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março 29, 2007
Paisagem inútil, por Rubens Pileggi Sá
"Campo de trigos com corvos" (1890), de Van Gogh: paisagem desesperada em sua última pintura
Paisagem inútil
RUBENS PILEGGI SÁ
"História: Aqui está um homem / Aqui está um cadáver / Aqui está uma estátua."
Joan Brossa
Depois de passadas tantas crises. Depois de tanto tempo esperando. Depois de ter conseguido domar a fera da revolta e da indignação que habitava seu peito, descobriu que não tinha mais nada a oferecer, então. Sua terra estava devastada. Aliás, perdera o direito a ela. Tinha sido expulso do Paraíso. Perdera sua Bela Vista. Agora só restava a paisagem desértica.
Mas o deserto não se resumia a um só lugar. Mas às idéias. E aos seus ideais, pelos quais um dia lutou. Apesar de tudo não podia desistir da vida, como fizera van Gogh depois de pintar "Campo de trigo com corvos", mas a imagem era similar. Não porque tinha vontade de continuar resistindo, mas porque lembrou-se de seu pai que dizia que "o problema é aonde cair vivo, não aonde cair morto". Riu, incomodado com o pensamento. Mas tinha medo da morte, também. Em caso de suicídio, sempre pensava, levaria mais uns vinte para o inferno, juntos com ele. E escolhidos a dedo. Na paisagem em que deveria colocar sua assinatura, havia ratos e não corvos. "Ratos não se transformam em humanos, mas, cada vez mais, humanos se transformam em ratos", tentou filosofar.
Em seu delírio, ainda balbuciou algo assim compreendido: "dominado pelas leis de mercado. Encurralado pelo discurso do progresso. Preso à histeria do consumo. Hipnotizado pela idéia fixa de que o trabalho é sagrado. De que a produtividade é redentora. E de que a tecnologia irá nos libertar para a exploração de outros Novos Mundos, a única coisa que o dito 'cidadão civilizado' quer, de fato, é vender ratoeiras e queijos". E mais: "esses ratos que não são ratos não se contentam apenas em vender. Querem controlar. Controlar para lucrar. Eis aí a utilidade do poder! Eis aí a consciência suprema que pode um rato-não-rato atingir!"
Era improvável, de qualquer modo, a busca por alguma inspiração mais altruísta. Já não podia e nem queria pintar outra coisa senão aquela cena catastrófica. Sentia-se como o andarilho que caminha sozinho, errante pelo mundo, despertando desconfiança por onde quer que passe. Um homem que questiona muito pode revelar algum aspecto podre, que ele traz dentro de si, nos outros. E isso pode gerar uma entropia perturbadora. O caos passa a ser ele, ao invés da situação.
Desistir não podia.
Talvez a tarde trouxesse alguma brisa, para aliviar o calor. Talvez tivesse forças para inventar uma paisagem encomendada para uma ocasião menos grave, embora o pêlo de seus pincéis, ressequidos pela tinta de tonalidades cinzas, denunciassem um abandono definitivo da idéia de pintar. E o que restava era apenas um quadro onde ratos pareciam se sentir à vontade com aquela paisagem inútil.
Li dois texto de Rubens e os achei ótimos. Esse no caso parece que me encontro assim . Bom saber que pessoas com grandes conhecimentos teem pensamentos semelhantes aos meus, ou melhor, tenho sentimentos semelhantes.
Posted by: ana elesbao at maio 18, 2007 9:56 AM