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dezembro 11, 2006
Bienal ETC. - Modernidade, credibilidade e ironia - Uma conversa com Barbara Visser, por Fernando Oliva
Still de Duas Projeções, vídeo da artista
holandesa Barbara Visser na Bienal
Bienal ETC.
Modernidade, credibilidade e ironia - Uma conversa com Barbara Visser
FERNANDO OLIVA
Apesar de se apropriar de certa noção de passado, e usar uma ambientação e cultura "retrô" como matéria-prima, se existe um sentimento que a obra de Barbara Visser não oferece é o da pura nostalgia. Duas Projeções, em exibição no terceiro piso da Bienal, é baseado em uma entrevista com Marie van der Sleen De Vries, senhora de 90 anos de idade que passou a vida em um ambiente que poderia ser considerado hoje, sob todos os aspectos, "moderno". É isso que vemos (ou acreditamos ver) nas fotografias de sua residência, povoada por móveis e objetos de "design vintage", mas não é isso que ouvimos a protagonista do filme dizer. Durante os cerca de 30 minutos que dura a projeção, a senhora De Vries, mais do que resgatar uma idéia que situamos no passado e sobre a qual projetamos nossos desejos, se dedica a nos explicar o que não é o moderno. Posição que ela assume como uma estratégia e, acima de tudo, um ato de resistência - ao consumo inconseqüente de um estilo, à comercialização da cultura de uma época, às noções de exclusivismo e diferenciação social, ao marketing da nostalgia.
Diferente do que pode parecer à primeira vista, o foco principal da artista holandesa não recai sobre o questionamento do moderno na arquitetura e no design - que é outro reducionismo ao qual sua obra dá margem. Sua discussão é mais precisa e promove deslocamentos sutis. Em trabalhos como Desintitulado e Duas Projeções, o que está em jogo é a própria noção de credibilidade em sistemas culturais cujas estruturas estão cristalizadas, seja por motivos históricos, por puro fetiche intelectual, ou ainda por uma questão de gosto.
No processo de formalização de seus conceitos, Visser se pergunta, ainda, de que maneira um certo entendimento do que é o "moderno" é transformado em ocupação ambiental e determina nossas relações com o espaço, doméstico ou coletivo. Em sua trajetória, Visser tem se dedicado a questionar os dogmas da verossimilhança que permeiam as articulações entre ficção e realidade - jogo ambíguo de alternâncias, terreno movediço e traiçoeiro onde se movem seus personagens. Seja o ator que interpreta um mentiroso patológico preso por vender lotes na lua, no vídeo Beauty is the victory of the mind over matter, de 2003, seja a aristocrática personagem de Philippa van Loon, em Philippa, de 1998 (estas duas obras são verdadeiras preciosidades desta Bienal, infelizmente pouco vistas pelo público, por integrarem a seleção de mais de 40 vídeos exibidos como parte de Jumbo Origamic Arch, a cobertura construída pelo Atelier Bow-Wow no piso térreo).
Em Philippa, ouvimos inicialmente uma voz captada nos alto-falantes de um aeroporto, convocando repetidamente a presença de uma passageira chamada Philippa van Loon. Mas o que vemos na tela é um ambiente do século 17, o interior do Museu Van Loon, em Amsterdã. Percorrendo suas salas e corredores vazios, presenciamos a movimentação de uma aristocrata, que procura se esconder, enquanto ouvimos repetidamente chamar seu nome (ela foi interpretada, em 1998, pela própria Philippa van Loon, que ali passou a infância). Estamos diante de um complexo jogo de espelhos, que coloca em xeque o documental, articula elementos reais e ficcionais, e cujo resultado remete tanto à A Dama de Xangai de Orson Welles, como a um filme de horror clássico, um drama de Fassbinder, ou à atual linguagem dos videogames.
Still de Philippa, obra de Barbara Visser
De que maneira certos paradigmas da modernidade, particularmente arquitetônica, são construídos visualmente e embalados para entrega e sedução das platéias e consumidores? Este é um dos principais dilemas propostos pela artista, explicitado em trabalhos como Entrevista com Duiker, performance de 1994 que consistia na projeção ao vivo de uma suposta entrevista, via satélite, com o célebre arquiteto modernista Johannes Duiker, e que foi transmitida para o público presente no antigo cinema desenhado por ele em 1934, o Cineac. Durante a ação, defeitos técnicos (como distorções e uma leve desincronização entre o som e a imagem) conferiam credibilidade à entrevista - que de fato não ocorreu, tendo sido totalmente construída pela artista.
Na maioria dos audiovisuais de Barbara Visser, o som é gravado e editado separadamente da imagem. Entretanto, são trabalhados com a mesma intensidade. As discrepâncias entre o que vemos e o que ouvimos; de que maneira interpretamos o visual por meio do auditivo; o uso e o sentido da sincronicidade neste contexto; todas estas são, ainda, questões recorrentes em sua produção.
Canal Contemporâneo - Em Duas Projeções, a senhora Marie van der Sleen De Vries nunca parece nostálgica. Ela fala sobre o passado em um approach muito lúcido, e possui entendimentos muito particulares do termo "moderno". O mesmo vale para o filme, que não revela qualquer idealização do passado.
Barbara Visser - Eu tenho a impressão de que as pessoas que vivenciaram o Modernismo quando ele emergiu (mesmo que o conceito não fosse definido como algo de sentido unívoco) possuem uma visão muito mais pragmática do que as pessoas que hoje lhe dirigem um olhar em retrospecto. "Modernismo é uma maneira nostálgica de olhar para o futuro", alguém me disse recentemente, em uma observação que considero engraçada e verdadeira. Eu refleti muito sobre a recusa da senhora De Vries em aceitar qualquer rótulo desse tipo. Eu suponho que ela nunca entendeu o "modernismo" como uma questão de escolha de um estilo, mas sim, e sobretudo, como um modo de vida, algo situado no presente, não uma coisa para se pensar sobre.
Já a minha visão é ambígua: eu me sinto mais ou menos presa na armadilha desse retro-futurismo. Se por um lado ele representa muitas qualidades que ainda estão por ser reveladas, a respeito de nosso ambiente, por outro ele criou alguns dogmas que são difíceis de combater.
A personagem da senhora De Vries pode ser visto como uma voz poderosa e autorizada a comentar os espaços mostrados ao espectador. Em que sentido você está interessada na posição da qual ela fala? Neste contexto, permeado por uma certa idéia de cultura, relacionada ao design e à arquitetura, você poderia comentar a relação entre discurso e representação?
Muito antes de começar a realizar Duas Projeções, eu já refletia sobre a maneira como a palavra "interior" pode ser entendida como o espaço em que alguém vive, mas que também se refere à nossa psyque, ao nosso eu íntimo. Esta mulher moldou seu mundo de modo tão meticuloso que ele é capaz de transcender todas as consistentes noções sobre design, modernidade e gosto. Ela mesma desenhou muitos daqueles objetos, sem nunca ter se considerado uma designer, e assume um tom pragmático quando explica que as coisas das quais ela gostava "simplesmente não existiam na época", e que então ela "teve que as inventar". É este interesse real e pessoal que me interessa, como artista, mas também como membro da mesma família (a senhora De Vries é minha avó). Minha posição é obviamente parcial, uma vez que a vida dela é parte de minha história familiar: eu projeto sentidos pessoais, políticos e sociais em direção aos motivos sobre os quais ela nos fala. Contudo, a senhora De Vries em si rejeita categoricamente todas estas leituras.
Still de Duas Projeções, vídeo de Barbara Visser
Referindo-se a à série Detitled (Desintitulado), de impressões em papel de parede, também presente nesta Bienal, você usou a expressão: "trágica beleza dos velhos clássicos do design". O que exatamente você quis dizer com isso? Poderia falar sobre sua relação pessoal com o mobiliário de design vintage?
A série Desintitulado foi concebida originalmente, em 2000, como uma inserção para a revista de arte A Prior, editada na Bélgica. O trabalho se refere ao que eu mencionei acima, de como os "clássicos" se mantém como norma e, sob muitos aspectos, são intocáveis.
Uma segunda leitura possível está relacionada ao valor de fetiche destes objetos, a idéia de "vintage", o que na minha opinião vai na contramão dos objetivos dos próprios designers, e me parece uma contradição no caso dos mobiliários feitos de plástico, um material que não envelhece bem, nem se presta ao restauro de forma satisfatória. Há certa nostalgia aí, a qual a senhora De Vries e sua geração nunca sucumbiriam.
Imagem da série Desintitulado, impressão sobre
papel de parede, de Barbara Visser
A senhora De Vries, "protagonista" de Duas Projeções, opta por não mostrar o rosto, não aparecer fisicamente diante do espectador. Entretanto, conforme o tempo passa, conduzidos apenas por sua voz, começamos a sentir sua presença, e chegamos perto de intuir de que maneira ela costumava ocupar aqueles espaços - ambientes vazios, mas que na verdade parecem estar à espera da presença de um corpo, que os traga de volta à atividade. Neste contexto, você poderia comentar o uso do som em sua produção?
Minha intenção foi fazer um retrato da senhora De Vries através dos objetos os quais ela escolheu para viver com ela e em torno dela, e por meio de conversas sobre o papel destas peças funcionais em sua vida, além dos motivos por trás dessas escolhas. A linguagem é a ferramenta que confere forma a nossos pensamentos, e eu notei que uma voz em off seria eficiente para estabelecer uma certa distância entre o que é ouvido e o que é visto. Os objetos parecem ser espécies de dispositivos redirecionadores de suas emoções.
Na maioria das minhas obras audiovisuais, o som é gravado e editado separadamente da imagem. Caso, por exemplo, de True Lies (1995), derivado do blockbuster hollywoodiano de mesmo título. Eu utilizei o som do filme literalmente, sem alterações, mas refilmei as imagens diretamente da tela (como os primitivos bootlegs de DVD eram feitos). A seguir, apliquei um zoom in até o ponto em que se transformou em um campo de cor abstrato em movimento. Nos filmes mainstream, som e imagem geralmente estão dizendo a mesma coisa simultaneamente, deixando pouco espaço para a imaginação. Nesta obra, eu procurei descobrir com quanto de abstração um filme como este poderia lidar (muita!).
Ainda sobre Duas Projeções: no espaço exterior, que funciona como moldura, pode-se ver um ambiente "natural", funcional, de escritório, em contraste com um ambiente residencial (situado no interior da tela), mais "construído" e cenográfico, staged.
Durante os longos períodos de gravação com a senhora De Vries, eu me dei conta de que esperava o tempo todo que ela dissesse certas coisas em particular, coisas que a ouvi dizer repetidamente nos últimos quarenta anos (ou que achei ter ouvido). Inicialmente, eu desejei que ela se mostrasse como a personalidade que eu construí em minha mente ao longo de todos os nossos encontros nas últimas décadas, esquecendo-me do fato de que aquela senhora de 90 anos à minha frente não era a mesma mulher revolucionária de 15, 20 ou 30 anos atrás.
Conforme eu percebi que estava trabalhando com minha própria projeção, ao invés de fazer um documentário de maneira mais objetiva, cheguei a uma solução que considero adequada para representar esta situação. A imagem maior, que funciona como "moldura", é um still do meu estúdio em Amsterdã, com uma tela para projeção no centro. Os slides que mostram o apartamento da senhora De Vries são projetados nesta tela. Trata-se de uma maneira de enfatizar a subjetividade do meu ponto de vista (contudo, a senhora De Vries achou que ficou um pouco confuso, e disse que teria preferido as imagens de sua casa ocupando toda a extensão da tela).
Still de Duas Projeções, de Barbara Visser
Como você e seu trabalho se relacionam com o tema principal desta Bienal (o "Como Viver Junto" barthesiano)?
Para ser sincera, eu acredito que toda boa arte lida com os assuntos que foram abordados nas séries de seminários da Bienal. O que é muito bom em um "tema" como este é que ele não reduz as obras em exibição a meras ilustrações. Ao contrário, oferece uma maneira possível de olhar para elas.
Como eu estou sempre refletindo sobre por que funcionamos do modo que funcionamos; sobre como os códigos e a cultura afetam o que fazemos, dizemos e construímos; o quanto estranho isso realmente é; e conseqüentemente qual poderia ser o papel da arte em todo este contexto; sinto-me muito confortável em relação este "tema".
Vou refazer uma questão colocada de modo obsessivo pelo curador suíço Hans Ulrich Obrist a seus entrevistados: você possui algum projeto não realizado, algo que não tenha conseguido fazer por ser muito grande ou muito pequeno?
No longo processo que algumas vezes pode resultar em um trabalho, os momentos que eu mais aprecio estão na fase da pesquisa, quando estou lendo sobre um assunto e trocando idéias com as pessoas, situação em que as possibilidades são infinitas, e o fracasso não existe. Ou seja, o momento anterior ao qual as coisas têm que se concretizar, e uma forma ou outra vai levar ao seu final. Então, mesmo que eu entenda "realizado" como a materialização de algo, eu não me preocupo com o fato de que muitas idéias que eu tenho ainda não se materializaram. Elas possuem uma forma temporária na minha mente ou nas notas que tomo, e pode ser esta a forma de que eu mais gosto... Tendo dito isto, porém, eu tenho consciência de que nesse estágio temporário é impossível compartilhar pensamentos e experiências. E, afinal, eu trabalho no sentido de criar formas visíveis.
Fernando Oliva é crítico de arte e colabora com as publicações Lapiz-Revista Internacional de Arte (Espanha), Contemporary (Inglaterra) e C (Canadá). Foi co-curador, ao lado de José Augusto Ribeiro, da mostra VOL., centrada em questões sonoras na produção contemporânea, na Galeria Vermelho (2004). Coordena o projeto Contemporâneo, de intervenções gráficas, publicado mensalmente na revista Bravo!, e integra o Grupo de Crítica do Paço das Artes.