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setembro 9, 2008
Repartir um corpo. Quatro proposições de Davi Ribeiro, por Cristina Ribas
Repartir um corpo
Quatro proposições de Davi Ribeiro
(Exposição realizada no Atelier 77, em Niterói, Rio de Janeiro, 2008)
CRISTINA RIBAS
Abri o livro. De páginas mais largas que as minhas mãos. Tentando encontrar as letras escondidas na lombada, acidentalmente dilacerei a rigidez. O livro fala del verbo y de la carne. Dois aspectos materiais de um corpo. O livro agora tem um corpo mais aberto, paira sobre si mesmo, sobre suas duas capas. A quebra da lombada findou a instabilidade da leitura. “Cela n’a pas d’importance” (2006).
Uma tradução ruim de francês me desviou durante muito tempo entre “quelque chose” e “n´importe quoi” (“Elogio ao amor”, J.L. Godard, 2002). Alguma coisa e qualquer coisa. Assim percebo que a remissão a uma história da arte que, recebida de frente (miragem que vem do mar), sem inquiridor, no lavoro criativo se manifesta ao contrário. Ela não se identifica diretamente e produzimos um avesso dessa miragem. Tudo porque aquela história da arte que recebemos vem carregada da mesma preformação da cultura. Ousar traduzi-la não pode ser feito sem considerar o lugar onde se está.
Alguma coisa feita não tem importância? Ele fez pregarem não uma mas duas vezes um conjunto de grampos suficientes para pender sobre o peito uma tela. Fez de si suporte mudo e pálido como a tela. Esperar é a mesma passividade do suporte (neutro). Esperou como se não soubesse até que ela escrevesse sobre esse corpo metamorfósico aquela história precária, da indiscernibilidade, no mundo, da ação artística.
O ato começa no limiar de uma inação. O pão (brasileiro) sai do saco da padaria surpreso de si mesmo, que será tocado por muitas mãos não dirigidas. “Compartilhar” (2007). O ato faz-se rasgando a boca e os dutos, dos outros, solicitando destes a sua própria vida. O “objetato” desaparece, contudo. Ele mesmo não tem importância. O pão foi uma matéria que desprendeu a mutabilidade das superfícies e dali Davi construiu um círculo inédito. Sentados no chão éramos um silêncio de desespero. Recupero seu sentido ulterior: “esperar é desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sábio não espera nada.” (A. Comte-Sponville)
Criar é sobretudo não esperar. Criar propondo ao mundo o já novo, ontologia de si. Refazer um sentido novo da representação, antes nunca desencontrado nos corpos, mas inerte pela proliferação de imagens por sobre os corpos (anúncios voláteis). A incisão e a exposição hoje podem ser diferentes daquela condução dos signos e sentidos (é preciso rever a “Arquitetura da destruição”, P. Cohen, 1989, apreender a sabedoria do valor das imagens). Hoje um corpo livre se desloca, deseja a marca sobre si intervindo na forma ativa (artista) e em relação à forma passiva (matéria). A matéria causada e a causação são uma só, são a provação desta mesma superfície, o meu próprio corpo, e minha/sua capacidade de abraçar a sensação, produzindo o sentido, desenhjando sua virtuose.
Davi realizou a inscrição de um desenho em Buenos Aires, a partir da sugestão do projeto Deseo BS.AS., organizado por mim e por Bianca Bernardo. Escreveu pungindo em sua própria pele o encadeamento de melhor – mundo – desejo . No corpo tatuado, uma permanência. Tem como desdesejar um outro mundo, que não este, que te faz insatisfeito? Diferente daquela ação escusa (enunciado de que não se importa com o que faz, despista) aqui o signo grita em outra língua, também, sobre a pele-língua da carne. Humana.
O corpo escrito foi feito para ser lido. Lê-se no corpo “deseo un mundo mejor” (2008). O idioma que ele escolheu, novamente, não é exatamente o seu. E agora a motivação da escrita desloca-o no seu próprio lugar, aqui, onde ele e outros falam aquele idioma das “Proposições” (2008), textos em preto sobre pequenas telas brancas, na parede. O desejo, contudo, é transterritorial, e a tatuagem é uma postura explícita: um embate inalienável.
Seu corpo poderia ser um protesto político, dimensão realizável para além da unidade individual. Mas não ele trabalha sozinho. A partir do corpo, a transcendência torna-se a chave, uma metafísica entre muitos outros. Metafísica terrena. O corpo – sua carne e seu verbo – se pronunciam todo o tempo, e por hora se fundem. Mas não são sempre vistos. Davi escreve perto do coração a condição de si para o mundo. Daí importa a exposição, o local de mostra, onde o suprasensível “transcrito” a partir do sensível (G. Deleuze) vem a ser uma matéria formada, transmissível, proposição desesperada ao meu corpo e minhas multiplicações.
Como o livro quebrado, sem chance de se refazer, quebra-se a ciência. Ciência que dissecava para descobrir o sujeito, e, traída em si mesma, vira uma repartição insuficiente ou vazia para encontrar um corpo vivo. Seu descaminho aponta outro, aquele que Davi propõe é uma ação de desespero: “trata-se de habitar esse universo que é nosso, ou antes, que nos contém, em que nada é para acreditar, já que tudo é para conhecer, em que nada é para esperar, já que tudo é para fazer ou amar.” (A. Comte-Sponville)
Cristina Ribas
Artista visual e pesquisadora
apartamento13@yahoo.com.br
Sobre Davi Ribeiro: http://flickr.com/photos/davi_ribeiro/
Leitura recomendada:
Será que a arte resiste a alguma coisa?, Jacques Ranciére
A felicidade, desesperadamente, André Comte-Sponville
Cuando el verbo se hace carne, Paolo Virno
DESEO Bs.As. propõe a integração de intervenções artísticas realizadas por brasileiros em Buenos Aires. Os artistas que participam produzem um postal para o projeto que é enviado de volta a Buenos Aires, amplificando nossa motivação inicial: um possível desejo de contato e co-produção latinos.
O projeto é coordenado por Bianca Bernardo e Cristina Ribas. Para informações escreva para: deseobsas@hotmail.com