|
novembro 23, 2006
Bienal ETC.: Farpas - Relatório de um fiscal, por Alberto Simon
BIENAL ETC.
Farpas: Relatório de um fiscal
ALBERTO SIMON
Foto: Alberto Simon
Dada a imensidão da Bienal, busquei uma constante que seja significativa da exposição inteira, uma vez que alguns exemplos dessa constante possam ser representativos do todo, sem que seja necessário falar de tudo.
De positivo, o fim das representações nacionais que torna possível uma autonomia curatorial, praxe em outras exposições, bienais ou não, no mundo inteiro, com uma ou outra exceção. O próximo passo seria se desvencilhar da obrigação de ter de se usar toda a extensão do pavilhão; a mostra se torna desnecessariamente grande demais e um tanto dispersa, o que tende a neutralizar a vantagem da autonomia curatorial, se é que concentração e consistência façam parte do projeto curatorial. E se por um lado essa autonomia possibilita um controle que abranja todos os aspectos da exposição, por outro lado senti um descuido por parte da curadoria que considero bastante problemático, e que deveria ser seriamente repensado, levando-se em conta que se trata de um componente estrutural que nessa bienal é fundamentalmente parte de sua concepção e programa.
Obra: 9 aros de arame farpado, de cerca de 1,5 m diâmetro cada, fixadas lado a lado ao longo de uma parede com uma distância de 0,5 m entre os aros, em altura constante, de Adel Abdessamed. Do texto na parede que identifica o artista e trata de esclarecer a obra: "O emprego do arame farpado na instalação escultórica Parede-Desenho se refere ao conceito de proteção das fronteiras, mais comumente conhecidas como lugares problemáticos. No entanto, o arame farpado é utilizado frequentemente na proteção do espaço privado no Brasil".
O "lugar problemático" é aquele que as artes plásticas ocupam no mundo atual, e se pode inferir por um pequeno apanhado dos textos que acompanham as obras - e que devem elucidar o público visitante da 27.Bienal de São Paulo, "como viver junto" - que o problema maior vem de dentro, uma vez que a inconsistência no tratamento dado ao espectador/leitor revela uma desorientação por parte dos realizadores quanto ao lugar desse 'lugar': se no texto acima, o pressuposto é que o visitante seja uma tábula rasa, já que se explica para que serve e onde o arame farpado é normalmente usado 'lá fora' (fora da bienal), já ali o visitante é tratado como 'iniciado': "O procedimento de apropriação de Marepe se origina no conceito de ready made duchampiano". Nesse caso, além do ready made, a suposição é que a marca 'Duchamp' seja reconhecível como 'Nestlé' ou 'Toyota', que o adjetivo 'duchampiano' faça parte do coloquial assim como os possíveis derivados 'mondrianesco', 'picassóide' ou 'matíssico' (só para ficar na categoria marcas famosas do século XX e não misturar laranjas com bananas). Já o conceito de 'conceito' (de proteção de fronteiras, de ready made) é usado indiscriminadamente para tudo, como se fosse ketchup. O "lugar problemático" se auto-mapeia usando uma cartografia não diferenciada, na qual a asserção é de que esse lugar está por toda parte.
Houve um esforço tremendo por parte da curadoria para acabar de vez com a percepção generalizada e estereotipada de que o/a artista plástico/a é um ser que vive trancafiado num atelier pintando, esculpindo ou bordando as bellas-artes a serem consumidas por um punhado de gente endinheirada e que 'sim, a realidade não nos é alheia, temos uma participação ativa e decisiva no desenrolar dos acontecimentos de um mundo cheio de problemas'. A irrelevância das artes plásticas no desenrolar dos acontecimentos do mundo atual é negada, se não com unhas e dentes, então com ferramentas discursivas de legitimização que contém os vícios e cacoetes da indústria publicitária de antes do tempo em que se criaram os órgãos reguladores de proteção ao consumidor. Se existe o órgão regulador que torna mais difícil que se encontre escrito numa bula que o medicamento 'X' contém ingredientes que sejam 'eficazes no tratamento da prisão de ventre, diarréia, úlcera, gastrite e reumatismo, assim como nos males da bexiga, dos olhos e dos nervos', não existe um órgão semelhante que verifique o discurso promocional que serve de bula ou de instruções de uso para o visitante da bienal. Aqui alguns exemplos:
"O trabalho de Antal Lakner enfoca questões globais que abrangem desde a ecologia até o transporte urbano e os ambientes de trabalho. Encravados na realidade, os irônicos e inovadores produtos criados pelo artista fazem um uso subversivo dos meios empregados pelas estruturas sociais, econômicas e artísticas."
Sobre a obra de Lars Ramberg: " com a finalidade de enfatizar as profundas implicações sociais e políticas, obscurecidas pelos contextos oficiais da informação e da comunicação pública."
Em Segurança de Jane Alexander, "a artista aborda algumas questões preocupantes, comuns ao Brasil e África do Sul, tais como deslocamentos, a segurança, a disparidade econômica, a violência e o desemprego".
A obra de Abdessamed "questiona os limites sociais, políticos e culturais tanto nas sociedades muçulmanas quanto nas ocidentais".
Ou seja, a obra em si não passa de um ícone, que uma vez clicado (via texto) inicia um programa que é capaz de tudo, contém tudo e abrange tudo (vale dizer que esse software tem algo em comum com o carnaval: a obra-carro-alegórico desfila cantarolando o texto-samba-enredo). O fotógrafo não fotografa, mas "investiga as condições de vida de pessoas que deixaram suas casas e chegaram em lugares estrangeiros" (Ahlam Shibli, da série Mercado, 2005).
A legenda também já condiciona o humor do visitante, para evitar qualquer margem de erro de interpretação. Sobre Monica Bonvicini: "Com bom humor e sátira, a artista ataca as estruturas ocultas do poder construídas por uma cultura heterosexual machista" (Isso é uma piada! HA!). O artista é necessariamente versado nas diversas disciplinas das ciências humanas, e naturalmente afinado ideologicamente com a curadoria.
Olhar criticamente a realidade é monopólio da exposição, ao visitante só é deixada a possibilidade de gostar ou não da obra, mas não de observar criticamente a idoneidade ideológica ou intenção 'artística'. Há duas semanas foi publicada na revista de domingo do New York Times uma entrevista com John Ashcroft, até há pouco tempo ministro da justiça da administração George W. Bush. Evangélico, reacionário, próximo à extrema-direita e nada popular, Ashcroft deixou o cargo e agora é lobbysta em Washington. Aqui a parte final da entrevista:
NYT: Além de escrever canções, você também experimenta um pouco com as artes visuais. Que tipo de trabalho você faz?
J.A.: Eu faço esculturas de arame farpado.
NYT: Por que arame farpado?
J.A.: Porque estava sobrando na minha fazenda.
NYT: Bom, obrigado pelo tempo colocado à disposição para essa entrevista.
J.A.: Eu só espero que conhecendo pessoas, elas entenderão que eu não sou tão ruim quanto elas pensavam que eu fosse.
O video "A Árvore de Andrômeda (Uma Declaração) da artista israelense Yael Bartana tematiza o 'lugar problemático' Oriente Médio. Do texto: "A câmera segue o protagonista, que substitui uma bandeira israelense que está instalada no porto de Jaffa por uma oliveira". Nesse caso só a descrição da estorinha, aqui se espera que a 'mensagem de paz' esteja sub-entendida, sem bom humor nem sátira. (Que estilisticamente a qualidade do video seja o equivalente à uma novela mexicana - a câmera é lenta -, e que um problema complexo como o oriente médio mereça esse tratamento simplório e kitsch, bom, isso é problema meu).
A criançada gosta de brincar de casinha, mas chegou a hora de brincar de escolinha. A substituição do valor subjetivo (e comercial) das 'bellas-artes' pelo valor objetivo da educação (moral e cívica) é posta em prática por um processo de 'alfabetização' do público, mas não fica claro se o alfabeto é fonético ou se é um sistema ideográfico: às vezes um 'A' é definido como um símbolo que tem o som de 'a' e que combinado com o símbolo 'B' forma 'ba'; outras vezes o 'A' é descrito como um triângulo com duas perninhas e que aponta para cima e representa isso ou aquilo e contém implicações profundas que abrangem de A à Z (aponta para o céu? implica paz na terra aos artistas/curadores de boa vontade?)
O "lugar problemático", o situar e inserir a arte contemporânea no mundo contemporâneo seria um empreendimento mais frutífero se fosse reconhecido menos como 'lugar' e mais como 'não-lugar'. Um não-lugar constituido de incertezas artísticas (farpas de Abdessamed versus farpas de Ashcroft: who cares?), mas reconhecível e mapeável pelas relações de poder, influências e hierarquias que delineam esse não-lugar (leia: o conglomerado multinacional 'arte contemporânea', como qualquer outro, é também regido por interesses econômicos, conflitos de interesse, de ideologia, por vaidades, preferências, consultorias, egos, acasos, amores, traições, ilusões, intenções, especulações, acertos, equívocos, preconceitos, gatos e lebres, etc ). Se operasse abertamente a partir do não-lugar (de um paraiso fiscal?), a proposta de 'como vender o peixe' estaria bem mais próxima do seu propósito: a arte de viver junto.
Alberto Simon é artista plástico e vive em Berlim, onde se formou pela Universidade das Artes (UdK) em 1990. Nasceu em São Paulo em 1961. Em 2006 fez uma residência de dois meses em São Paulo, na EXO, a convite do Instituto Goethe, quando também realizou uma mostra individual na Galeria Baró-Cruz. Participou também da Paralela 2006.
Alberto, parabéns por ler as etiquetas; eu não tenho paciência. Elas são peças de um discurso legitimador das obras, por isso não leio. Gosto de olhar as obras com meu dois olhos. Se as obras não se explicarem, prefiro ficar no escuro a ler uma explicação do tipo persuasiva (como na propaganda), que tenta te convencer de algo. Se as etiquetas tivessem só informações e não interpretações seria melhor. Crítica de arte, deixem para o catálogo.
Quanto à Bienal, ouso afirmar que ela não ensina muito bem a viver junto. A Bienal é bastante excludente em sua linha curatorial a favor dos excluídos. Explico: com seus artistas contestadores tipo Gordon Matta-Clark, e os fotógrafos documentaristas das misérias do mundo, ela acaba por excluir todos os outros artistas e obras que são de tendências diferentes da linha curatorial. Exemplos: os pintores formalistas abstratos; os pintores figurativos que não lidam com temas sociais nem com questões pessoais; os escultores abstratos; os escultores não tão abstratos assim; e muitos outros que não me ocorrem. Sei que o objetivo da curadora foi marcar uma linha curatorial. E como sou artista faço aquela clássica reclamação do tipo é a curadoria que pauta a exposição e não os artistas, que lástima. Mas acho que a curadoria deveria incluir todas as tendências artísticas e não deixar uma só e excluir outras. Assim poderíamos aprender a viver junto. No momento não sabemos fazer isso. Imagino uma próxima Bienal com uma curadoria oposta a essa apenas com os formalistas por exemplo o que também não será bom e confirmará que estamos sempre em guerra e não sabemos viver junto nós artistas, curadores, críticos, galerias etc.
Antonio Malta