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dezembro 14, 2006
Bienal ETC. - O espectador não faz a obra, por Paula Alzugaray
Cena da videoinstalação Fazer um vídeo,
de Wagner Morales, na Galeria Virgílio
BIENAL ETC.
O espectador não faz a obra
PAULA ALZUGARAY
Na melhor tradição das práticas artísticas colaborativas, Fazer um vídeo, de Wagner Morales, incorpora o espectador à obra, fazendo dele um participante. Mas a videoinstalação, em exposição na galeria Virgilio, em São Paulo, até janeiro de 2007, traz um dado novo à tradição: a autoria já não é compartilhada com o participador e o autor reassume a "autoridade" em relação ao espectador. O trabalho de Morales deflagra, dessa forma, uma reflexão sobre a apresentação e a recepção da obra pelo público no contexto das exposições de arte contemporânea.
Ao contrário do que o título indica, Fazer um vídeo não dá o passo a passo da realização de um trabalho. Mesmo que seja formada por três salas consecutivas, que corresponderiam a três etapas processuais, a videoinstalação não fala tanto de um processo de criação quanto da relação entre autor e espectador. Na primeira sala, há uma televisão de plasma e dois alto-falantes. Na tela, o espectador assiste à repetição da sala em que está situado, com os mesmos alto-falantes e o mesmo monitor de plasma na parede. Dentro do monitor de tevê virtual, que está dentro do monitor real, há outros espectadores, que têm seus movimentos "dirigidos" por uma voz que sai dos alto-falantes. "Vai mais para a sua direita, dá um passo para trás, olhe para as paredes, volte a olhar para frente, continue olhando para a televisão, afaste-se um pouco." Supondo que a voz pertence ao autor do vídeo que está em plena realização, constatamos que esse autor comporta-se como um diretor de cena, conduzindo o mise en scène de seu espectador.
Ao obedecer todos os comandos dados pela voz e movimentar-se sempre conforme "instruções", o visitante da instalação tem sua autonomia confiscada e é automaticamente privado da condição de participante da obra.
Cena da videoinstalação Fazer um vídeo,
de Wagner Morales, na Galeria Virgílio
A suspeita se confirma no segundo ambiente: uma sala pintada de verde, com fundo infinito. Na noite de abertura da exposição, havia ainda uma DV-CAM ligada, pousada sobre um tripé, apontando para o fundo infinito. Aqui, o visitante-participante teria a chance de atuar como bem entendesse, fazer uma performance, plantar uma bananeira, contar uma piada, fazer uma denúncia. Mas alguns códigos avisam que a câmera não está aberta para registros da vida cotidiana. O fundo infinito pintado de verde, somado à voz do diretor que ficou na sala ao lado, induz o participante a inibir seus impulsos de "vida real" e a comportar-se como um ator em um estúdio.
Cena da videoinstalação Fazer um vídeo,
de Wagner Morales, na Galeria Virgílio
No terceiro ambiente, a mesma imagem da sala ocupada por espectadores que assistem ao vídeo é projetada em toda a parede. Ou seja, aqui entendemos que a composição do vídeo de Wagner Morales é relativa ao espaço da sala 1 somado às pessoas gravadas no estúdio da sala 2. A relação é clara: o participante da obra de Morales é convidado a encenar sua relação com a arte contemporânea.
Que precipitações poderiam ocorrer se essa mesma sala de exposição virtual fosse transportada para o contexto de uma mostra de arte contemporânea de grande visitação, do porte de uma Bienal de São Paulo? Poderíamos supor que a voz do diretor que instrui os movimentos do espectador corresponderia, por exemplo, ao texto explicativo que oferece algumas chaves de leitura ou "instruções de uso" da obra?
O problema de operar esse deslocamento é que o espectador "idealizado" por Morales é um cara tranqüilo, que tem tempo de ir de um lado ao outro da obra, se aproximar, se afastar, reparar nos detalhes, pensar, estabelecer conexões. E o visitante de uma Bienal, não. O que mostram as videoinstalações da 27ª Bienal de São Paulo é que o tempo requerido pela arte contemporânea não é compatível com o tempo disponível na vida contemporânea.
É bem menos comum ver gente sentada assistindo a filmes do que checando mensagens no celular ou procurando alguma coisa na bolsa. O visitante de Bienal é mais um caçador de obras de assimilação imediata, do gênero dos infláveis de Tomas Saraceno ou da sala às avessas criada por Jaroslaw Kozlowski, um dos hits de visitação desta edição e preferência disparada das câmeras fotográficas. Mesmo que Kozlowski tenha sido um importante expoente da arte conceitual na Polônia, seu Gravity room não prescinde de muito tempo ou de sustentação teórica para seu entendimento.
O mesmo não se passa com grande parte da produção artística audiovisual contemporânea. Na 27ª Bienal, há uma interessante safra de trabalhos documentais auto-reflexivos que, voltando-se para os próprios meios de representação, exigem mais do visitante. Caso de Two projections, de Barbara Visser, que reflete sobre os recortes e distorções que se produzem sobre a realidade em qualquer ato de documentação.
De complexidade menos evidente, Wild seeds, de Yael Bartana, oferece boas chances de fruição estética, já que o vídeo tem um belo tratamento de manipulação de imagens e de som. Mas o trabalho clama por disponibilidade maior do visitante para sua fruição completa (leia-se estética, intelectual e física). Na entrada, explica o texto de parede que Wild seeds documenta um jogo inventado e executado por jovens ativistas israelenses de esquerda que se opõem à ocupação israelense. Por tratar-se de um jogo, subentende-se que, para que seja plenamente aproveitada, a obra depende de uma carta de instruções a ser consultada previamente. Como ocorre com grande parte da arte contemporânea, diga-se de passagem.
O jogo consiste na simulação da evacuação de assentamentos de colonos judaicos e os jogadores dividem-se em dois grupos: as autoridades e os colonos. O objetivo é a manutenção ou a dissolução do grupo que tenta permanecer unido. O vencedor é aquele que desagrega ou aquele que permanecesse agregado. Boa alegoria do tema da 27ª Bienal, Como viver junto.
Dentro da sala, assistimos a um grupo de pessoas encenando uma situação que foi testemunhada pelas televisões de todo o mundo em 2005: a resistência de assentados contra forças militares e policiais durante a evacuação das colônias judaicas de Gaza e Cisjordânia. A sala é ampla: junto às paredes, há almofadas para recostar-se e uma imensa área livre entre público e tela. Embora a chave desse trabalho não seja a participação, haveria espaço suficiente na sala para que o espectador se tornasse participador. A exemplo do que acontece na videoinstalação de Wagner Morales, ele ocuparia o vácuo que o separa da obra e re-encenaria o que se passa dentro da tela.
Mas as chances de interação entre espectador e obra diminuem sensivelmente, sem o conhecimento das regras do jogo. Se em Wagner Morales o visitante-participante era convidado a encenar seu embate com a arte contemporânea, aqui ele é atirado ao centro de uma arena, sem ter exata consciência disso.
Paula Alzugaray é jornalista, curadora e documentarista. Escreve sobre arte contemporânea para revistas especializadas e para as instituições Paço das Artes e Centro Cultural São Paulo. Entre os projetos curatoriais, realizou em 2003 a exposição Vizinhos, em parceria com Cauê Alves e Juliana Monachesi, e em 2006 as mostras Videometria, no Loop Vídeo Festival, em Barcelona, e Situ/ação, na galeria Vermelho, em São Paulo. Atualmente, realiza uma pesquisa de mestrado na área de Comunicação e Estética do Audiovisual da ECA-USP, sobre a apropriação do documentário pela arte contemporânea.
O expectador não faz a obra ele a transforma, mesmo com todas as ações para que isso não aconteça fisicamente, o autor esqueceu da ferramenta que utilizamos para transformar - a imaginação. Somente o fato de pessoas diferentes, com realidades diferentes estarem presentes em tal ambiente já modifica a obra que veio para não ser modificada. A imaginação e a peculiaridade de um olhar modifica a obra. Lorena
Posted by: Lorena at setembro 12, 2007 3:11 PM