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maio 14, 2007
Cidade dormitório, por Rubens Pileggi Sá
Visão parcial do trabalho de Guga Ferraz, em exposição nas paredes externas da Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro. Foto: Paulo Inocêncio
Cidade dormitório
RUBENS PILEGGI SÁ
Já conhecia algumas coisas que ele tinha feito, como o adesivo para grudar em placas de sinalização nas paradas de ônibus. Sobre o desenho do ônibus, nas placas, era adicionado um outro desenho, de fogo, deixando o ônibus em chamas. Isso bem na época em que começaram a incendiar os ônibus no Rio de Janeiro.
Outro, tão ácido quanto, só que mais irônico: o desenho do Bush impresso sobre panos de chão. Coisa bem popular. Para quem não gosta do presidente dos EUA - cerca de 80% da população do planeta - este é um adereço indispensável para se ter em casa!
Mais um, só para ilustrar o texto. Simulando o desenho de indicação da saída de emergência colado nos vidros de ônibus, ele fez outro em que, no lugar da mão que empurra o vidro, há uma mão segurando uma arma. E, depois, escrito em baixo: "em caso de assalto, não reaja!".
Sabia da sua ligação com o Zona Franca, uma ação coletiva de chamar artistas para mostrar trabalhos experimentais, na Fundição Progresso. E, também, que ele é um dos editores da revista de arte O Ralador. Além de participante da ação de colar cartazes lambe-lambe, do coletivo de arte Atrocidades Maravilhosas.
Por aí já dá para sentir seu engajamento artístico e sua postura de enfrentamento com a realidade. E, até uma das características de seu trabalho, a repetição serial. Seja como impressão, gravura, ou como células que se desenvolvem, se multiplicam. Por exemplo, uma de suas proposições, intitulada "Coluna", em que várias pessoas - uma sobre o ombro da outra - faziam as vezes de sustentação de edifício, pode ser considerado um desses casos.
Visão parcial do trabalho de Guga Ferraz, em exposição nas paredes externas da Galeria Gentil Carioca, Rio de Janeiro. Foto: Kiko Nazareth
Repetição. Uma das portas para entender seu trabalho. Pois é disso que o artista tirou partido para criar seu "Cidade Dormitório", na parede da Galeria Gentil Carioca, na região central do Rio de Janeiro. Lá, em plena integração com a arquitetura do local - exteriormente suja e abandonada - a Praça Tiradentes, hotéis de baixa reputação e o Centro Cultural Hélio Oiticica, Guga crivou um "beliche" de 08 (!) andares.
Oferecendo um equipamento urbano a quem quiser passar algum momento - ou fazer qualquer outro tipo de ocupação - descansando em um dos "cômodos" dessa estrutura de ferro, com grades de madeira e chumbada à parede. E com colchonetes em todos os andares. Algo que lembra o minimalismo - pela pureza e repetição formal - mas zomba da história da arte.
Tal instalação de rua leva a pensar, primeiramente, na questão do déficit habitacional que impera no país, em geral, e, no Rio de Janeiro, em particular. E poderíamos ser induzidos a crer que o trabalho é um protesto do artista contra o estado de indigência que grassa pelo centro da cidade. Pode ser. Qualquer mendigo que quiser se apossar de um dos "quartinhos" pode fazê-lo, pelos próximos quatro meses, que é o prazo para a obra permanecer no local. Pelo menos é essa a intenção: de uso, de ocupação.
Sugere, também, tratar-se de uma mimese de um conjunto habitacional popular qualquer, como esses "ninhos de pombos" que se constroem, cada vez mais, para pessoas que podem pagar cada vez menos. E, já que a questão é tratada pelo viés da arte, aquilo pode ser um prédio qualquer, ou, mesmo, um brinquedo lúdico. Ou mesmo como uma proposta de nomadismo como estilo de vida. Um dia dormir aqui, outro dia lá, e assim por diante.
(Passando por ali, uma noite, dois dias depois da inauguração da exposição, as crianças do bairro e a polícia que vigia o local queriam saber o que era aquilo. E acabaram achando divertida a idéia daquele objeto. Logo as crianças fizeram dali seu brinquedo. E os guardas foram embora.)
O fato é que não há nesse e nem nos outros trabalhos de Guga Ferraz algo tão filantrópico ou lúdico, propriamente, como há nos trabalhos do artista polonês Wodiczko, que faz equipamentos urbanos para indigentes. Ou, no trabalho de Vito Acconci, um artista dos Estados Unidos, que fez um equipamento urbano, dentro do evento Arte Cidade, em São Paulo, colocando sanitários, banheiros e oferecendo um local para os homeless descansarem. A crítica de Guga é mais ácida. É mais irônica. E a ambigüidade entre o funcional e o estético, equipamento urbano e sarcasmo, no mínimo faz qualquer pessoa pensar a respeito daquilo de forma desconfiada. Não perguntamos se o que vemos é arte. Perguntamos sobre aquilo que vemos.
Finalmente, há que se pensar nos riscos desse tipo de trabalho, de embate com a realidade, que não possui a possibilidade de recuo, uma vez colocado em circulação, nem de ser refeito, como uma pintura ou uma escultura. Menos, ainda, de ser escondido no porão de casa, caso não tenha ficado ao gosto do artista. Esse enfrentamento com o suporte "vida" é que o torna instigante, desafiador, pois, ao levar em consideração o contexto onde a obra é exposta, permite uma aproximação com as pessoas, dentro de questões que lhe são pertinentes, e não como arte cujos códigos nem sempre podem ser acessados por um público não especializado. Esse, de fato, o desígnio.
(mais imagens de Guga Ferraz em www.agentilcarioca.com.br)
Work in progress participativo
Uma explicação inicial
Uma vez que o lugar mais dinâmico e público da escrita são os comentários e opiniões dos leitores - podendo transformar o dito oficial em documento nulo, ou colocar em questão certos aspectos omitidos - gostaria de dar continuidade (como obra em processo) ao texto "Cidade Dormitório", de minha autoria, tocando em um ponto que me parece nevrálgico, no caso da obra de Guga Ferraz, que é o parentesco com os "Ninhos", de Hélio Oiticica.
O lugar do óbvio
O motivo pelo qual não atinei, na hora, sobre essa proximidade, talvez fosse pelo medo de chegar a alguma conclusão apressada, como o de acreditar que um trabalho fosse plágio descarado do outro. E todo o castelo de palavras construído para falar da admiração que tive pelo que está exposto na parede externa da Galeria Gentil Carioca, cair por terra.
Claro, há, de fato, um amadorismo geográfico meu em relação à cidade. Afinal, Centro Cultural Helio Oiticica e Gentil Carioca são vizinhos. E os Ninhos foram mostrados lá dentro. É o be-a-bá da arte contemporânea. Mas na hora eu não fiz a conexão. Refleti pensando outros entornos e me esqueci do mais óbvio: não dá para falar do "Cidade Dormitório" e esquecer "Ninhos".
O leitor cria a escrita
E já que se trata de um comentário sobre um texto crítico, analítico, nada melhor do que inventar a figura do leitor na figura do autor, fazendo coro como se fosse uma voz sampleada a um espetáculo solo que exige, antes de tudo, a participação, a interação e a troca. Nesse caso, inclusive, de papéis.
A invenção do leitor não é um postulado novo, mas na condição da virtualidade da escrita isso passa a ser um dado de linguagem. Afinal, nesse universo paralelo da internet é possível refazer, desfazer e transformar o texto, acrescentar ou diminuir, além, é claro, de dar-lhe cores e formas dinâmicas impossíveis no raciocínio impresso no papel.
Daí que voltar ao texto não é se desculpar por um esquecimento. Mas acrescentar-lhe a pertinência de idéias que estão na órbita das inquietações e possibilidades contemporâneas.
Uma vez que o leitor dos comentários está avisado de que o caso em que se discute tem a ver com a linguagem própria do lugar, inclusive, de onde esse dizer é dito, vamos à questão crítica sobre as obras, pois a partir delas tal texto (in)surge.
Aproximações e diferenças
As aproximações - principalmente de funções, ainda mais que as visuais - entre as duas obras, no fundo, traem a paternalidade que se esperava presente. Isto porque, enquanto Ninhos são pensados e executados para dentro da Galeria de Arte, dentro do Museu, dentro do Espaço Institucional, Cidade Dormitório está na rua, dialogando com a cidade, afrontando o Espaço Público Ou seja, desprotegido da aura de ser chamada de arte pelo cidadão que vai dormir lá.
Chama para si uma questão que está mais que viva, urge.
Historicamente, o trabalho de Oiticica segue em direção contrária a isso. Lembremos que sua obra se torna estetizada, cada vez mais, quanto mais se torna pública, arquitetural, como um parque de diversões sinestésico. Contemplativa, eu diria. Há Penetráveis destes, construídos após sua morte, na cidade.
Em "Cidade Dormitório" não podemos dizer isso. Ela é brutal, sem deixar de ser bela. Caberia dentro da Galeria, assim como cabe, como escultura, em uma praça.
Isso não tira o mérito da obra de Oiticica. Acontece que ela foi pensada para uma época onde a miséria aliada à bandidagem ainda podia ter algum romantismo. Hoje a questão é mais crua. O Bispo Sardinha, antropofagizado, se tornou os franceses canibalizados pelos próprios garotos que eles tiraram da rua. Perdeu (perdemos?) a graça.
Outra leitura possível na relação desses dois trabalhos pode ser pensada sob o ponto de vista do deslocamento. Tirar a cor da cor. Mas tirar o Ninho do Museu e metê-lo na rua: tirar o Ninho de seu ninho.
Isso ressignifica não só o espaço físico, como, também, o espaço mental. E é aí que entra o valor da obra de arte contemporânea. É aqui que a contemporaneidade da obra ganha sentido e razão.
A crítica como voz do público e o público como voz da crítica
Dizer a partir dos "comentários" sobre essa idéia de aproximações e diferenças e continuidade de processo torna mais palpável relações que se esboçam, aqui e ali, como possibilidades. Podem ser do texto ao texto. Da imagem à imagem. Mas da imagem ao texto, também. Replicando aqui e lá.
Coloca a questão da autoria em questão, porque quem escreve e tem autorização para publicar ganha um palco que quem está do lado de fora não tem e nem precisa ter para poder manifestar-se. Ou melhor, cria seu próprio espaço do dizer. Porque vai aonde é o lugar da crítica. No meio dos participantes. Que, em realidade, são os que fazem a obra existir.