais e toda sorte de intercâmbios sociais podem, enfim, surgir como arte, na mesma medida em que o artista se torna, ao fim e ao cabo, e para usar um termo do próprio Hal Foster, uma espécie de “etnógrafo” da vida cultural17.

Por outro lado, não deixa de ser espantoso que em apenas dez anos o status a princípio contra-hegemônico dessa guinada etnográfica (ethnographic turn) – cujo antepassado ideal remonta às vanguardas sessentistas – pareça ter assumido as proporções colossais do espetáculo institucional, como no caso da última Bienal de São Paulo (2006, Lisette Lagnado), toda ela aberta àquela “arte quase-antropológica” de que falava Foster18. Mas o que espanta mesmo, nesse sentido, é a literalidade com que tantas vezes se trata a proposição da “arte como cultura”, típica do “retorno do real”, como se por acaso fosse possível o seu contrário – como se acaso pudesse existir uma forma de arte que eventualmente não pertencesse à realidade da vida cultural.

A questão, em suma, não consiste ou não deveria mais consistir em enunciar a cada ato uma “arte” dispersa no “real” – o que aliás é uma redundância lógica e ontológica –, mas sim compreender os diferentes modos com que as formas de arte se relacionam com os sentidos estruturados e portanto codificados da cultura. E isso porque se de um lado a arte, por redundância, é parte do real, e com ele partilha os mesmos atributos físicos, lógicos e éticos, de outro, contudo, e por definição, ela é sempre um desvio da norma, uma alteração das convenções e, por isso mesmo, uma invenção de sentidos, quer dizer, uma exceção às regras da cultura – como certa vez definiu Godard. Entretanto, compreender a arte nesses termos implica em compreender que o “retorno do real” da arte recente é antes uma figura de linguagem que um atributo literal, mas uma figura, convenhamos, desgastada pelos próprios pressupostos, dado que a ficção da literalidade é também ela mesma uma forma de ficção. A arte atual, em resumo, não depende mais exclusivamente da abordagem literalista, nem pressupõe, como condição necessária, o cíclico e eterno retorno da realidade. Antes, ela aceita os ventos da realidade cultural – tal como a linguagem, as práticas e os valores da vida – para só então mover seu absurdo moinho, e com ele devolver ao mundo – na verdade “estornar” – uma realidade alterada e, talvez por isso mesmo, basicamente nova.

Sendo assim, num contexto em que a realidade é cultural e que a cultura é em grande parte controlada pelas regras do mercado global e da comunicação política, é até previsível que o “realismo” da arte literalista entre em crise, e que a própria idéia de arte, para se manter como tal, dependa de outras formas de relação com o real. Entre estas, no meu entender, a principal é a discernibilidade, ou seja, a capacidade que as formas de arte possuem não de enunciar mas de efetivamente demonstrar – em obra – certas distinções face aos repertórios franqueados da cultura. Mas relembremos: há quase trinta anos, num ambiente pós-conceitualista, o filósofo Arthur Danto respondeu a essa equação afirmando que dois eventos indiscerníveis na percepção podem sim ser distintos no campo ontológico, e que isso ocorre graças à pressão de dados contextuais como a historicidade ou a capacidade descritiva do intérprete, o que de fato é verdade19. O problema, contudo, é que essa resposta não tem validade indeterminada, e não só pelo anacronismo, mas sobretudo por ser uma resposta teórica, filosófica, e não uma asserção da própria arte. Assim, se defendo agora a discernibilidade da arte face a cultura como um valor possível para a arte de hoje, e se o faço obviamente com todas as limitações de uma proposição teórica, é somente porque acredito que aqui a teoria reflita um aspecto decisivo de parte importante da produção artística atual, e não o contrário


Quando a realidade se apropria da arte

Por esse caminho, quando afirmo que as ações dos pichadores problematizam a tradição das vanguardas, não é no sentido de ver nelas um prolongamento teleológico de uma eventual “linhagem” Duchamp-Broodthaers. A meu ver, já aprendemos com sobras sobre o poder que o mundo da arte tem de legitimar como arte propostas inclusive contrárias às instituições artísticas20. E como afirmou Richard Wollheim, é mais fácil dizer porque algo é uma obra de arte do que dizer porque não é – sobretudo depois de uma eventual consagração “artística” 21. A última fase de Lygia Clark é arte. O porco empalhado do Nelson Leirner no acervo da Pinacoteca também. Assim, o eventual processo de “deslegitimação artística”, se possível, é ainda um mistério sem solução. Depois das vanguardas, enfim, a arte contemporânea ainda é um fenômeno discernível frente à realidade – o que é outro modo de dizer que a arte não só não morreu naufragada na vida, como se esperava, como aliás sobreviveu à morte dos mais diversos pós-modernismos. E mesmo assim, com toda a castração histórica sofrida, a fusão vanguardista entre a arte e a vida ainda segue tendo, na condição contemporânea, um valor social exemplar, tanto na arte quanto na realidade. Pois vejamos.

De um lado, no campo da arte, o “terrorismo estético” das vanguardas heróicas segue alimentando, como ingrediente poético, o grande sopão da arte contemporânea. A realidade torna-se agora um horizonte, ou seja, uma meta inalcançável, inclusive em termos lógicos, como mencionou Arthur Danto22. Na tentativa de aproximar-se do real, a arte, por definição, o reconstrói como discurso, e o jogo recomeça. A arte, claro, pode (e muitas vezes deve) ser ainda imoral, alegoricamente radical, mas nunca literalmente perigosa ou ilegal. Pois no presente, as ficções da arte só são possíveis, autorizadas, se funcionarem sob a forma do legalismo jurídico, e isso é um fato.

Mas de outro lado, já no campo da realidade, é preciso esclarecer que somente o real pode efetivamente dar cabo dos projetos exemplares das vanguardas heróicas – mas dar cabo, falemos logo, como realidade, e não como arte. Assim, em ações como as do ataque ao pavilhão da Bienal, a referência aos procedimentos das vanguardas não deve ser vista como validação de um status “artístico”, ainda que isso eventualmente entre em conflito com o próprio discurso autoral. Nada mais longe da natureza destas ações que compreendê-las como a ponta final, bem sucedida e teleológica de um projeto “de arte” que só agora se completa. Pois não foi a arte que se expandiu a ponto de se confundir com a “práxis vital”, como dizia Peter Bürger, mas sim a realidade que se apropriou das regras da arte para denunciar, politicamente, sua lógica arbitrária. Quando, por exemplo, o italiano Piero Cannata atacou obras de Pollock e Michelangelo nos anos 1990, pondo em prática o ataque aos museus antes apenas proposto pelos futuristas, seus gestos não eram “performances”, como algumas vezes se disse23. Eram gestos políticos, ou mesmo psicóticos, de qualquer forma uma ação da realidade sobre a arte, e não o inverso. Do mesmo modo, mutatis mutandis, a depredação de patrimônio público tombado – tal como foi feita a denúncia – efetuada pelos grupos pichadores acaba convocando para a arena pública os nossos juízos políticos sobre uma postura que decerto transcende o legalismo da arte contemporânea, e aí é preciso posicionar-se mesmo. Pessoalmente, como falei, vejo os casos “Piero Cannata” e “ataque à Bienal” como sintomas do avanço da realidade sobre a arte – uma espécie de política da arte, eu diria – com a diferença que o primeiro é uma estupidez sem tamanho e o segundo uma ação inteligente e eficaz.

16 de dezembro de 2008

Artur Freitas é historiador da arte, professor doutor da Faculdade de Artes do Paraná e professor da Pós-Graduação em História da Arte da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, ambas em Curitiba – arturfreitas@bol.com.br

NOTAS

1Este artigo condensa partes de dois textos anteriores: “Considerações sobre arte e realidade no caso Darko Maver” (2006) e “O estorno do real” (2007).

2Para mais informações sobre os eventos, sugiro: ALBUQUERQUE, Fernanda. As articulações do vazio ou em busca do buraco da Bienal. Fundação Iberê Camargo, 10 dez. 2008; AMADO, Guy. Sobre a 28ª Bienal ou “o buraco é mais em cima”. Canal Contemporâneo, 16 nov. 2008; BASBAUM, Ricardo. Viva o contato, viva a vaia. Revista Trópico, 24 nov. 2008; CYPRIANO, Fabio. 28º Bienal de São Paulo naufraga em seu vazio. Folha de São Paulo, 29 nov. 2008; DUARTE, Paulo Sérgio. Uma Bienal “diet”. Revista Trópico, 24 nov. 2008; GRUPO INVADE a Bienal e picha o segundo andar. Folha On-Line, 26 out. 2008; HERKENHOFF, Paulo. Bienal age de modo cínico e intolerante ao lavar as mãos. Folha de São Paulo, 15 dez. 2008; MUNIZ, Diógenes. “Me identifico com o vazio”, diz jovem presa por pichar Bienal. Folha On-Line, 05 dez. 2008; MUNIZ, Diógenes. Ministro da Cultura pede a Serra libertação de pichadora da Bienal. Folha On-Line, 11 dez. 2008; NAVES, Rodrigo. Carta ao editor do Estado de São Paulo, s.d., [dez. 2008].

3AMADO, Guy. Sobre a 28ª Bienal ou “o buraco é mais em cima”. Canal Contemporâneo, 16 nov. 2008. On-line: http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/001936.html

4DUARTE, Paulo Sérgio. Uma Bienal “diet”. Revista Trópico, 24 nov. 2008. On-line: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3037,1.shl

5BASBAUM, Ricardo. Viva o contato, viva a vaia. Revista Trópico, 24 nov. 2008. On-line: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3038,1.shl

6Idem, ibidem.

7A propósito, não duvido que a própria história da arte brasileira se beneficiasse com tal critério, dada a força da tradição Clark-Oiticica entre nós. Basta pensar em trabalhos como os Parangolés de Oiticica, a ação Tiradentes de Cildo, o porco empalhado de Leirner, a nudez de Antonio Manuel ou mesmo o Manifesto de Barrio, para ter em mente a previsível legitimação ideológica de uma vanguarda “guerrilheira” surgida em plena ditadura militar. E isso, claro, se o critério “político” já não estiver em curso, sobretudo em exemplos como a 27ª Bienal de São Paulo, de 2006, em que o lema “Como viver junto” de Lisette Lagnado aproximou a produção artística contemporânea das obras de Marcel Broodthaers e Hélio Oiticica.

8BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. Lisboa: Vega, 1993 [1974].

9Idem, ibidem, p. 22.

10Idem, ibidem, p. 92.

11Idem, ibidem, p. 91.

12Idem, ibidem, p. 91.

13Sobre a presença do tal dado “contextual” na arte sessentista, Paul Wood e Charles Harrison notaram uma espécie de transição entre três diferentes formas de “contexto”. Primeiro, teria havido uma preocupação com o “contexto” fenomenológico da obra, como é o caso da “própria sala da galeria, de modo que uma obra específica podia ser fisicamente moldada nas dimensões de um espaço interior específico”. Em seguida, tal preocupação “expandiu-se até tratar a galeria ou o museu como uma forma de instituição”, com o que se chegou ao “contexto” institucional da arte. O terceiro passo teria sido “estender a preocupação do trabalho artístico para outras instituições e convenções que constituíam o mundo social”, a partir do que o “contexto” estaria próximo das contradições do “capitalismo avançado”. HARRISON, Charles; WOOD, Paul. Modernidade e modernismo reconsiderados. In: WOOD, Paul (et alii). Modernismo em disputa: a arte desde os anos quarenta. São Paulo: Cosac & Naify, 1998 [1993], p. 217.

14MAMMÌ, Lorenzo. À margem. Ars, São Paulo, nº 03, 2004, p. 91.

15Sobre o assunto: O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço de arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1976].

16FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Cambridge: MIT Press, 1996.

17Idem, ibidem, pp. 173 e ss.

18Idem, ibidem, p. 178.

19DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005 [1981].

20Sobre o assunto, sugiro: DICKIE, George. “What is art?: an institucional analysis”. In: Art and the aesthetic: an institucional analysis. London: Cornell University Press, 1974.

21WOLLHEIM, Richard. A arte e seus objetos. São Paulo: Martins Fontes, 1993 [1967], p. 143.

22DANTO, Arthur. A obra de arte e meras coisas reais. In: A transfiguração do lugar-comum. Op. cit., sobretudo entre as pp. 55-65.

23Para alguns aspectos contingentes dos ataques de Piero Cannata, cf. GAMBONI, Dario. The destruction of art: iconoclasm and vandalism since the French Revolution. London: Reaktion Books, 1997, p. 204; Vandal mars fresco in Italy, New York Times, 14 out. 1993; KING, Ross. The dirt on the David, New York Times, 15 jul. 2003; Identificado vândalo de monumentos em Veneza. Folha de São Paulo, 30 jun. 2004.

Posted by Gabriela Miranda at 4:03 PM