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novembro 14, 2006
Bienal ETC.: Pieter Hugo e a fotografia que nos olha, por Heloisa Espada
Bienal ETC.
Pieter Hugo e a fotografia que nos olha
HELOISA ESPADA
É curioso notar que, após décadas de discussões sobre a arbitrariedade do código fotográfico e num momento em que, mais do que nunca, a tecnologia digital põe em xeque a veracidade da fotografia, ela se faça presente na arte contemporânea sobretudo pelo viés documental. A maior parte dos ensaios exibidos na 27ª Bienal são fotorreportagens enfocando conflitos bélicos e tensões culturais em diferentes regiões do globo. O operador da câmera escolhe o assunto e o ponto de vista, mas, como era no século XIX, a imagem parece ser considerada, em primeiro lugar, como um registro inequívoco da realidade. Na série Leopoldo e Mobutu (1997-2004), de Guy Tillin, por exemplo, vemos os vestígios da guerra e aprendemos sobre o presente catastrófico da República do Congo antes de nos darmos conta das escolhas estéticas do fotógrafo, embora elas estejam ali e contribuam para a eficácia da mensagem.
No entanto, não seria legítimo questionar, mais uma vez, se essas fotos nos aproximam efetivamente das situações que explicitam? Nos anos 1970, a ensaísta norte-americana Susan Sontag defendia a idéia de que o bombardeio de imagens trágicas pela mídia levava à apatia. Cerca de 30 anos depois, no livro Diante da Dor dos Outros, contestou a si mesma argumentando que a fotografia não pode ser culpada pela indiferença dos indivíduos às calamidades sociais. Para Sontag, mesmo sem o intermédio das imagens técnicas, a própria atitude de olhar para o outro pressupõe um distanciamento que dificulta a empatia. Ela conclui que ver o sofrimento do outro, por mais próximo que esteja, nunca será o mesmo que senti-lo na pele. Por isso, o potencial de mudança proporcionado pela fotografia de denúncia é exíguo.
Os retratos do artista sul-africano Pieter Hugo em cartaz na 27ª Bienal abalam a atitude distanciada e contemplativa do espectador em relação à imagem fotográfica. Seus trabalhos enfocam quase sempre países africanos e, principalmente, a África do Sul, onde vive. De imediato, chamam a atenção pela abordagem frontal e pela postura imponente e desafiadora dos sujeitos fotografados. A seqüência Os Homens Hiena da Nigéria (2005) registra um grupo de artistas itinerantes juntamente com os animais exibidos em shows: hienas, macacos, cães e cobras. Juízes, Botsuana (2005) mostra magistrados da suprema corte de Botsuwana. Musina (2006) retrata os habitantes de Musina, uma pequena cidade sul-africana que faz fronteira com o Zimbábue.
No livro A Câmera Clara, o semiólogo francês Roland Barthes, um dos "pilares" conceituais da Bienal, afirma que, sempre que se via observado por uma câmera fotográfica, imediatamente todo seu corpo se transformava em imagem. Para ele, era impossível ignorar a lente e, por isso, a pose implicava numa encenação inevitável. Nos retratos de Pieter Hugo, tanto o fotógrafo quanto os fotografados parecem conscientes do caráter "performático" do retrato e causam a impressão de que a construção do significado das imagens provém da negociação entre eles. Em entrevista publicada no Guia da 27ª Bienal, o próprio Hugo ressalta que o processo de se aproximar das pessoas e pedir permissão para fotografá-las é um dos aspectos mais importantes de seu trabalho. Ele afirma que sua condição de homem branco na África muitas vezes o leva a ser observado criticamente pelas pessoas que fotografa. A relação estabelecida parece ser de troca e não de dominação. Ele olha e é olhado. Em conseqüência disso, o impacto causado pela autonomia dos sujeitos retratados levanta questões sobre a autoria do trabalho fotográfico: de quem é a foto? do retratista ou do retratado?
Na série Os Homens Hiena da Nigéria, há uma incômoda proximidade entre homens e animais enfatizada pela aridez dos ambientes e pelo tratamento quase monocromático aplicado às imagens. Como se fizessem parte de uma mesma natureza, os homens, os animais e a vegetação apresentam quase uma única tonalidade sépia. Suas roupas, estrangeiras ou tipicamente locais, têm um colorido opaco, mas, ainda assim, se destacam nas cenas. Os homens olham com firmeza para a câmera enquanto os animais parecem alheios. O mal-estar aumenta nas situações em que os macacos estão vestidos com o mesmo tipo de malha que os homens, o que dá aos bichos o aspecto de brinquedos inanimados. Mesmo as cobras e as hienas vestindo focinheiras aparecem junto das pessoas como se fossem animais de estimação.
Os nigerianos não têm casa e esse é o primeiro contraste entre eles e a população de Musina. Lá as famílias foram fotografadas em suas casas, junto de pequenos animais domésticos. Hugo mais uma vez dá espaço para que os sujeitos se apresentem como desejam, o que quase sempre, à revelia do naturalismo técnico, confere um caráter artificial e ao mesmo tempo revelador à imagem. Enquanto os artistas mambembes são altivos junto de seus bichos assustadores, os sul-africanos brancos aparecem submissos à câmera, em poses excessivamente rígidas.
As imagens de juízes de Botsuwana lembram retratos renascentistas. Hugo enfatiza o olhar inquiridor e a autoridade dos magistrados enquadrando-os como se fossem bustos romanos em frente de um fundo preto. Ao olhar para a fotografia, o espectador se sente também observado por ela. Se A honorável juíza Julia Sakardie-Mensah avalia a atitude do fotógrafo que vai captar sua aparência, por extensão, questiona também o interesse do observador por ela. Nas fotos de Hugo, "o outro" não é um mero objeto de curiosidade, tampouco alguém pelo qual devemos sentir pena, mas um agente que interfere na maneira como nos relacionamos com a imagem. A densidade da obra não está apenas no apelo social do assunto (o que caracteriza boa parte dos trabalhos da Bienal, diga-se de passagem), mas na maneira como o próprio referente se comporta e em como o fotógrafo nos mostra isso.
Heloisa Espada é Mestre em História da Arte pela Universidade de São Paulo. Integra o Grupo de Críticos do Centro Universitário MariAntonia e o Centro de Pesquisa em Arte & Fotografia da ECA/USP. É redatora da Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais.
Lindas fotografias e comentário esclarecedor e inteligente.
Parabens! Fotos & Matéria.