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janeiro 6, 2007
Bienal ETC. - O que o Acre tem a nos dizer - Entrevistas com Marjetica Potrc e Susan Turcot, por Fernando Oliva
Vista da instalação de Marjetica Potrc na Bienal
Bienal ETC.
O que o Acre tem a nos dizer - Entrevistas com Marjetica Potrc e Susan Turcot
FERNANDO OLIVA
O trabalho da Marjetica Potrc para a Bienal se baseava, desde o início, em uma crença: na inteligência e no poder das comunidades rurais do interior da Amazônia. Antes mesmo de decidir que faria sua residência artística no Acre, a artista eslovena tinha uma questão, de onde partiu em direção ao desconhecido: de que maneira essas comunidades, supostamente isoladas, convivem entre si e com o mundo "exterior"?
Ao chegar lá, onde trabalhou por cerca de dois meses, ela baseou suas investigações nos principais projetos da região para o futuro próximo: um novo modelo de cidadania (batizada "florestania"); uma economia de pequena escala; o exemplo sócio-educativo da Universidade da Floresta; um entendimento avançado da noção de "propriedade coletiva" e da utilização sustentável dos recursos naturais; a proteção e a preservação do conhecimento e dos territórios.
De volta a São Paulo para realizar seu projeto no Pavilhão, o abismo entre as duas realidades, tanto do ponto de vista social quanto cultural, chamou a atenção de Marjetica, o que a levou a afirmar, nesta entrevista ao Bienal ETC.: "Talvez você ache isso uma contradição, porém as questões com as quais os acreanos estão lidando, caso da sustentabilidade, estão, sob muitos aspectos, mais próximas dos europeus que dos paulistas. Quando eu estive em São Paulo, todos falavam sobre o Acre como um lugar longínquo, um território desconhecido. Contudo, o fato de os paulistas verem a si mesmos como ocupando o centro, não os faz deles pessoas mais avançadas. Ao longo da maior parte do Acre, por terem que se virar sem muitos produtos da modernidade como auto-estradas e ferrovias, as diversas comunidades conseguiram extrair o máximo de seu isolamento, conquistando liberdade para pensar em caminhos e escolhas mais progressistas que as de São Paulo".
Em sua obra para a Bienal - uma situação instalativa muito bem articulada, que combinava desenhos, vídeos, grafitti e objetos, incluindo a recriação, em madeira, de uma pequena escola rural sobre palafitas - a artista escreveu "frases de ordem", em inglês, à maneira de pichações nos muros de uma cidade, como "Complex knowledge and linear thinking need each other" e "We know: it's all about shared knowledge, on equal terms with others". Há também afirmações irônicas, como "Masp over Brasília. Lina Bo Bardi knew: hope is with the people of the Forest".
Na entrevista que se segue, Marjetica reflete sobre sua participação no evento, e seu discurso reafirma a integridade e a complexidade de sua proposta, Xapuri: Rural School, que conseguiu dar origem a "formas políticas" em produtiva simbiose com "formas artísticas", integrando as possíveis contradições e não as procurando anular ou submetê-las à lógica interna de seu projeto.
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Já Susan Turcot, que também fez do Acre sua residência por certo tempo, optou por realizar desenhos a lápiz e ministrar workshops junto às comunidades florestais que a receberam. Na volta a São Paulo, e no choque com a situação controlada que caracteriza um espaço expositivo institucional, ficou claro que a artista canadense foi sensibilizada pelo terreno de contrastes pelo qual trafegou: "As matas originais, hoje fragmentadas, são lugares onde você pode ver claramente as causas e os efeitos de decisões tomadas à distância, e essas comunidades e ecossistemas acabam assumindo o pior destas políticas".
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Nas conversas a seguir, questões semelhantes foram colocadas para Marjetica Potrc e para Susan Turcot, em momentos distintos (ambas entrevistas foram realizadas por correio eletrônico, depois que as artistas já haviam retornado a seus respectivos países).
Entrevista com Marjetica Potrc
Canal Contemporâneo - Quando você escolheu realizar sua residência no Acre, o que esperava antes de chegar lá? Que espécie de imagens tinha em mente?
Marjetica Potrc - Quando eu fui convidada a participar do programa de residência da Bienal, me disseram que poderia ser tanto uma residência urbana quanto uma rural. Eu decidi sem hesitação ir para o Acre, esta área rural e florestal da alta Amazônia. Por que? Durante os últimos dois anos, desde que eu me interessei pelas comunidades rurais, descobri que elas podem ser altamente articuladas e inventivas. E mais: elas podem produzir idéias melhores para o futuro do planeta do que as que você encontra nas regiões urbanas. O ano de 2006 marcou um significativo turning-point: mais da metade da população mundial agora vive nas cidades, lugares que mais do que nunca estão sentindo o peso da civilização que criaram. Neste contexto, pode ser que as áreas rurais se transformem em um novo berço para a sociedade civil, seu renascimento.
No sentido em que Jacques Ranciére estabeleceu, particularmente em A Partilha do Sensível, como você vê as relações entre "práticas estéticas" (formas de visibilidade das práticas artísticas) e "práticas sociais" no contexto da sua produção?
Bem, a estética nunca é neutra. Eu nunca separei arte da vida real, elas são uma coisa só. Em meu trabalho, tento fazer uma mediação.
Sim, mas deve ter acontecido algum tipo de embate entre o seu trabalho, de um lado, e o contexto cultural, social e político do Acre, de outro. Neste sentido, como você avalia as transformações, se houve, tanto para a sua obra como para as comunidades com as quais você esteve?
No Acre, eu viajei bastante e conversei com muitas pessoas. Espero ter conseguido transmitir para o grande público de São Paulo, ao menos em algum nível de entendimento, as complexas estratégias e práticas que testemunhei. Talvez você ache isso uma contradição, porém as questões com as quais os acreanos estão lidando, caso da sustentabilidade, estão, sob muitos aspectos, mais próximas dos europeus que dos paulistas. Quando eu estive em São Paulo, todos falavam sobre o Acre como um lugar longínquo, um território desconhecido. Contudo, o fato de os paulistas verem a si mesmos como ocupando o centro, não os faz deles pessoas mais avançadas.
Ao longo da maior parte do Acre, por terem que se virar sem muitos produtos da modernidade como auto-estradas e ferrovias, as diversas comunidades conseguiram extrair o máximo de seu isolamento, conquistando liberdade para pensar em caminhos e escolhas mais progressistas, até, que as de São Paulo.
Quanto à produção cultural do Acre, eu estou interessada, como sempre, em trabalhos que refletem a cultura contemporânea. Eu adoro os vídeos de Sergio de Carvalho e Souza, produzidos em colaboração com a Amazonlink, uma ONG baseada em Rio Branco.
Em seu trabalho para a Bienal, pode-se ler na parede afirmações como "Estamos conectados com o mundo exterior em termos próprios" e "Nós sabemos: a questão toda é sobre conhecimento compartilhado, nos mesmos termos para todos". Em que medida esta operação se refere à idéia de "negociação com o outro", proposta comum aos trabalhos de arte colaborativa?
No projeto para a Bienal, eu me concentrei em dois temas: educação e o desenvolvimento de novos territórios no Acre. A declaração "We are connected to the outside world on our own terms" se refere ao que eu qualifico de "estratégias de comunidades tipicamente do século 21". No Acre, nos últimos 15 anos, grandes extensões de terra, incluindo áreas urbanas, foram disponibilizadas para que as comunidades as gerenciassem de modo sustentável. Os moradores que administram esses territórios encaram a economia em pequena escala tanto como uma ferramenta para sua própria sobrevivência, quanto como um novo modelo econômico que é crucial para a sobrevivência do planeta e a sociedade como um todo.
O futuro do mundo dependeria das lições de equilíbrio que os territórios controlados localmente, auto-geridos, e as economias em pequena escala derem às forças globalizantes das companhias e organizações multinacionais? As pessoas com as quais eu conversei no Acre definitivamente pensam que sim, e que os modelos desenvolvidos por elas podem servir de exemplo global.
A afirmação territorial das comunidades acreanas e sua proteção do conhecimento caminham de par com uma espécie de conectividade dirigida. De fato, elas estão conectadas com o mundo a seu próprio modo. Também é importante lembrar que a criação de reservas extrativistas tem sido parte de uma política internacional desde 2004. O que nós estamos presenciando é uma nova territorialização.
A educação é outro tema central neste meu projeto. Existem dois tipos de parceria em curso hoje no Acre. Uma delas envolve a criação de escolas primárias em áreas remotas, uma sociedade entre as comunidades locais e o governo. Uma escola típica é equipada com extensos painéis solares e uma antena parabólica, ou seja, os meios para se conseguir energia e se comunicar.
A outra iniciativa é a Universidade da Floresta, cujo objetivo é articular conjuntamente o conhecimento de seringueiros, populações indígenas, acadêmicos e cientistas, com o intuito de promover o encontro do know-how regional, complexo e "específico", com o conhecimento "analítico" da ciência ocidental.
Esta proposta faz sentido, uma vez que o Brasil é um país de alta tecnologia, porém no qual a sabedoria adquirida por aqueles que vivem na floresta não é ensinada nas salas de aula, mas experimentada diretamente. Seringueiros e índios, os guardiões da floresta, não querem ser objetos de pesquisa. Eles querem contribuir, em bases igualitárias, para a cultura compartilhada do mundo atual. A região amazônica não apenas possui a maior biodiversidade do mundo, mas é também uma fonte importante de conhecimento aplicado.
Quanto ao outro statement "We know: it's all about shared knowledge, on equal terms with others", trata-se de uma referência às aspirações das pessoas que fizeram a Universidade da Floresta se tornar uma realidade. Eu gostaria de acrescentar que esta universidade foi iniciada há 30 anos. Ela está sediada em Cruzeiro do Sul, mas possui 21 postos avançados de pesquisa na floresta, um deles em um barco; e há um ano organiza um programa de estudos, chamado Ceflora. O historiador Marcos Vinicius Neves, de Rio Branco, me contou que a idéia surgiu pela primeira vez durante um encontro em Marechal Taumaturgo (um dos municípios da Amazônia Legal), já com a proposta de transformar a cidade em um grande laboratório.
Sendo assim, devo lembrar que a construção de uma sociedade - o que é claramente a situação em curso no Acre - é pelo menos tão importante quanto construir edifícios. Além do que, nós construímos edifícios de acordo com nosso entendimento do mundo.
Gostaria que você refletisse sobre as possíveis aproximações entre a sua instalação no Pavilhão e o tema curatorial Como Viver Junto.
A minha instalação Xapuri: Rural School apresenta um estudo de caso focado em uma escola primária na cidade de Xapuri, no Acre. O edifício está equipado com extensos painéis solares e uma antena parabólica. A questão que Roland Barthes propõe, "como viver junto?", possui ressonâncias na escola, em diversos sentidos. Não apenas pela importância da educação (no Acre, estas escolas com painéis solares e parabólicas são chamadas de power kits), mas também no sentido de que essas construções representam uma colaboração entre as comunidades locais e o governo. Eu incluí desenhos, um vídeo e outros trabalhos para situar a instalação em um contexto mais amplo.
Still de vídeo realizado por Marjetica Potrc
durante sua residência no Acre
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Entrevista com Susan Turcot
Canal Contemporâneo - Quando você escolheu realizar sua residência no Acre, o que esperava antes de chegar lá pessoalmente? Que espécie de imagens tinha em mente?
Susan Turcot - Na verdade foram os próprios curadores da Bienal que me sugeriram o Acre como local de residência, uma vez que eu me interesso, no contexto do meu trabalho, por questões do meio-ambiente e comunidades florestais. As matas originais, hoje fragmentadas, são lugares onde você pode ver claramente as causas e os efeitos de decisões tomadas à distância, e essas comunidades e ecossistemas acabam assumindo o pior destas políticas.
No sentido em que Jacques Ranciére estabeleceu, particularmente em A Partilha do Sensível, como você vê as relações entre "práticas estéticas" (formas de visibilidade das práticas artísticas) e "práticas sociais" no contexto da sua produção?
Este é um diálogo essencial, uma vez que alguém tem a intenção de "tornar visível", por meio de imagens, um universo de sensibilidades subjetivas compartilhadas. O que, espera-se, funcione como um catalisador na direção de futuras investigações.
Desenhar com um lápis é uma experiência direta e comum a qualquer pessoa. Eu não tenho que ensinar nada ou fornecer algum equipamento para me comunicar. Eu estava bem preparada quando cheguei ao Acre, porém obviamente o trabalho só pode ser iniciado e ganhar forma por meio das experiências pessoais e com base nas trocas. E eu fiquei surpresa com os desenhos à medida que foram se desenvolvendo. Tive a impressão de estar sendo conduzida por eles em direção a um novo território, e isso se deve em grande parte à generosidade das pessoas que encontrei lá.
Quando elas viram os desenhos, sentiram-se parte das minhas investigações e deram a entender que eu estava documentando o imaginário visual que elas carregam, situado entre o rural e o urbano, entre o mundo mitológico e o real.
Eu posso afirmar que a proposta de "transformação" efetiva foi bastante tangível, e fiquei com a impressão que pude restituir esta experiência por meio dos workshops de desenho e das conclusões a que chegamos nas discussões coletivas.
Seus desenhos são, na maioria, vistas panorâmicas, e não há um olhar em direção aos detalhes De que maneira você descreveria a experiência de representar o que você viu no Acre? Qual poderia ser o significado de tomar uma distância em relação à realidade que você encontrou lá?
Eu era uma outsider no Acre, e neste sentido, para minha identidade lá, a distância era real.
Em si, os desenhos são bastante íntimos.
Há uma exploração pessoal, bem como referências a experiências de morte e transformação, além das histórias econômica e social.
A maneira de desenhar é detalhista, e as superfícies em close são cuidadosamente construídas até ganharem forma.
Do ponto de vista dos significados de seu trabalho e de sua recepção, gostaria que você comentasse a experiência do deslocamento entre o contexto sócio-cultural do Acre para o de São Paulo.
Foi difícil viajar para São Paulo, depois da experiência no Acre. São situações completamente diferentes. Não há muitas conexões entre as duas regiões, nem comunicação ou intercâmbios. Era importante que meus desenhos se desenvolvessem a partir da minha vivência lá, e do contato com as pessoas na cidade e na floresta. O trabalho não se pretendia a atender os dois territórios, Acre e São Paulo, nem se investir de códigos de acesso para o mercado internacional.
Neste contexto, de que maneira você se aproximou do tema da "negociação com o outro"?
A noção de "outro" é fortemente experimentada quando você passa pela imersão em uma história cultural totalmente estranha à sua. Esta foi uma questão importante para mim no Acre: eu me tornei meu próprio "outro", no lugar deles que eram de fato "o outro"? O que acho interessante perguntar é de que modo a sua sensação de segurança é desafiada, e como, daquele lugar de vulnerabilidade, você tem a oportunidade de se colocar questões que são relevantes para a situação como um todo.
Gostaria que você refletisse sobre as possíveis aproximações entre a sua instalação no Pavilhão e o tema curatorial da Bienal.
O Acre se tornou um projeto bastante sério para todos aqueles que decidiram trabalhar lá. Eu compreendi o seu espírito de autonomia e pude presenciar sua riqueza particular, inacessível para as pessoas das grandes metrópoles. Viver junto é possível quando as condições para as trocas, a sobrevivência, a saúde e a autonomia são determinadas por questões locais e não pelas organizações globais.
Desenho de Susan Turcot realizado
durante sua residência no Acre