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novembro 29, 2006
Bienal ETC. - Com Barthes, na Bienal, por Mariza Werneck
BIENAL ETC.
Com Barthes, na Bienal
MARIZA WERNECK
Viver-não, viver-sem, como viver
Sem conviver, na praça de convites?
Carlos Drummond de Andrade
Se Roland Barthes passeasse um olhar entediado e distraído pela 27ª Bienal de São Paulo - o tédio, dizia, era sua forma particular de "histeria" - talvez tivesse um pouco de dificuldade em reconhecer ali os traços deixados em seu curso Como Viver Junto, que serviu de guia temático à mostra, e foi ministrado no Collège de France, entre 1976 e 1977. No entanto, conhecido pela sua generosidade como professor, quem sabe não a recusaria de todo. Sua ambição maior nesse curso seria, segundo ele, a de abdicar da condição de mestre, e reivindicar um lugar mais obscuro, permitindo assim que sua fala fosse mais banal do que aquilo que suscitasse em seus ouvintes. Projeto inalcançável esse, em se tratando de Barthes.
O olhar que lhe interessava projetar sobre o mundo foi anunciado com clareza em um curso do ano seguinte, que ganhou o nome de O Neutro. "De fato eu gostaria", diz ele, "se estivesse em meu poder, de olhar as palavras-figuras com um olhar rasante que pusesse à mostra nuances (...). O que procuro, na preparação do curso, é uma introdução ao viver, um guia de vida (projeto ético): quero viver segundo a nuance".
Embora, em sua busca de nuances, considere a literatura a grande mestra, nem por isso as artes plásticas deixam de estar presentes nesse aprendizado, tanto em sua escritura, como em sua vida. Não apenas porque desenha e pinta, mas também porque, ao privilegiar uma escrita figural, confere a seus textos enorme plasticidade. É como se seu discurso fosse permanentemente habitado, em seu subsolo, por uma forma, uma imagem que age sobre a superfície e a modifica. Outros procedimentos inerentes às artes plásticas estão igualmente sugeridos em sua metodologia, como o traço e os pequenos toques de cor, assinalados em Como Viver Junto: "Toques sucessivos: uma gota disso, um brilho daquilo. Enquanto a coisa está se fazendo, não se compreende aonde ela vai: cf. em pintura: o tachismo, o divisionismo (Seurat), o pontilhismo. Justapõem-se as cores sobre a tela em vez de misturá-las na paleta. Eu justaponho as figuras na sala de aula, em vez de misturá-las em casa, à minha mesa. A diferença é que, aqui, não há um quadro final: na melhor das hipóteses, caberia a vocês fazê-lo".
Mas que tipo de nuance buscaria o olhar de Barthes na Bienal? Construído a partir de uma escolha fantasmática, como lhe convinha, seu olhar não se demoraria, certamente, nos macros agrupamentos, estruturados segundo uma arquitetura de poder, e declaradamente hostis à fantasia. Pelo mesmo motivo, evitaria também toda literalidade, e qualquer sociologia mais explícita. Nenhum excesso, nenhuma forma opressiva. Não que o excesso o chocasse. Ao contrário, sabe-se, foi um bom leitor de Sade. Mas, fiel à sua "ciência da nuance", o que lhe interessou buscar no divino marquês foi, justamente, algum "princípio de delicadeza".
Na 27ª Bienal, o olhar nuançado de Barthes talvez se deixasse contaminar por certa atmosfera, pelos minúsculos pontos de luz emanados de paredes que operam como filtros, por obras que parecem ali reunidas por uma graça fortuita, e ainda por aquelas que possuem algo de inventário, e de jogo com a imaginação. Da mesma forma se interessaria por certas construções minimalistas que apenas roçam (palavra barthesiana) o viver junto, reduzindo-o à sua expressão mais simples, a uma quase inexistência.
Isso porque, para falar do viver junto, Barthes foi em busca de seu grau zero, ou seja, do lugar intersticial em que a convivialidade se confunde e coincide com o viver sozinho. Mais do que a demonstração de um método, fez de seu curso uma experiência de ascese e imaginação. No limite, interessou-se em inventariar a solidão em suas múltiplas formas, e constatar sua absurda impossibilidade. Por isso, em seu curso, desfilam anacoretas e eremitas, náufragos e loucos, todas as figuras nascidas da estranheza e do delírio, enclausuradas em existências mínimas, reunidas ali, fortuitamente, por um gesto denso de poesia.
O ponto de partida foi uma palavra - uma fantasia - encontrada ao acaso em um livro de História: idiorritmia. Palavra de origem grega, composta de ídios (próprio) e de rhythmós (ritmo), cujo primeiro significado remete ao universo religioso: tem a ver com formas de vida comunitárias em que cada membro segue seu ritmo pessoal, mas depende, ainda que em escala mínima, de uma organização partilhada.
A partir dessa palavra-guia, Barthes passou a acalentar a idéia de um curso impulsionado apenas pelo imaginário de quem o proferisse. Um curso que permanecesse para sempre inconcluso, que consistisse em nada mais do que "abrir dossiês", um curso feito de digressões e fugas constantes de seu eixo temático.
Os organizadores da edição impressa de Como Viver Junto - seus alunos - tiveram a sabedoria de não reescrever as lições barthesianas (são anotações de aula), assim como a sensibilidade de não transformá-las em uma transcrição impressa da versão oral gravada, o que teria dado, como resultado final, apenas um livro póstumo. Permitiram, dessa forma, que Roland Barthes inaugurasse, mais uma vez, um novo gênero - como aconteceu, aliás, em cada um de seus escritos. Respeitando a incompletude seminal de seu texto, deixaram ao leitor a delicada surpresa de perceber que aulas também podem se transformar em rara experiência estética. Mesmo porque, depois de tudo, terminado o curso, exaurida a cintilância de sua fala, desmontaram-se os andaimes, desfez-se a obra. Barthes não só o sabia, como desejava isso "Durante treze semanas", disse ele, "vamos ter de nos sustentar sobre o insustentável. Depois tudo será abolido".
Mariza Werneck é professora de antropologia e estética na PUC-SP, realizou doutorado sobre mitos e experiência estética em Claude Lévi-Strauss e trabalha em perspectiva transdisciplinar (literatura e artes plásticas).