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março 19, 2007

As cores e os lugares em Hélio Oiticica: uma leitura depois de Houston, por Luiz Camillo Osorio

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As cores e os lugares em Hélio Oiticica: uma leitura depois de Houston

LUIZ CAMILLO OSORIO

A obra de Hélio Oiticica vem ganhando nos últimos anos uma visibilidade internacional surpreendente. Depois da consagração, inicia-se agora uma nova etapa: de pesquisa, catalogação e estudo dos vários momentos de sua trajetória, procurando explorar tanto os deslocamentos criativos como a coerência interna de sua poética. O Museu de Belas-Artes de Houston, através de sua curadora Mari Carmen Ramírez e do Centro Internacional de Arte das Américas (ICAA), em uma parceria com o Projeto Hélio Oiticica, realiza até abril uma primeira de duas grandes exposições do artista e dá o pontapé inicial para o catálogo raisonné, previsto em sete volumes. Oiticica ganhará outra envergadura a partir de Houston - com as pesquisas, as restaurações e as publicações.

Esta primeira exposição - Hio Oiticica: The Body of Color - que irá em Junho para a Tate Modern, foca nos anos 1955-1965, ou seja, das primeiras pinturas do grupo Frente até os parangolés. Como a cor é uma constante no seu percurso poético, são também apresentados alguns projetos da década seguinte: uma série dos topological ready-made landscapes e duas maquetes da invenção da cor, magic square Nº1 e Nº3 (esta última realizada no Museu do Açude do Rio de Janeiro).

Uma vez que a obra de Oiticica está definitivamente inserida no museu e na história da arte, é fundamental avaliarmos sua força e singularidade na cena contemporânea. Sua poética tem luz própria. Por um lado, há um dialogo intenso e riquíssimo com seus pares de geração apropriando-se da herança moderna e contaminando-a com uma energia popular de modo a pô-la em contato (e tensão) com a vida. Seria o caso de se repensar, por exemplo, os elos e as diferenças entre o neoconcretismo, a pop e o minimalismo; entre o "não-objeto", o "objeto-específico" e a "anti-forma". São características destas poéticas, a precarização da forma, a potencialização do corpo e a apropriação de uma multi-sensorialidade extraída da dança, do cinema, da poesia, além do samba, do rock e das drogas. Neste diálogo aberto, virão à tona diferenças extraídas de contextos culturais específicos e assim a rediscussão do Brasil na obra de Oiticica. Não poderei abordar aqui todas estas questões, gostaria de concentrar no que mais me tocou depois de visitar a atual exposição americana: o desenvolvimento da cor em sua obra, a partir do legado e dos deslocamentos da tradição moderna, e a invenção/descoberta de certa brasilidade, feita ao longo deste trajeto, por mais complicada (e perigosa) que seja esta discussão.

O Museu de Houston é um projeto de Mies van der Rohe. Suas galerias monumentais deram respiração singular à pulsação cromática da virada dos anos 50 para os 60, dos Bilaterais ao Grande Núcleo. É impressionante o frescor destas peças, que vibram ensolaradas com uma energia sempre renovada. Muitas obras foram restauradas pelos técnicos do museu texano e chegam a público pela primeira vez. Logo depois dos já conhecidos metaesquemas há uma sala magnífica com as pinturas e bilaterais brancos. Jamais vistos nesta quantidade, esta série branca mostra o diálogo aberto de Oiticica com Malevich, em que a projeção do plano e a sensibilidade tátil do branco como cor-luz-matéria se integram e se fortalecem. A materialidade da pintura e sua energia cromática não se excluem. A cor é matéria, ela vibra com as pinceladas, e ela é pulsação luminosa, criando um campo de ação que se expande no espaço. Esta dimensão de matéria da cor, sua densidade pigmentar e seus matizes de luz surgem pelo movimento e espessura das pinceladas. Sobressai assim uma vontade desidealizante de trazer a cor e a forma geométrica para sua dimensão tátil.

A passagem dos relevos espaciais, para as invenções, os bólides e o grande núcleo, culminando nos parangolés, dá toda a envergadura experimental da cor na obra de Oiticica. Entre os anos 1958 e 1964 sua poética sintetizou toda a experiência moderna da cor e a deslocou através da apropriação de novos materiais. Se em Rauschenberg podemos ver uma fusão peculiar da potência plástica de Picasso com a derrisão de Duchamp, em Oiticica, mais ou menos na mesma época, juntam-se a ambição construtiva de Mondrian com a materialidade caótica de Kurt Schwitters. Sem perda de rigor, e distante do contexto utópico do neoplasticismo, ele trouxe o ideário construtivo para o chão precário da realidade brasileira. O deslocamento em direção à informalidade aponta para a difícil questão de uma identidade cultural forjada fora dos parâmetros nacionalistas. Não se trata de reduzir Oiticica à questão da identidade ou da brasilidade, isso seria lamentável, mas de perceber até que ponto o atravessamento de uma realidade específica produziu um desvio singular em sua poética. Não há um abandono do diálogo "universalista", com toda uma tradição moderna indispensável, mas um reposicionamento da sua energia visual/sensorial pela contaminação de um corpo (do artista e da obra) tocado por uma situação específica de improvisação e precariedade. A equação vanguarda e subdesenvolvimento, tão cara à época, encontrou em Oiticica uma energia experimental dilacerante e radical, capaz de precarizar a forma para abri-la à processualidade e ao contato com o outro. O chão de brita do Grande Núcleo reverbera o diálogo tenso das invenções e dos bólides.

Um dado que sobressai vendo de perto o desenvolvimento da sua obra é como ela combina a mais extrema racionalidade com uma inacreditável capacidade de nos surpreender. De dentro dos meta-esquemas vemos germinar os bilaterais e até os penetráveis; entretanto, em cada etapa de sua obra irrompe uma qualidade que reinventa seus antecedentes e seus desdobramentos. Em momento algum de seu diálogo com a tradição moderna vem à tona qualquer sinal, por menor que seja, de angústia diante das influências. O passado é apropriado e se transforma em algo novo e singular. A justaposição de pinceladas de cor de Seurat, se mistura ao intenso movimento cromático de Delaunay, criando uma cor que é, em Oiticica, estrutura e tempo. Como salientou a curadora Mari Carmen Ramírez em seu ensaio no catálogo da exposição, a cor em Oiticica cruza todo o arco moderno que vai do "sentido de duração silenciosa viabilizada pela concretude física da Série Branca, até a temporalidade metafísica que se estrutura em torno dos Relevos espaciais e do Núcleo, chegando, finalmente, ao tempo-real revelado pela cor-em-ação dos Parangolés"1. Da concretude à ação, passando pela metafísica, a cor em Oiticica "resplandece como pele de fera", revelando uma consciência interiorizada da história da pintura que se desdobra nos mais diferentes meios e suportes, oferecendo-se integralmente ao espectador.

Para se entender o caminho experimental da cor em Oiticica, ultrapassando a relação do plano com a opticalidade, que começa nos bólides, passa pelos parangolés e chega aos trabalhos finais, é importante ir além da tentação (freqüente em uma certa leitura crítica) de vê-la como mera dissolução da forma que refletiria uma relação passiva e dócil com o mundo. Para isso, há que se repensar as formas de recepção e a temporalidade da obra no desafio de dar corpo à cor diante do risco de domesticação institucional. A rediscussão da temporalidade nos leva a reavaliar o nosso próprio tempo histórico em sua sintonia e singularidade frente à modernidade central2. Como já dito, não se trata de isolar a obra dentro de um enquadramento culturalista, fazendo da identidade cultural um obstáculo à inserção ampliada no concerto das nações modernas. Ao contrário, é justamente pela nuança de um acento particular que se pode contribuir para o alargamento das formas de vida e de subjetividade contemporâneas.

Em um texto emblemático, o artista Nuno Ramos (apesar de discordar da sua leitura devo reconhecer seu brilhantismo e agudeza) observa que "H.O. quase sempre utiliza tons e matizes, e não cores puras. Há nesta escolha, desde logo, um amor pelo intermediário, pelo que é provisório, que serve de ponto de partida, intensificando-se até o absoluto. Este assalto à idealidade pelo que é passageiro e banal - e as asperezas das madeiras de compensado são testemunhas disso - é decisivo em seu trabalho. O amor aos matizes e tons, à gradação de cores intermediárias, certamente provém daí". Um pouco mais à frente, concluindo este longo parágrafo, ele acrescenta que "há uma passividade nesta expansão controlada e sem sobressaltos, uma monotonia nesta passagem das imperfeições do material ou da característica intermediária da cor à sua duração, cercando o espectador por todos os lados, que vão oferecer um solo comum nos próximos trabalhos. Nasce com os Núcleos este sono desobstaculizado, tão intenso quanto aconchegante, que elide o mundo e protege o sujeito, característico de todo o trabalho de Oiticica"3. Uma curiosa mistura de Antonio Candido (no método) e Paulo Prado (no temperamento) perpassa toda a análise. Gostaria de oferecer uma alternativa "tropicalista" de leitura, mais ao gosto de um Gilberto Freire, em que a suposta passividade desdobra-se em sensualidade, jamais em monotonia, e a elisão do mundo, se é que existe, longe de proteger o sujeito, vai lançá-lo ao desabrigo de uma necessidade de "sentir de todas as maneiras" que quer contrapor-se à lógica tediosa da eficácia. Esta seria uma aposta decadentista, não houvesse no interior de sua poética uma carga concentrada de trabalho, recusando todo espontaneismo, e energia criativa. A passividade, presente nos momentos de relaxamento e introspecção, convive com a vontade de potência, impedindo sua obra de descambar para um vitalismo autoritário ou para uma acomodação alienada. Ela é para todos e para ninguém.

Por outro lado, nossa modernização atrasada e incompleta, cheia de sobressaltos, arredia às normas de sociabilidade impessoais, traz consigo, para além dos problemas sabidos, um horizonte de inventividade comum onde precariedade e potência irmanam-se. Não se trata de valorar nossa singularidade, mas de marcar uma diferença a ser enfrentada, transformada e qualificada. A obra de Oiticica, com seu jogo de nuances e matizes cromáticos, suas arestas e dobras articulando interior e exterior, longe de se recusar a enfrentar o mundo, propõe-se a liberar uma disposição participativa que faz o movimento de mão-dupla indo da intimidade subjetiva ao compartilhamento aberto e plural. As mazelas de nossa formação patriarcal desdobram-se na cordialidade dos favores autoritários, cuja brecha positiva, todavia, seria a penetração a contrapelo de um tempero afetivo e informal nas relações sociais. A interpenetração da informalidade social e da formalidade normativa responde por parcela significativa de nossa injustiça e desigualdade aterrorizantes, assim como pela vitalidade criativa que brota da precariedade. O tempo das obras de Oiticica joga com estas passagens e meios-tons, ritmada pelos sobressaltos de uma energia potente e pelos recuos, cheios de frustração, das realizações adiadas. À atualidade da presença física das cores, dos materiais e das formas, agrega-se a virtualidade de possíveis desdobramentos a serem vivenciados por cada um, na hora e no lugar oportunos. É indispensável dispor-se à presença de sua obra no que ela tem de forma atual e de força virtual.

Há que se reverter o risco de domesticação institucional em disponibilidade poética, viabilizada nos encontros momentâneos com instantes de invenção. Estes momentos em que intenção e casualidade convivem, são freqüentes na obra de Oiticica: nos seus fragmentos de cor, poesia e precariedade. Isto não necessariamente se dá dentro do museu, mas pode se disponibilizar a partir daí e ficar aguardando uma atualização qualquer. Ou não. Esta exposição de Houston mostra que o vigor de sua obra ultrapassa toda redução a uma identidade cultural. Ela é arte em estado puro, com seus limites e surpresas, que se projeta em direção ao mundo e a qualquer um, tendo sido lançada, todavia, a partir de um solo cuja singularidade da formação social é simultaneamente um problema e uma possível solução. Sua obra, com seus tons e matizes incertos, consegue ser trágica e otimista, como os sambas de Noel.

Luiz Camillo Osorio - Professor de Estética e História da Arte na UNIRIO e PUC-RJ, crítico de arte e autor dos livros, Flávio de carvalho, Cosac&Naify, 2000; Abraham Palatnik, Cosac&Naify, 2004 e Razões da Crítica, Zahar, 2005.


RAMÍREZ, Mari Carmen - "The Embodiment of Color - from the Inside Out", Catálogo da Exposição Hélio Oiticica: the Body of Color, MFAH, Houston, 2007, pág 34 (tradução do autor). (retorna ao texto)

Esta discussão da sintonia entre diferentes tempos históricos e tradições culturais, para além das relações de determinação e influência, surgiu-me depois da leitura da entrevista dada por Silviano Santiago a Madalena Vaz Pinto, apresentada como anexo à sua Tese de Doutoramento defendida no departamento de letras da PUC-RJ, sob o título "Modernismo em Língua Desdobrada: Portugal e Brasil". (retorna ao texto)

RAMOS, Nuno - "À Espera de um Sol Interno", Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Rio de Janeiro, 28/07/2001, págs 4 a 6. (retorna ao texto)

Serviço:
Hélio Oiticica: The Body of Color

17 de março a 1º de abril de 2007

Museum of Fine Arts
1001 Bissonnet Street, Houston - EUA
(713)-639-7300
www.mfah.org

Posted by Luiz Camillo Osorio at 2:19 PM