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novembro 23, 2006
Bienal ETC. - Psicologia da paisagem - Uma entrevista com Mauro Restiffe, por Henrique Oliveira
Da série Empossamento, obra de Mauro Restiffe
Bienal ETC.
Psicologia da paisagem - Uma entrevista com Mauro Restiffe
HENRIQUE OLIVEIRA
Quando fui convidado a escrever um texto sobre a Bienal de São Paulo, saí logo em busca dos trabalhos que me despertaram o interesse. Na condição de artista e pesquisador do campo da pintura, da cor, da matéria e de seus desdobramentos espaciais, não seria difícil encontrar uma obra ou mais, de onde pudesse tirar um substrato fértil capaz de inspirar uma madrugada sobre o teclado do computador.
No entanto, refletindo sobre o mote da exposição (Como Viver Junto), ocorreu-me a idéia de dar a esta frase uma aplicação prática. Decidi então que entrevistaria algum artista que estivesse completamente fora da minha área de interesse, buscando fazer dessa tarefa um verdadeiro exercício de como viver junto.
A partir daí, andando pelo Pavilhão, algumas das obras que decididamente não me chamaram a atenção foram as fotografias de Mauro Restiffe, principalmente as da série Mirante, que estão no terceiro piso. Contudo, a discrição das imagens classicamente emolduradas e penduradas na parede, o enquadramento direto, a banalidade das cenas retratadas - tudo isso me levou à iniciativa de tentar mergulhar um pouco no universo da fotografia em preto e branco e procurar compreender os interesses deste artista, seu ponto de vista sobre a arte e sua prática de fotógrafo.
Canal Contemporâneo - Sua produção inicial parece se diferenciar, pela presença de um conteúdo metalingüístico, das fotos que você apresenta na Bienal.
Mauro Restiffe - Elas trazem uma idéia da arte como um espelho na articulação e transposição de certas questões para o espaço. A idéia da janela dentro da janela.
Nesses trabalhos você fotografa a fotografia. O assunto é o quadro na parede do museu. Você parece interessado no lugar do objeto de arte.
Estou falando do olhar. Uma dessas fotos em questão (a foto de uma foto da artista Nan Goldin) pressupõe apenas um afastamento e o registro fotográfico. O assunto é um trabalho já pronto, mas eu procuro criar uma outra dimensão pelo prolongamento do espaço.
Nan Goldin, obra de Mauro Restiffe
Considerada fora do conjunto de sua obra, esta foto me levaria a pensar que você trata da mesma questão da Louise Lawler, uma problematização da idéia de autoria. Como você diferencia sua proposta da dela?
Minha intenção é criar uma janela, um espaço no qual se pode penetrar. Quando esta situação é tratada como assunto você passa a ter um novo espaço. É uma tentativa de expandir a obra - um objeto que recebe um enquadramento, que por sua vez também é enquadrado, e assim por diante.
Isso acontecia ao fotografar uma pintura, uma janela, um espelho. Um espaço dentro de outro espaço, dentro do espaço da criação da imagem. Até o ano 2002, esta questão era central no meu trabalho.
Uma vez eu fotografei as janelas do próprio espaço expositivo, ampliei-as no tamanho real e as inseri nos nichos de janelas idênticas que ficavam na parede oposta.
Nestas imagens que você está me mostrando, deste período anterior a 2002, eu vejo com clareza os assuntos enfocados e as estratégias utilizadas; mas e quanto às obras como as da série Mirante, que estão no terceiro piso da Bienal? Confesso que não entendi qual é a delas... Parece-me que há ali uma banalidade nas cenas retratadas, e que você busca esta situação. Não há nada que cative o espectador, a obra é bastante discreta.
Sempre naveguei entre o público e o privado. O museu, a rua, em oposição à cena íntima, doméstica. Muitas vezes procuro unificar estas duas polaridades, pois no final das contas elas são uma coisa só.
E de fato eu busco esta trivialidade, acho que o que marca nossa existência é esta vivência do dia-a-dia. Procuro captar ao máximo as vistas relacionadas a esse contexto. E a série Mirante se enquadra dentro desse procedimento.
Quando você coloca algo na parede da exposição ele já adquire automaticamente uma aura, mas ao mesmo tempo ele nasce de uma vivência muito mundana. Eu procuro unificar essa esfera da vida cotidiana ao universo da arte e espero que o espectador se relacione com o assunto.
Da série Mirante, obra de Mauro Restiffe
Da série Empossamento (no piso térreo da Bienal) eu vejo emergirem muitas possibilidades discursivas - a narrativa, a euforia do povo, a esperança representada pelo momento histórico... E nesse ponto elas parecem esbarrar no fotojornalismo. Você vê este trabalho como distinto dessa categoria? É importante pra você que exista esta distinção? Como ela se dá?
O primeiro ponto é como cada artista conduz a sua obra (esta é também a forma mais fácil de escapar desta pergunta). Eu particularmente trato a fotografia como um objeto, busco inseri-la no universo das artes plásticas de modo que dialogue com outras mídias. Foi uma opção minha. Voltando à sua pergunta, isto depende muito de como você define o seu trabalho. O meio do fotógrafo jornalista é o jornal, o meu é a própria fisicalidade da imagem e seus espaços de exibição - os museus, as galerias. Minha fotografia é pensada para estes espaços, ou seja, de uma maneira mais física, penso na escala.
Em termos de conteúdo, acho que estas imagens de Brasília (Empossamento) são, de certa forma, enigmáticas e até um pouco traiçoeiras, pois elas têm esse tom jornalístico, mas ao mesmo tempo tratam também de outras questões. Elas não são só registros de um fato histórico. Fui à Brasília pra fotografar este evento, sem a intenção de fazer um trabalho. Só queria ter estas imagens no meu arquivo para poder olhá-las daqui a 30 anos e relembrar. Elas foram muito inspiradas nas fotos do Thomaz Farkas (sobre a construção e a inauguração de Brasília), que não são aquelas imagens estereotipadas da cidade vazia. São trabalhos muito especiais em relação ao tratamento do tempo, do espaço e da memória. Eu estive na casa dele e vi aquelas fotos ao vivo, algo que me marcou muito.
Então minhas imagens de Brasília também resultam de uma dedicação a pontos que estão além do mero registro de um episódio político e público.
Da mesma forma, a série Mirante não é simplesmente o registro de algumas figuras na natureza. Pra mim o olhar é o mesmo, embora em Brasília o objeto seja um evento público.
Da série Empossamento, obra de Mauro Restiffe
Insistindo um pouco neste assunto, como é pra você imaginar alguma das suas fotos da posse do Lula na página da seção de política de um jornal? Ela se distinguiria do que chamamos de fotojornalismo?
Eu não teria problema algum com isso. Mas ela não seria fotojornalismo, a não ser que eu oferecesse pra algum jornal dizendo algo como "tenho aqui fotos do presidente Lula". Tudo depende do que você faz, de como contextualiza o seu trabalho. Se um fotojornalista resolve emoldurar uma foto e colocar na parede, aquilo vira arte? Depende de muitos fatores, a começar pelo que você considera arte. São termos muito vagos, discussões que não levam a nenhum lugar.
O Guy Tillim, por exemplo, que está na Bienal (piso térreo), é fotojornalista e no entanto também expõe como artista. E fica evidente no trabalho dele este olhar de um fotojornalista, o que não o desmerece em absoluto.
Fotografia da série Leopold e Mobutu, de Guy Tillim, em exposição na Bienal
Suas fotos, em geral parecem mostrar menos uma preocupação estética e mais uma articulação discursiva, ainda que apenas sugerindo narrativas ao invés de explicitá-las.
Certamente o conteúdo narrativo é mais importante, mas a estética não fica atrás - tudo o que eu disse sobre a presença física do objeto fotografia constitui uma preocupação na direção da qualidade, do apelo visual. Tudo isso funciona como um anteparo para uma afirmação da imagem. Privilegiar o discurso não implica necessariamente negligenciar a natureza de imagem do trabalho.
Do mesmo modo que é muito fácil fazer uma bela imagem, eu poderia estar explorando qualidades abjetas. Mas o que é o feio?
Eu procuro seduzir e envolver o espectador e fazer com que sua participação seja democrática. Tenho meu próprio vocabulário dentro da arte contemporânea, o que me dá uma certa segurança.
Por que você nunca usa cor?
A ausência da cor remete ao início da feitura da imagem, ao nascimento da narrativa por meio do desenho. Você já assume de antemão que está diante de uma representação e não de uma realidade.
Você acha possível enunciar verbalmente as linhas essenciais da sua obra, delimitar sinteticamente o escopo da sua pesquisa?
Desconsiderando os fatores estéticos, eu diria que procuro fazer com que estas imagens não fiquem apenas naquele plano aparente, na assimilação imediata daquilo que estou retratando, mas que revelem algo por trás, camadas onde aquilo que você vê não é garantido. Pra mim esta é a chave do trabalho.
De certa forma, a "não garantia" de que aquilo que você está vendo é realmente aquilo é uma característica de quase toda fotografia, pertence à natureza desse meio, não?
Sim, mas a questão é como lidar com isso, com o fato de que a partir do momento em que você captou a coisa ela já deixou de ser aquilo que era. O que eu procuro é explorar essa ambigüidade da fotografia.
Você produziu a série Mirante especialmente para ser exposta na Bienal? Como você vê o seu trabalho em relação ao tema "Como Viver Junto"?
Acho que a curadoria foi muito feliz na escolha do tema. Em particular, gostei muito porque vejo que ele se abre para muitas possibilidades.
O convite para participar da mostra veio depois que a Lisette Lagnado viu as fotos da série Mirante. Acredito que estas fotos dialogam bastante com o tema.
Embora as fotos do piso térreo (Brasília-Istambul) pareçam se adequar melhor ao recorte sócio-político que a mostra propõe...
Mas nesse sentido Mirante funciona também como uma pausa no ritmo da mostra - o tema do homem na natureza é reflexivo, dialoga com o tema dos banhistas, que é recorrente na história da arte.
A paisagem pura hoje já virou uma abstração. Nós já estamos tão imbuídos de estruturas feitas pelo homem que a própria natureza já virou uma abstração.
Vejo nestes trabalhos um tom renascentista, mas com um certo estranhamento. Algumas das figuras parecem não ter cabeça. As pegadas no primeiro plano trazem uma idéia de vestígio, interessa-me o que acontece na periferia destas imagens.
Assim como nas pinturas renascentistas, há em Mirante um núcleo temático no primeiro plano, mas há também outros códigos se desenvolvendo perifericamente. Transparece a idéia de comunicação entre os personagens, o que remete ao tema da Bienal.
Realmente elas remetem a algumas obras de Ticiano e de outros pintores do período. Mas, diferentemente de sua série sobre o Brooklin, em Nova York, Roebling & North 4th, que é carregada de mistério e chega a lembrar as pinturas metafísicas de Giogio De Chirico e Carlo Carrá, Mirante apresenta imagens muito simples, cenas bastante triviais. A impressão é de que você não está querendo cativar o espectador. São fotos em preto e branco bastante discretas que retratam cenas do cotidiano. Você não acha que elas tendem a se diluir em uma mostra gigantesca como a Bienal?
Mas o cotidiano de quem? Nós estamos tão mergulhados no contexto urbano que não sei se é possível falar em cotidiano ao se referir a estas imagens.
Digo cotidiano no sentido de algo prosaico, pois já me vi inúmeras vezes nesta situação. Você acha possível dizer que estas imagens representam uma pausa no ritmo urbano?
Não, creio que seria mais preciso dizer que se trata de uma interpretação psicológica da paisagem. As séries retratam sempre o mesmo lugar, seja o Brooklin, Taipei, Brasília ou o campo. E as figuras, quando aparecem, trazem sempre elementos propícios a uma abordagem psicológica. Enquanto na série do Brooklin uma imagem depende da outra para intensificar seu sentido, estas fotos permanecem mais autônomas - as figuras se conectam entre si e também com a paisagem.
Henrique Oliveira é artista plástico e tem sua produção focada na pintura e na relação do suporte pictórico com o espaço arquitetônico. É formado pela USP, onde atualmente desenvolve, com o apoio da Fapesp, mestrado na área de poéticas visuais. Em São Paulo, é representado pela Galeria Baró Cruz, onde realizou exposição individual no início deste ano. Participou recentemente das coletivas Paralela 2006 e Fiat Mostra Brasil, ambas no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Mauro Restiffe é fotógrafo formado em cinema pela FAAP. Surgido na década de 90, é representado pela Galeria Casa Triângulo e participa no momento das Bienais de Taipei e de São Paulo.