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julho 31, 2007
Daros Latinamerica no Rio, por Luiz Camillo Osorio
Casa Daros Rio, foto de Nelson Monteiro
Daros Latinamerica no Rio
LUIZ CAMILLO OSORIO
A coleção Daros da Suíça abrirá no Rio de Janeiro um espaço monumental onde além de mostrar sua coleção desenvolverá um forte projeto educacional, aliado a biblioteca, residência de artistas, workshops e seminários. Em um imóvel do século XIX adquirido da Santa Casa e que foi usado durante anos como colégio, entre os bairros de Botafogo e Copacabana, na zona sul carioca, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha redesenha o espaço arquitetônico para acomodar as múltiplas atividades artístico-educacionais a serem desenvolvidas pela futura Casa Daros. A idéia norteadora é a de ser uma casa de encontro e de formação, reunindo não só as obras, mas os artistas, críticos, curadores e o público em geral. A qualidade da coleção e as possibilidades de curadoria dentro dela, certamente ajudarão. O fato de ser uma instituição suíça, com tradição de projetos de longa duração e com orçamento regular, é uma esperança de que não repetiremos a fórmula, tão brasileira, de belas idéias e boas intenções, porém com pouca dotação orçamentária e nenhuma continuidade.
A história de colecionismo da Daros teve início nos anos 80, através de Alexander Schmidheiny, junto ao galerista suíço Thomas Ammann, tendo como foco a produção norte-americana do pós-guerra. Com a sua morte em 1992, o irmão Stephan Schmidheiny iria assumir a coleção e criar a Fundação que logo depois se denominaria Daros. Este industrial, responsável pela criação do Conselho Mundial de Desenvolvimento Sustentável, vai desdobrar a coleção com o segmento de arte da América Latina no ano 2000 - que hoje já conta com cerca de mil obras. Quem passaria a dirigir este segmento e decidir sobre as aquisições seria Hans-Michael Herzog. Atualmente ele é o diretor das duas coleções, o que irá naturalmente facilitar o desejado diálogo, criando projetos comuns que tendem a fortalecê-las. Está prevista para Outubro de 2007, por exemplo, a primeira parte da exposição intitulada "Face to Face", na sede de Zurich, que se propõe a discutir a arte conceitual internacional e latino-americana, juntando as duas coleções e destacando as especificidades e paralelismos entre elas. Este contágio promete abrir possibilidades interpretativas do maior interesse.
É sabido que as divisões geográficas não são muito produtivas para a compreensão das singularidades artísticas. Daí que pode sempre soar redutora a definição de uma coleção como latino-americana. No entanto, a idéia desde o começo foi de reunir segmentos contemporâneos da produção continental que estivessem em diálogo aberto com os movimentos internacionais, apostando, acima de tudo, que as diversidades culturais criariam atritos e tensões interessantes para uma compreensão heterogênea do mundo atual. Como observou o crítico Keith Wallace em texto sobre a coleção por ocasião de uma exposição no Canadá, "a Daros-Latinamerica é uma coleção ao mesmo tempo subjetiva e especializada - ela é jovem, exploratória e focada. Inclui vários nomes internacionais, assim como artistas conhecidos apenas dentro dos seus respectivos países e regiões"1. A combinação de gerações e a particularidade de ser ao mesmo tempo focada e exploratória são elementos a se destacar nesta coleção.
Para além das questões meramente curatoriais, é bom lembrarmos da necessidade de fortalecimento político de uma produção que se manteve sempre à margem do grande circuito internacional e dos principais mercados de arte e cuja ação concentrada pode ser produtiva. O desafio é combinar unidade política e multiplicidade poética de modo a dar à coleção latino-americana da Daros uma especificidade que fuja ao padrão segregacionista. Articulá-la com a coleção "internacional", com propostas curatoriais inventivas, certamente trará benefícios gerando leituras novas e uma recepção alargada da cena contemporânea.
É notória a falta de comunicação entre produtores culturais e intelectuais na América Latina, apesar da proximidade geográfica. Como estabelecer novos canais de articulação e criar pólos de discussão no sentido de se pensar identidades e diferenças, é um desafio para o novo século. A Casa Daros pode ser um divisor de águas na costura destas aproximações. A presença dos artistas na constituição de um espaço de criação é um ponto determinante da idéia de uma "Casa" e desta possível articulação de micro-comunidades imaginárias dentro deste território diversificado e multi-cultural que é a América Latina.
Carlos Amorales, Dark Mirror, 2004
coleção daros, foto de Thomas Landen
CARLOS AMORALES EM ZURICH E PUNTOS DE VISTA EM BOCHUM
A Daros em sua sede em Zurich combina uma área administrativa junto à bilbioteca - que em breve irá se tornar referência européia na produção latino-americana - e um amplo espaço de exposições com anexo para atividades educativas. Este espaço expositivo situa-se ao lado da Kunsthalle de Zurich, em uma antiga cervejaria. São três grandes salas que abrigam agora uma exposição do artista mexicano Carlos Amorales.
Tomar um artista representado na coleção e convidá-lo para um projeto especial solo é uma das direções curatoriais adotadas pela Daros. O ponto central desta mostra é o seu arquivo líquido, com figuras digitais extraídas de um imaginário ao mesmo tempo surrealista e pop. Há algo dos clichês visuais, próprio a uma estratégia pop, que se alia a um estranhamento provindo de associações figurativas e metamorfoses visuais oriundas de uma influência poética surrealista. As imagens deste arquivo de desenhos digitais - o arquivo líquido - são também deslocadas para filmes de animação, como Dark Mirror, que dá título à exposição. Uma mesma tela projeta de um lado a imagem de um pianista - José Maria Serralde - executando uma composição trabalhada a partir das figuras de Amorales e, do outro, uma animação feita por André Pahl com os mesmos desenhos. Além das exposições, é regra a publicação de um catálogo/livro, onde sempre há uma longa entrevista com o artista, além de material educativo e palestras, produzidos em parceria com ele.
Na cidade alemã de Bochum, por sua vez, está sendo realizada uma exposição coletiva da coleção, com curadoria de Hans-Michael Herzog, cujo título "Puntos de Vista", aponta para a vontade de pôr em contato olhares e poéticas heterogêneas. São ao todo 160 obras da coleção, com 31 artistas expostos. Sabendo-se que uma outra grande exposição da coleção latino-americana está simultaneamente no Museu de Arte Contemporânea de Sydney, na Austrália, temos a dimensão do que se pode fazer com ela e seu potencial de visibilidade. O importante, neste aspecto da visibilidade, é a qualidade dos trabalhos e as opções da curadoria pela aquisição de obras-chaves e de conjuntos de peças de cada artista representado.
Se tomarmos, no caso brasileiro, a presença significativa de obras de Lygia Clark, Mira Schendel, Antonio Dias, Waltércio Caldas, Mario Cravo Neto, Vik Muniz, Rosangela Rennó, Ernesto Neto, para citar só alguns, vemos que o recorte da coleção é relevante, abrangente e capaz de estabelecer diálogos polifônicos com a produção internacional. Os demais países da região têm o mesmo tipo de representatividade. É exatamente a possibilidade de estabelecer diálogos alargados e originais o que fará com que a produção da América Latina ganhe força no desenvolvimento da história da arte contemporânea. A idéia de uma coleção regionalizada como esta, como discutido acima, não é a de fechá-la em um gueto, mas de abri-la para o mundo. Se as vanguardas modernas, essencialmente européias, trabalhavam sob a égide da ruptura, da diacronia poética (com os traumas das influências) e de uma compreensão teleológica da história, as vanguardas contemporâneas (se quisermos manter este termo), são globalizadas, apostam na articulação de linguagens, na sincronia poética e numa visada perspectivista da história - em que cada contexto cultural lida com a História a partir de uma situação singular. O mundo globalizado não deve se constituir pelo consenso ou pela identidade, mas no dissenso e nas diferenças em constante tensão e negociação. O que temos visto nas últimas décadas é justamente a produção dita periférica oxigenando e criando hibridações renovadoras para a produção central.
Rosangela Rennó, foto de Luiz Camillo Osorio
Somos recebidos na exposição de Bochum da Coleção Daros por um vídeo magnífico do artista colombiano Oscar Muñoz, de 2003, em que um rosto é desenhado na parede e vai se apagando lentamente, pois feito com uma linha de água. O movimento contínuo e singelo do desenho e do apagamento reproduz o processo inacabado da subjetividade contemporânea, que está sempre se construindo, se desconstruindo e se reconstruindo. Ao seu lado, outro vídeo com alta dosagem poética do artista cubano Juan Carlos Alom, "Habana Solo", de 2000. Uma combinação de músicas, imagens e expressões, extraídas em Havana, reunidas como se fosse por um DJ áudio-visual buscando revelar/homenagear uma realidade multi-cultural cuja temporalidade cotidiana, para o bem e para o mal, é absolutamente singular. A cena final, com uma dança silenciosa, é magistral.
Um dos diálogos interessantes produzidos nesta exposição é entre as fotografias da chilena Paz Errázuriz (uma série de figuras bizzaras) e da brasileira Rosangela Rennó (série do museu penitenciário). Ambas lidam com o retrato buscando trazer à visibilidade as margens (in)visíveis de nossa sociabilidade cotidiana. São fotos em preto e branco, secas, ásperas e estranhas. Outros diálogos que potencializam poéticas individuais são as de Guillermo Kuitca com Leon Ferrari e de Antonio Dias com Alfredo Jaar. O espaço, a cidade e a política são percebidos e reinventados segundo os contextos históricos e culturais de cada obra, postos em tensão tendo em vista as possibilidades variadas de articulação entre uma perspectiva local e uma visada global.
Paz Errázuriz, foto de Luiz Camillo Osorio
No terceiro piso da exposição é tematizada a "Presença Africana" na América Latina. Mesmo tratando deste tema que remete a uma origem cultural específica, portanto a uma identidade marcada, as formas de abordagem são múltiplas e variadas, indo de elementos mais evidentes presentes nas obras de Mario Cravo Neto e Marta Maria Perez Bravo até apropriações irônicas do imaginário e da religiosidade popular nas peças de Nelson Leirner. São muitas as Áfricas da América Latina.
A Casa Daros carioca será inaugurada oficialmente em 2008, mas já estará abrindo o seu espaço/barracão - construído em um anexo enquanto as obras não terminam - a partir deste segundo semestre para começar o trabalho educativo na preparação de futuros artistas-educadores. No mês de Outubro será realizado um Simpósio fechado com 20 artistas e críticos convidados, brasileiros e estrangeiros, para abrir a discussão sobre o papel e o desafio da coleção e da Casa Daros no Rio de Janeiro. Como enfatizado por Eugenio Valdes - responsável pela implementação do projeto educativo e que junto com o curador Sebastián López dirigirá a Casa aqui no Rio em estreito diálogo com o diretor e curador da coleção Hans-Michael Herzog na Suíça - o principal objetivo é acolher os processos criativos contemporâneos, afirmando-se como uma casa de artistas. A arte como uma forma de conhecimento e a educação como processo criativo.
Para a nossa sorte, há disposição de trabalho, uma excelente coleção e, acima de tudo, a intenção de desdobramentos de longo prazo. A possibilidade de laços poéticos novos oriundos desta aproximação regional é uma promessa com a qual todos deveriam se comprometer para que o resultado seja fecundo. Os vários micro-climas culturais e espirituais do continente podem se articular e abrir canais de comunicação e compreensão originais para o alargamento de nossas perspectivas históricas. Os desafios são muitos. A cidade, tão esvaziada nos últimos anos, mas ainda tão cheia de potencialidades, merece esta oportunidade. É muito bem vinda a Casa Daros.
1 - WALLACE, KEITH - Certain Encounters, Morris and Helen Belkin Art Gallery, Vancouver, Canadá, 2006.
Luiz Camillo Osorio - Crítico de arte, Professor de Estética e História da Arte da UNIRIO e da PUC-RJ, membro do Conselho de curadoria do MAM-SP, autor dos livros "Flavio de Carvalho", Cosac&Naify, SP, 2000, "Abraham Palatnik", Cosac&Naify, 2004 e "Razões da Crítica", Zahar, RJ, 2005.
Que esta semente se reproduza em muitos frutos para as artes aqui nesse nosso Brasil imenso e cheio de diversidades,e em toda América Latina.
Posted by: sandra schechtman at agosto 7, 2007 1:08 AMExcelentes, a notícia e o artigo. Será um estímulo novo para a produção de arte no Rio de Janeiro e será no mínimo interessante acompanhar a repercussão da iniciativa em nosso meio de arte. Trata-se de uma investida contra a "tradição" local, ou a "traição" local, a nossa forma dispersiva/evasiva de ser. Há uma idéia de amálgama, sistematização, inédita. Só uma pergunta - em uma política de tão generoso espectro, o teato não deveria estar presente?...
Posted by: Tania Brandão at agosto 7, 2007 10:34 PMO artigo do Camillo Osório é bom. Ainda não conheço este jovem crítico.
Quanto ao projeto Daros acho excelente. Só implico com o nome "Latinamerica" pois nós aqui não somos itálicos. O correto é IBEROAMERICA, pois é isso que somos! Somos americanos sim, mas não fomos fundados pelos romanos! É preciso começar a dar um stop nessa coisa de chamar música de Caribe e nossa America de "latin"...
Evany Fanzeres
Grande Camilo a sua escrita me alenta sempre, quando com ela me deparo, admiro a sua imagem verbal que nos faz ver o narrado, nos diverte,nos esclarece, pondera e nos faz rememorar belos tempos de um outro centro que ficou nos 60/70... o MAM de nossas histórias.Um renascer
que podemos começar a vislumbrar com a casa DAROS, como vc relata com a presença dos artistas na constituição de uma espaço de criação e desta possivel articulação de micro-comunidades imaginárias dentro deste território diversificado e multicultural que é a américa latina ou melhor como a Evani Fanzeres protesta, a ibero américa.
Grande abraço de ,muito respeito do seu amigo Zúñiga
Posted by: luis zúñiga at março 24, 2008 12:01 AM