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agosto 21, 2007
Arte enquanto encontro, por Rubens Pileggi Sá
Arte enquanto encontro
RUBENS PILEGGI SÁ
Sobre a entrevista
A entrevista abaixo - inédita - foi realizada em junho de 2006 durante a vinda à Curitiba da artista brasileira Regina Vater e de seu marido, também artista, pioneiro em trabalhos com videoinstalação e chefe do Departamento de Arte e Tecnologia da Universidade do Texas, em Austin, Bill Lundberg.
A presença dos artistas ao Paraná, que deram palestras, mostraram vídeos e montaram um trabalho de Bill, foi possibilitada pela união conjunta de esforços entre a direção da Casa Andrade Muricy, a Secretaria de Cultura do Estado, a disposição do artista Newton Goto em produzir o evento e pelo meu prazeroso trabalho de agenciar o encontro.
O tempo passou e eles voltaram ao Brasil, para uma exposição de Regina no Rio de Janeiro, no Castelinho do Flamengo e uma exposição conjunta dos dois, na Galeria Cândido Portinari, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em cartaz até o dia 05 de outubro.
No Castelinho do flamengo
A exposição de Regina Vater - que termina agora no dia 19 - mostra mais uma faceta de sua inquietude artística, ao trabalhar em diversos meios e linguagens, desta vez com instalação para poesia visual. No texto em que assina para o catálogo da mostra, a crítica de arte Cristina Freire nos fala do sentido de experimentação que Regina vem elaborando desde a década de 60, com fotografias, filmes, poesia visual, performances, livros de artista, instalações e, até - como justifica ao longo do texto - jardinagem.
Da exposição, propriamente, além de uma plantação de grama - que é uma instalação onde se lê a palavra SIM crescendo dentro de caixotes, na sala da galeria do museu - temos ainda outras salas, onde se pode apreciar um pequeno trecho de um poema mítico árabe, do século 12, em que as palavras ficam atrás de copos de água, funcionando como lentes de aumento ("procure pelo invisível e a beleza aparecerá"); cartões-postais virtuais enviados aos amigos, desde 2005, que se transformaram em quadros e; duas montagens com fotos da série "Cinematic-Still", em que o texto reforça, sintetiza, explica e compõe com as imagens mostradas.
Na Cândido Portinari
Já a exposição na UERJ, cujo título é "Desenhos para instalações", Bill e Regina mostram a idéia enquanto linha, traço, esboço. A superfície do papel como lugar de primeira manifestação de expressão, onde o desenho se torna matriz de pensamentos. Uma instalação com pedras e pães completa a mostra, que contou, apenas no dia da abertura, com uma instalação de Bill, em que uma mão aparece batendo, em uma máquina de escrever, uma carta para Anna Freud - neta do criador da psicanálise - sobre uma palestra dela.
O interesse dessa exposição se faz pela ampla quantidade de desenhos que nos dão a idéia de como se forma o processo criativo de ambos. Segundo Guy Brett, que assina o texto do catálogo, tanto a obra de Regina quanto a de Bill ainda não são reconhecidas como deveriam e mereciam ser, tanto pela força das metáforas, cargas simbólicas, psicológicas, quanto pelo resultado material daquilo que ambos realizam há décadas.
Regina Vater - Para um tempo de guerra
REGINA
O trabalho de Regina Vater leva em consideração os conhecimentos de rituais espirituais da humanidade, como o xamanismo, mantras, mandalas e as práticas tibetanas de meditação. Regina pertence à geração de artistas do fim da década de 60 e privou da amizade, entre outros, de John Cage, Joseph Beuys - que ela conheceu na Bienal de Veneza, onde foi representando o Brasil, em 1976 - e Hélio Oiticica, a quem ela atribui seu grande incentivador, desde que ela esteve em Nova York, em 1973, pela primeira vez.
Apresento abaixo a entrevista feita com ela. E, logo após, a que Bill Lundberg me concedeu, precedida de alguns comentários:
Rubens - Como começou sua carreira?
Regina - Eu desenhava desde guria e na minha adolescência tentei vender os quadrinhos que eu estava fazendo em uma loja de decoração e o comprador de lá disse que eu tinha muito talento, mas que precisava de algum guia. E então ele me indicou o Frank Schaffer para estudar com ele. Eu tinha 16 anos nessa época.
Do Frank eu mudei para o Iberê Camargo (pintor e gravurista. 1914 / 1994). Naquela época estavam começando, também, o Rubens Gerchmann e o Antonio Dias. E quando eu vi o trabalho do Antonio Dias eu disse para mim mesma: "o que eu estou fazendo é água com açúcar" e, a partir daquele momento eu comecei a quebrar aquela coisa romântica que eu estava fazendo e parti para uma figuração, dentro de uma coisa feminista, que, inclusive, levou-me para a Bienal de Paris, em 67. Daí em diante começou uma série de salões e prêmios. Foi um início muito ativo. Porque eu era muito ambiciosa em termos intelectuais e não queria fazer concessões ao meu trabalho. A partir daí, arte para mim era uma maneira de conhecer o mundo, em termos mentais.
Rubens - Gostaria que você falasse um pouco do vídeo "As time goes by", de 1978, que foi realizado sem som, mas é o mesmo título da famosa música do filme "Casablanca". E eu pensei muito em pintura quando o vi.
Regina - Bem, tem a ver com o "Olho Táctil", que foi o causador da minha amizade com Lygia Clark, uma obra que eu realizei na Grécia, em 74. É o olho que vira um órgão de tato.
É uma fascinação com a dimensão do tempo. E, também, com o aspecto alquímico. Uma relação com os quatro elementos.
Todos os takes possuem a mesma medida, em termos de centímetros de fita magnética. Quando eu fiz aquilo em filme, eu usei uma régua para medir cada pedaço do que seria projetado posteriormente. E, há também, a questão do paisagismo e da cor.
Rubens - Qual a influência do Hélio Oiticica em sua obra?
Regina - O tapete estava sendo tirado dos meus pés em várias circunstâncias. Quando eu comecei a série dos "Nós", em 1972, eu não conhecia o Hélio ainda. Quando eu mostrei às pessoas trabalhos feitos em saco de supermercado, as pessoas ficavam chocadas, achando que eu estava brincando. Diziam até que eu só seria considerada artista quando usasse tinta a óleo e pincel. Mas quando eu os mostrei para o Oiticica, ele me disse que arte é invenção e que eu devia correr todos os riscos e fazer o que lhe desse na cabeça.
Rubens - O artista pernambucano Paulo Brusky tem um vídeo em que dá a você a parceria pela idéia que você teria passado para ele. Como foi isso?
Regina - Ele tinha me convidado para uma palestra em Recife, em 1979 ou 1977, não me lembro bem. E aí ele foi nos mostrar Olinda. Quando chegamos lá, ele nos apontou os guias de Olinda e disse: "veja esses meninos, eles repetem tudo. Eles decoraram a história de Olinda e repetem tudo, sem entender nenhuma palavra". Aí ele pediu ao menino para contar a história e o menino contou e depois contou de novo. Aí eu disse: "isso é um vídeotaipe. Por que a gente não faz um vídeotape?" Então ele disse, "depois eu faço e a gente assina junto". Foi assim.
Rubens - Queria que você falasse de um filme seu, que me impressionou, o "Loves Space", de 1986.
Regina - Ela está nua, tateando as margens do filme, da película onde ela está inserida, que encosta com a borda do filme de um homem que não mostra o rosto, lendo jornal em que aparece uma coisa de glamour, usando a mulher como anúncio. Essa mulher é uma espécie de odalisca, de Ingres (pintor neoclássico francês, 1780-1867). Ela tenta penetrar no filme do homem, que a ignora.
O áudio é um texto medieval, que fala de amor, mas pelo lado do homem, patriarcal, que a mulher deve ser subserviente ao marido...
Rubens - O que eu gosto desse trabalho é que você simplesmente expõe os dados e cada um tire a sua conclusão. E usa o meio enquanto discurso, não o discurso enquanto meio. Ele não é verborrágico, analítico. É um trabalho de síntese.
Regina - Isso.
Rubens - Qual a função da arte para você?
Regina - Arte para mim é vida. Hoje em dia é uma experiência religiosa. É o processo de recriação... Talvez seja até pretensioso dizer isso, mas me sinto participar dessa força criadora do Universo... Sem a arte eu não teria crescido como pessoa como eu cresci. A arte me ajudou a desvendar o mundo: o mundo de dentro e o mundo de fora. E a coisa mais importante dessa história toda é o compartilhamento com o outro. Eu não faço arte para mim, faço arte para a celebração com o outro.
Bill Lundberg - foto: Anna Freud
BILL
Buscando uma definição para a obra de Bill Lundberg, a crítica de arte Valerie Cassel ressalta seu pioneirismo na arte da projeção, colocando-o inclusive, à frente de muitos nomes que se tornaram referências no mundo do vídeo e da projeção de imagens. Sua vasta produção, sempre ligada a projeções de imagens nas mais diferentes superfícies, são sempre permeadas por discurso comportamentais e psicológicos, onde o jogo entre realidade e ilusão não é apenas uma habilidade usada para se contar uma história, mas um recurso de linguagem em que imagem projetada, mobiliário e arquitetura se fundem e se confundem, criando inúmeras possibilidades de leitura.
Fazem parte de seu portfólio de trabalho - resultado de mais de 40 anos de pesquisa - instalações em que pessoas são projetadas dormindo sobre travesseiros espalhados pelo chão da galeria de arte; ou mergulhando, projetadas em uma piscina; lavando as mãos, projetadas sobre pias reais; copos; mesa de ping-pong; etc. Sempre apresentadas de maneira sedutora e surpreendente, roubando nossa atenção para questões profundas da natureza humana.
Na entrevista que se segue, Bill diz que a imagem projetada em tela plana é uma ditadura da indústria cinematográfica e que seu assunto, em arte, sempre foram as pessoas em seu mundo particular.
Rubens - Como foi o início de sua carreira?
Bill - Eu era um pintor e meu trabalho de conclusão na Universidade de Berkeley foi em pintura, em 1966. Foi um período de guerra, de repressão, mas também de inovação. Berkeley tornou-se uma encruzilhada de muitos intelectuais e estava ocorrendo uma Renascença do cinema experimental.
Durante aquele tempo eu expunha minhas pinturas em vários museus e galerias da Califórnia, ganhando prêmios e fazendo sucesso.
Um dos meus professores achava que o meu trabalho era tão bom que conseguiu para mim uma exposição em uma das melhores galerias de Los Angeles. Mas eu me revoltei com essa idéia e resolvi parar de pintar.
Tudo isso foi reforçado, de certa maneira, por pessoas que eu conheci, como, por exemplo, John Cage. Ele tinha feito duas performances em Berkeley, que eu tinha ido. Mas eu não entendi o trabalho dele. O que eu entendi foi que aquilo era um conjunto de valores diferentes e que falava sobre liberdade.
Rubens - Como era o clima da época?
Bill - Naqeuela época eu não apreciava o clima estético nos Estados Unidos. Era o período em que Andy Warhol estava dominando a cena e havia um extremo clima de pessimismo e sarcasmo, ao mesmo tempo. Então eu decidi viajar por 6 meses pela Europa e minha primeira mostra foi em uma galeria de fotografia, em Londres. Depois daquilo as coisas aconteceram muito rapidamente.
Eu não tinha a menor idéia para onde meu trabalho estava indo. Eu não sabia que o que eu estava fazendo era arte ou não. Mas sabia que o que eu estava fazendo poderia dar frutos. Estava mais interessado em descoberta e invenção. Organizei minhas idéias em termos de performance e consegui interessar várias pessoas no que estava fazendo, porque tinha a ver com a relação que umas pessoas têm com as outras. Tinha a ver com os desajustes das relações humanas.
Eu fiz várias performances com grupos de até trinta e cinco pessoas. E estava começando a usar vídeo para registrar essas performances. As pessoas pareciam gostar do que eu estava fazendo e comecei a receber convites para me apresentar em outros lugares.
Rubens - Essas performances, como eram?
Bill - Bem, uma delas se chamava "ELE" (Him) e era bastante simples. Eram três pessoas que conversavam sobre alguém, mas ninguém sabia quem era a pessoa sobre a qual o outro falava. Falavam como ele era, seus pontos positivos e negativos, como eles se sentiam a respeito deles. E eles criaram uma personalidade multifacetada que o público pensava tratar-se de uma só pessoa. Mas eram três pessoas diferentes falando de outras pessoas. Como o nome das pessoas de quem se falava fora substituído por "ele", o público acreditava piamente tratar-se de uma pessoa só.
Descobri que cada pessoa colore a outra de acordo consigo própria. Então eu comecei a perceber que essa ilusão de realidade me interessava.
Rubens - Que diferença você vê entre trabalhar com filme ou vídeo?
Bill - O vídeo era uma coisa muito crua naquele momento. Agora é a mesma coisa, mas, antes, o vídeo era algo ligado à fala de um tempo presente. E o filme remetia a um sentimento de passado, de nostalgia.
O filme apontava para uma outra possibilidade estética. E eu não queria usar o vídeo porque eu precisava de uma claridade visual de representação. E eu comecei a projetar imagens, como a de "Swimmer" ("Nadador", de 1975, em que uma pessoa projetada mergulha em uma piscina real), que eram coisas que eu nunca tinha visto nada como aquilo antes.
Rubens - E o que você faz hoje pode ser chamado do que? Vídeo-arte? Vídeo-instalação? Cinema? Filme?
Bill - Algumas pessoas quando escrevem sobre meu trabalho dizem que se trata de algo híbrido entre escultura, instalação, vídeo e performance.
Rubens - Qual a diferença entre trabalhar com projeções de imagens, hoje, e de quando você começou?
Bill - A maneira de experimentar hoje é diferente. Por causa dessa coisa do digital que permite fazer coisas que antes não eram possíveis. É muito mais fácil fazer o trabalho, o que não quer dizer que é mais fácil pensar o trabalho.
Eu preciso dizer uma coisa. Eu nunca gostei de vídeo em um monitor de televisão. Eu sempre gostei da coisa da projeção. O vídeo, para mim, tem que ser uma continuação do que eu gostava de quando eu lidava com filme, dessa mágica da projeção. De sair dessa coisa industrial e projetada para uma tela quadrada.
Foi só recentemente que o vídeo adquiriu a qualidade que me permitiu fazer essas projeções que eu fazia com filmes.
Rubens - O que você leva em consideração na hora de compor seus trabalhos?
Bill - Eu sempre gostei de uma estética visual forte. Você quer fazer as duas coisas. Quer fazer uma obra que tenha o conceito forte, que fique na mente da pessoa por muito tempo. E você quer ter uma coisa bonita ao mesmo tempo.
Eu começo meu trabalho a partir de um plano muito emocional e pessoal, mas eu não quero que o trabalho se transubstancie em algo apenas meu, ao redor do umbigo. Eu espero que as pessoas se reconheçam no meu trabalho.
Rubens - Fazer uma questão pessoal se transformar em uma expressão pública...
Bill - A transformação de sentimentos pessoais em trabalho público significa que o trabalho resultante acaba modificando a proposta inicial que se tinha em mente. Por exemplo, meu pai morreu e isso me inspirou a fazer um trabalho que eu convidei vários senhores idosos a lavarem as mãos. Mas quando eu acabei de realizar esse trabalho eu me dei conta que ele tinha sido feito exatamente durante a guerra do Iraque. Na verdade era um trabalho sobre ter ou não ter sentimento de culpa. Lavar as mãos de uma culpa.
Rubens - Você disse que começa um trabalho com algo que te incomoda....
Bill - Sentimentos que ainda não estão resolvidos. Se você prestar atenção aos seus sentimentos você pode criar com eles. É uma maneira de crescimento.
Tive oportunidade de conviver com a Regina por alguns dias em 2005, em Diamantina. Ter aulas com ela foi conviver, no pleno sentido afetivo da palavra. Como Pensar uma Instalação foi para mim uma oficina de vida, tal a generosidade dela com tão inexperientes artistas. Mesmo esgotada com os intransponíveis morros e calçadas acidentadas, ela estava ali, pronta e sempre disposta, a celebrar arte conosco. Fiquei felicíssimo ao rememorar com a entrevista algumas lições tão essenciais que aprendi naquela curta e, no entanto, inspiradora semana.
Posted by: Hélio Nunes at agosto 31, 2007 11:02 PM