|
setembro 4, 2007
Criação com contradição, por Rubens Pileggi Sá
"Os quatro cavaleiros do apocalipse" (1497-98). Gravura de Albrecht Dürer
Criação com contradição
RUBENS PILEGGI SÁ
Mundo como intensidade
Arte é artifício. Mas é através deste artifício que se pode encontrar o caminho para dizer verdades que, de outro modo, seria impossível fazê-lo. Sobretudo porque da arte não se espera verdades, mas beleza. E dos artistas não se esperam ações, atitudes, intervenções na vida prática do cotidiano, mas delírio. Mas a arte se faz da exceção, não da regra.
E é através de toda essa licença poética que foi adquirida ao longo dos séculos, que o artista, hoje, pode dar-se ao luxo de delirar no cotidiano, transformando em arte até a mais suja e mais abjeta forma de se existir no mundo. A vida pulsa com a mesma intensidade tanto no cheiro fétido de um esgoto, quanto no perfume de uma flor que nos chega com o vento, nos roubando a distração e os sentidos. Cabe ao artista saber tanto mover-se nas regiões mais sombrias da lama humana, quanto nas mais claras, transparentes e brilhantes.
Em um momento confundido com bruxo, em outro com alquimista. Em um momento quase um santo, pintando anjos na cúpula da capela. Em outro, como um demônio, rebolando na beira do precipício. Contradição? Por que não? O mundo que se conhece não é o mundo que existe como algo dado, pronto e natural. O mundo que se conhece é um mundo em construção, em transformação, em mudança. Quem tem um mundo idealizado não pode querer mais nada da vida, mas quem tem um mundo para viver, só pode desejar a vida como ela se apresenta: com suas surpresas e mistérios. Em seu frágil equilíbrio, em sua gigantesca abertura para ser decifrada e desfraldada, a cada novo instante.
Fazendo e refazendo
Por isso, como se diz, o lugar menos provável da manifestação artística é na arte. Ou naquilo instituído com esse nome, pois é um fenômeno que já está cristalizado. Aquele que espera encontrar mais sentido em uma projeção de cinema do que no vento, certamente estará menos propenso a pegar uma gripe do que aquele outro que enfrentou os temporais; no entanto um conheceu a volúpia. O outro apenas pôde ter uma idéia dela projetada na tela. E essa diferença é fundamental para o nascimento do devir e do imponderável. Campo onde se manifesta o essencial humano, que é o desejo.
Arte? Qualquer insubordinação pode ser uma manifestação artística. Qualquer gesto de resistência frente à opressão. Qualquer atitude corajosa frente à covardia dos imbecis. Ela não precisa estar, necessariamente, em um quadro de museu, em uma obra histórica. O que se vê ali são indícios, marcas, caminhos, mais nada. Perdeu sua aura: é só uma estátua, um boneco de cera, uma relíquia histórica, quando muito.
Obviamente não devemos ser deterministas pelo avesso, mas, também, é preciso que, em nós, se mantenha acesa a chama do que há tempos outros vêm dizendo, fazendo, mostrando. Em outras palavras, serve o ditado: o caminho se faz caminhando. Assim, arte deve e pode ser pensada como processo e fluxo, onde a dimensão temporal - além da espacial - é sempre ressignificada na obra que fazemos e refazemos continuamente, a partir do cotidiano.
O acaso como um brinde
Mas, então, como é que ela é artifício, a arte, se está tão dentro da vida e a vida nos foi dada como natural? Simples, porque o mundo está em contínuo processo de criação. E essa criação é produto da elaboração de cada um, individualmente, como parte do todo. E é preciso estar atento, aberto e despreocupado para sentir a brisa do vento como um sopro inaugural da vida, um momento de poesia, um instante a ser sentido além da funcionalidade e da regra imposta para se viver em padrões fechados que ditam verdades congeladas.
E, toda vez que o acaso lhe vier brindar com um presente inesperado: seja o perfume de uma flor, seja o cheiro que vem do fundo de um bueiro, é melhor aceitar tal situação como parte do mundo e da vida, porque do contrário estaríamos inventando não algo para ser fruído como objeto artístico, mas uma nefasta neurose a nos impedir viver a vida como ela se apresenta. E reclamar, simplesmente, não modifica a questão. Nós é que inventamos nosso destino. Com tudo o que há de trágico e maravilhoso para ser vivido.
maravihoso !!!!!!!!!
obrigada. Helen .