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dezembro 11, 2006
Bienal ETC. Como ser útil se reconhecendo inútil? - Uma oportunidade de refletir sobre os trabalhos da 27ª Bienal de São Paulo, por Ana Amélia Genioli e Ruy Sardinha Lopes
Bienal ETC.
Como ser útil se reconhecendo inútil? - Uma oportunidade de refletir sobre os trabalhos da 27ª Bienal de São Paulo
ANA AMÉLIA GENIOLI
RUY SARDINHA LOPES
O término, no dia 17/12, de mais um mega empreendimento artístico, a 27ª Bienal, suscita por parte da audiência um esforço de reflexão sobre o que ali se mostrou. Sintomático é o fato de grande parte da crítica ter girado em torno do projeto curatorial e de um certo aprisionamento do "estético" pelo "político", ou, melhor, da captura da arte pelo social, reeditando assim discursos em grande medida datados - e ter perdido com isso a oportunidade de refletir sobre o que efetivamente ali se expôs.
Talvez seja, cremos, no embate com as obras ali presentes que alguma luz surja para que possamos melhor avaliar os propósitos e despropósitos de mais uma edição do sistema das artes.
O confronto entre a obra de Thomas Hirschhorn, Restore now, e aquelas que, embora dispersas, conformam uma espécie de "núcleo histórico" - Hélio Oiticica (através das filmagens de Ivan Cardoso), Marcel Broodthaers, Gordon Matta-Clark e Ana Mendieta - pontuou nossa leitura. Hirschhorn, situado a poucos metros da entrada, apresenta uma das questões centrais da contemporaneidade: a imposição da biopolítica, como fora concebida por Foucault, e a redução da bios a uma vida nua (Giorgio Agamben). Os autores e livros (Hegel, Marx, Arendt, Foucault, Deleuze etc.) constantes em trabalhos anteriores, aqui estão silenciados (amordaçados) diante da mutilação imposta aos sobreviventes. A emancipação coletiva, a constituição de um corpo social combatente ou mesmo o deslocamento destas questões para as individualidades corporais parecerem emudecer diante da fragmentação/dilaceração dos corpos físicos, este último depositário da intimidade psíquica e da subjetividade. Sua obra aponta, pois, para a impossibilidade de uma vida qualificada, individual ou conjunta.
Seria esta perda de potência uma característica das demais obras ali presentes? Como estas obras se relacionam com aquelas que tinham a expectativa emancipatória no seu horizonte? Lembremos que, se após as vanguardas históricas as energias utópicas refluíram, os anos 60 representaram um "breve clarão no crepúsculo", recuperando momentaneamente o ethos de antagonismo que a arte moderna perdera. Diante da construção do Muro de Berlim, da chegada do homem à Lua, da Guerra do Vietnã, das lutas pelos direitos civis e da retomada do movimento estudantil, a potência geradora dos trabalhos dos artistas do aqui chamado "núcleo histórico" se revela para além de suas bordas. Isto inclui um total desprendimento das relações com o mercado, tendo em vista um auto-engajamento que rompeu com as fronteiras entre arte e vida. Colocando tudo à prova, buscaram, por exemplo, a diluição das fronteiras entre o racional e o sensorial; imaginavam, com isso, uma transformação total das pessoas através da expansão da sensibilidade. Oiticica, buscando a participação semântica do espectador; Matta-Clark, propondo ao transeunte de Wall Street um inédito respirar; Broodthaers, investigando o potencial lúdico e mercadológico da arte institucional ou colocando em xeque sua própria assinatura como marca; e Ana Mendieta, entregando seu próprio corpo como oferenda e transformando a paisagem em sudário, propuseram entre outros aspectos não só uma crítica institucional ou política, mas a edição de uma outra política, de um outro processo criador e de um outro modo de vida.
Tal aposta, embora tenha trazido importantes contribuições para os âmbitos artístico, ético e político, encerrou, entretanto, seu ciclo histórico; como aliás fora observado já na Documenta V, de 1972, ou pelos próprios artistas mencionados. Neste sentido, a inserção dos mesmos no ambiente institucional, como o desta Bienal, transformando aquilo que era atitude em objeto de culto e acionando, inevitavelmente, sua valorização mercadológica, nada mais faz do que reforçar o vazio. Um certo ar déjà-vu garante à própria história ser a matriz das soluções, ocultando assim o temor de agenciar as complexidades da cena contemporânea e seu contexto.
Como então relacionar-se com esta perda? Diante da não realização dos desejos de outrora, uma parte dos trabalhos desta Bienal se baseia na mera narrativa daquelas aspirações. Em uma fórmula que se repete em possíveis variações de ortogonais e transversais, como num castelo de cartas, Armando Tudela, em Transa, empilha vários exemplares do disco em vinil, de mesmo nome, de Caetano Veloso. Também ao som de um velho LP, Juan Araújo não esconde o elemento pastiche de sua obra. Em Libro ponti ou em Libro casa de vidrio, a cópia feita à mão revela seu traço através dos ícones do movimento moderno. Outras possibilidades das construções geométricas vão se repetindo nos trabalhos de Martinho Patrício (Brincar com Lygia) e Damián Ortega (Mampara). Imbuídos de um formalismo nostálgico, tais obras se apresentam distanciadas da radicalidade daqueles que os inspiraram. O que era debate e transmutação ético-estético restringe-se a caráter visual.
Esta nostalgia do vazio também está presente em Section cinema (Homage to Marcel Broodthaers), de Tacita Dean. De forma original, a artista cria um discurso ambíguo com a nostalgia, utilizando o passado para nos remeter ao presente. O ruído do projetor de filmes em 16mm dialoga com os resíduos das imagens. As cenas de um velho depósito que ainda traz vestígios de uma época em que Broodthaers realizava projeções de filmes nos transportam ao palco mesmo destas ações. Com poucos elementos onde fixar o olhar, a projeção funciona como um acionador da nostalgia daquela época, o início dos anos 70. Com o desenrolar do filme, perdemos, entretanto, a conexão com o que é visto e a nostalgia acaba por se diluir, colocando-nos face a face com nossa própria subjetividade. Como numa hipnose, imergimos em nossa memória, que ressignifica os acontecimentos a partir de suas próprias referências. Ao não conseguirmos reviver o passado, é a nossa própria vida que passa diante dos nossos olhos.
Se, portanto, o passado está interditado e o Moloch contemporâneo assenhoreia-se dos próprios corpos físicos (Restore now), como dialogar, positivamente, com o tema proposto pela curadoria - Como Viver Junto (que traz em si a pergunta antropológica sobre o que nos torna humanos)? Para outra parte dos artistas ali presentes, a resposta está na ironia com a qual enfrentam sua tarefa. Se a existência política é, como apontou Aristóteles, a destinação do homem, as regras e comportamentos necessários à vida gregária acabam por dificultar a vida em sociedade. Os dois trabalhos de Antal Lakner, Bundesberg Berlin (uma solução bem humorada para o lixo industrial acumulado pela sociedade de consumo) e INERS: Training for moving space (que subverte os meios de transporte urbanos, como o elevador e o metrô, tornando-os academias de ginástica coletiva e com isso rompendo a imobilidade imposta aos seus usuários); mais a série Gesture to be a good daughter, da artista coreana Sanghee Song (que em nome de um comportamento social "adequado" expõe a auto-tortura imposta às mulheres através de machines disciplinadoras) revelam de forma bem humorada os custos ambientais e corporais do viver junto (como nota Song, suas "máquinas" disciplinam o corpo, não a mente, e com isso resultam no comportamento adequado). Neste sentido, as "experimentações", "penetráveis" e "bólides" são questionados em sua origem. Ressemantizados, servem, agora, não como instrumentos de crítica institucional ou promotores de inauditas experiências vivenciais, mas como crítica irônica e resfriada de como tudo termina por transformar-se em meios disciplinadores e conformadores do "bem viver".
Diante desta rotação dos significantes, talvez a questão curatorial esteja deslocada e seja preciso, novamente, aprender a "viver só". Os trabalhos de Narda Alvarado, Construction to live alone and become sensitive (like a poet) e Construction for 21 st century poets, constituem, a nosso ver, um dos pontos altos dessa exposição. Ao preconizar, de forma irônica, o isolamento e a atenção às atividades corriqueiras ("dormir num quarto bem quente" nas noites de quinta-feira ou, ao domingos pela manhã, "lavar roupas e limpar a casa") como necessárias à formação sensível (educação estética?), Narda aponta para a utilidade da inutilidade, ou, em outros termos, para a potência de uma vida sem grandes qualificações. Para a artista boliviana, o poeta - alguém "capaz de voar como uma gaivota, e com a beleza interior de um pingüim" - opõe-se ao artista, alguém que luta com seu próprio desejo de liberdade, mas reconhece que, ao se concretizarem, suas diferentes idéias (Good, regular and bad) serão automaticamente absorvidas pelo sistema burocrático das artes.
Se, pois, as expectativas das revoluções políticas, estéticas ou institucionais parecem refluir diante de um biopoder que a tudo controla, a dialética proposta por Narda Alvarado - entre o poeta e o artista, entre a liberdade de ater-se à sua própria inutilidade e a consciência de que mesmo assim corremos o risco de fortalecemos nossos opositores, ou seja, a consciência de que talvez algo esteja perdido para sempre - talvez seja um dos trilhos por onde a arte contemporânea deva necessariamente passar. Restrita a pequenos gestos, como o de interromper o fluxo de carros de uma cidade, a arte insiste em alçar seu vôo, mesmo que saiba, em sua solidão, que tal vôo poderá não anunciar o próximo verão.
Ana Amélia Genioli é arquiteta e artista plástica, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com a dissertação Identidade como territorialidade em trabalhos de arte contemporânea.
Ruy Sardinha Lopes é professor da EESC-USP e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP com a tese Informação, valor e conhecimento.
Afinal, a vida é só um instante em que nos é dada a chance de vivencia-la em camara lenta
Posted by: Sandra Schechtman at dezembro 18, 2006 5:05 PMÉ interessante questionar a arte de ponta, considerada ou não contemporânea, preconceituosamente interpretada com arte moderna ou avançada. O conceito de contemporaneidade é usado e abusado permitindo significações esdrúxulas, incongruentes, díspares, complexas, até incompreensíveis. É interessante pensar os limites da arte engajada e do belo, se é possível abstrair a parte do todo, como se o homem-artista vivesse em um mundo separado dos comuns mortais. É interessante avaliar a alienação do universo criativo, onde se desenvolvem caminhos quaisquer, pensados, sentidos ou pressentidos. É interessante avaliar a capacidade de resposta da Bienal perante uma humanidade destroçada, desequilibrada, louca, dominada pela competição desenfreada, pelo deus-dinheiro, pelo homem bárbaro capaz de produzir armas e mais armas de destruição em massa e em nome da paz, exterminar, destruir, ocupar, impor jugos, ultrapassar limites, prender, torturar, sacrificar. É interessante questionar a hipocrisia de temas midiáticos, vizinhos do vazio e do oportunismo. É interessante repensar a Bienal.
Orquiza, José Roberto