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agosto 10, 2007
Ritual de Devoração, por Rubens Pileggi Sá
Still do vídeo "Funk Staden", da dupla Maurício Dias e Walter Riedweg
Ritual de Devoração
RUBENS PILEGGI SÁ
"Ela pede pra batê / Ela gosta di apanhá!"
Refrão ouvido em baile funk, no morro da Coroa
Arte como consciência
A arte pode se dar de várias formas. Pode se dar até por contradição dela mesma. Pode fazer sentido, ou pode ser sentida. Pode se perder na fantasia, ou estar completamente incrustrada na realidade. Pode representar, pode ser. Pode estar. Dependendo do período histórico, a arte pode valer por certas características que, em outros períodos, nada valem. De todo modo, arte e contexto são indissociáveis. E tudo, absolutamente tudo, está sujeito à interpretações e associações, uma vez que o ser humano sempre busca a consciência dos atos que realiza. E - em casos mais elaborados - a consciência enquanto produção de um ato. A isso chamamos arte.
Uma dupla
Maurício Dias e Walter Riedweg formam uma dupla de videoartistas, que se conheceram em 1993. O primeiro é brasileiro, o segundo, suiço, mas depois do encontro com o brasileiro, ele agora é suiço-carioca. Usam o vídeo para contar histórias de porteiros; mostrar a realidade de garotos de programa; a situação de imigrantes; o drama de prisioneiros ou; a noite fria de cucarachas querendo entrar nos Estados Unidos. Mostram isso de um modo em que os personagens se tornam co-autores de suas propostas, indicando o caminho para o trabalho se concretizar.
Entre tantas exposições em que exibiram o que fazem, pode-se destacar uma grande mostra no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro; uma instalação no meio de um camelódromo da zona oeste de São Paulo, no evento ArteCidade e; bienais como a de São Paulo, Havana e Veneza. Agora estão participando da badalada Documenta de Kassel, na Alemanha, o evento mais concorrido e com maior visibilidade global do meio artístico.
Um cheiro estranho
No ar, um cheiro de golpe, além de aviões caindo. Mal completando um ano do segundo mandato e já se pode advinhar que o governo Lula não será pelo poupado por um mínimo distanciamento crítico dos setores oposicionistas e da grande imprensa, pronta para julgar e acusar qualquer ato - ou a falta dele - da administração pública federal. O que era relevado no governo de FHC, agora é ressaltado como defeito imperdoável. E até do assassinato das pessoas que morreram no acidente aéreo o governo foi responsabilizado.
A elite paulistana até inventou um arremedo de movimento que conta, inclusive, com a vergonhosa adesão da secção regional da OAB, em nome da ética, mas que todos sabem, em defesa de interesses próprios, como a privatização dos aeroportos e a detenção do controle aéreo. Além disso, estranha o fato de que a "sociedade" aplaude quando a polícia invade favelas e mata pessoas, ou quando os próprios pobres se matam entre sí, acusados todos de "bandidos", mas fica indignada e extremamente comovida quando um rico é morto por um pobre. No primeiro caso, ninguém está minimamente preocupado em veicular a notícia nos jornais, a não ser por sensacionalismo. No segundo caso, a culpa, é claro, é do governo.
Funk Staden
O trabalho da dupla MauWal, como são conhecidos Dias e Riedweg, toca muito nas questões dos fora-da-lei, dos bordelines, dos excluídos, dos que não possuem um canal de expressão para reclamar seus direitos. Usam a realidade como se fosse ela uma ficção. São quase documentaristas de suas próprias instalações artísticas. E mostram, muitas vezes, uma situação que preferíamos ignorar.
Um dos dois trabalhos que estão apresentando em Kassel, parte de uma consideração a partir do próprio contexto do lugar, e se relaciona com a história da colonização do Brasil, feita pela Europa judaíco-cristã: a video-instalação "Funk Staden".
Como ficamos sabendo pelos livros, Hans Staden foi um mercenário aventureiro alemão, proveniente dos arredores de Kassel e é considerado um herói, por fugir dos índios Tupinambás, que comiam carne humana. Seu livro de viagens relata sua aventura pelas ricas e disputadas terras dos canibais e do uso ardiloso da lábia para enganar os índios e se sair bem da situação. Tudo em nome do nobre Felipe, o Bondoso e de Deus. O primeiro, por interesses comerciais. O segundo, porque foi usado para lograr os crédulos índios. Os relatos de Staden serviram de base para um série de desenhos de Theodore de Bry e inundaram a imaginação dos europeus sobre os "perigosos"selvagens tropicais.
Mundo cruel
Quando um menino de rua, que foi adotado por membros de alguma organização não-governamental francesa, recebendo estudo e alimentação por anos, rouba e mata seus próprios defensores, ficamos chocados e não entendemos por que essas coisas acontecem.
Poucos de nós sabemos que os índios Tupinambás, assim como seus inimigos, os Carijós, não lutavam por posse de terras, mas porque eram guerreiros virís e, ao caçar um membro de outra tribo, tinha interesses não só em matá-lo, mas de fazê-lo reproduzir com as mulheres da tribo, evitando a eugenia. Não o comiam por fome, mas porque acreditam obter sua força e inteligência, em uma grande cerimônia ritual. Para o inimigo vencido, isso era uma honra, por mais estranho que pareça às nossas fracas mentes cartesianas e deterministas. Para eles, não existia diferença entre estar morto ou vivo, tudo era parte de um mesmo sistema cosmológico. Culturas diferentes pensam diferente, precisamos ter isso em mente.
Pois bem, em nome de Deus, Hans Staden livrou sua pele e, como bom covarde, fugiu do ritual antropofágico a que estava sendo convidado a participar - como alimento, claro. Isso se dava porque, se caia uma chuva, ele dizia que Deus estava zangado com os índios. Se acontecia algo que não estava previsto, como um dia ruim de caça, era Deus punindo os selvalgens por mantê-lo preso. E assim se passaram os dias até que... (bem, fica aqui o tempero, quem quiser sentir o gosto da carne das palavras de Staden, leia o livro).
O outro como nós mesmos
Hoje vivemos o avesso da Antropofagia, que é o Canibalismo, onde se devora um ser da mesma espécie por fome ou por puro prazer em matar.
E não custa nada lembrar dos primórdios do movimento modernista brasileiro, baseado na Antropofagia e, além disso, invocar o "pensamento selvagem" postulado por Levy-Strauss, para entender que existe um abismo entre a saborosa carne do Bispo Sardinha - que devia, de fato, acreditar em Deus, esperando um milagre até na última hora - e o garoto arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, por assaltantes. Um abismo cultural.
Somos o índio, mas não aceitamos o espelho, ou não nos reconhecemos como tal, nele. Rimos dele. Desprezamos ele que, para nós, é despossuido de cultura. Metemos ele no museu. Transformamo-o em bicho exótico, para mostrar aos "gringos" quem somos. Crueldade? Muita. Basta pensar que, se as armas que estão nas mãos dos traficantes, hoje, fossem usadas a serviço de uma ideologia social e não para manter o capitalismo, nem a batida e corrompida palavrinha "democracia" que esse governo fraco fica querendo se mostrar defensor, poderia ser usada. Democracia, aliás, para quê? Para quem?
Como arte e vida
"Funk Staden" joga com essas contradições. Ao relatar cenas contundentes dos bailes funks relaciona um ritual de devoração ancestral com outro, onde a violência só faz gerar mais violência, ainda. Exclusão gerando exclusão, como parte de uma realidade avessa a valores e princípios éticos e estéticos. Tem a ver com políticas públicas, sim, e com arte, como nos faz ver o trabalho da dupla MauWal. Mas também é um caso que envolve a história e a maneira como nos locomovemos por ela. Como dizem os autores da videoinstalação, "o Rio de Janeiro é apenas um singelo retrato da perversidade que existe no capitalismo globalizado atual. O problema é inerente à nossa época".
Alegra a explicitação do engajamento. Parabéns por fugir da corriqueira crítica puramente metalingüística, escapatória tão usada quando a obra analisada apresenta aspectos políticos contundentes demais para que se fale neles sem se comprometer.
Posted by: Hélio Nunes at agosto 18, 2007 3:27 PM