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dezembro 16, 2005
Arte de pelúcia, por Juliana Monachesi
Raul Mourão, Vicente Rozados e Raquel Schwartz põem a pelúcia a serviço da crítica, mas tornam-se reféns da insondável e avassaladora fofice do material
Arte de pelúcia
JULIANA MONACHESI
Nos vôos da TAM durante o mês de dezembro uma situação curiosa tem acontecido: para "comemorar o Natal com seus clientes", a companhia aérea sorteia bichinhos de pelúcia entre os passageiros do vôo. São seis personagens criados para homenagear a fauna brasileira e conscientizar as pessoas sobre a preservação de animais ameaçados de extinção. Os bichinhos de pelúcia têm nomes próprios, vejam vocês: Bibo é o mico leão dourado, Tatá é o tamanduá, Mirtes é "a" jacaré, Joca é o lobo guará, Capi é a capivara e Escotilha é o peixe-boi. Na hora do sorteio o avião põe-se em um estranho estado de agitação, as crianças ficam alucinadas. Já presenciei outros sorteios de brindes em viagens aéreas, mas nunca nenhum que provocasse tal alvoroço.
O que diabos há nos bichos de pelúcia que mexe tanto com as pessoas, sejam crianças ou adultos?
A obra mais visitada da 5ª Bienal do Mercosul, que terminou recentemente em Porto Alegre, foi, pasmem, uma instalação de pelúcia. Intitulado Ilusión, o trabalho da artista boliviana Raquel Schwartz era uma casa toda revestida de pelúcia cor-de-rosa. Um ambiente de dois andares forrado de pelúcia do chão ao teto, contendo sofá, almofadas, mesa, cadeira, copos, pratos, talheres, fogão, panelas, cama, banheira, papel higiênico etc., tudo em tamanho natural, tudo revestido com a pelúcia cor-de-rosa. Em qualquer dia de visitação ao armazém A3 do Cais do Porto, onde a obra estava, mesmo durante a semana, filas se formavam para entrar na "casa" de 396 m² e 540 metros de pelúcia.
Raquel Schwartz é conhecida por aqui. Apresentou na 25ª Bienal de São Paulo, em 2002, a obra Cárcel de Ilusiones, que também atraiu muita atenção. Era uma jaula... de pelúcia cor-de-rosa, com espelhos posicionados no piso e no teto, dando um efeito de infinito. Em ambos os trabalhos, a proposta da artista é construir metáforas sobre a realidade e os contrastes de seu país. Em entrevista ao site artewebbrasil (1), a artista afirmou, acerca do trabalho de 2002: "Cárcel de Ilusiones hablaba sobre la migración masiva de gente del campo a la ciudad en busca de mejores posibilidades de vida y se encuentran muchas veces en una cárcel de ilusiones donde mas bien encuentran todo tipo de vejámenes y problemas, y el sueño se trunca como ilusión falsa. La obra simboliza en su formalidad una caja urbana, era como estar en un ascensor infinito. Con los barrotes flexibles, o sea con la posibilidad de salir cuando quieras".
Mas por que utilizar pelúcia? Seria uma metáfora do "sonho cor-de-rosa" que representa a evasão do campo rumo às cidades? Mais adiante na entrevista, Raquel explica seu projeto para a Bienal do Mercosul: "La instalación Ilusión apela a los sentidos, recurriendo a la memoria, a las sensaciones y al juego infantil, al peluche. A través de esta instalación propongo poner en evidencia el dilema de la familia del siglo 21, la contra posición de los valores y la violencia en un mismo espacio; la obra busca un dialogo entre la atracción y la repulsión, entre la seducción y el miedo, entre ilusión y realidad, recreando la casa, pero de juguete, de peluche rosa, como objeto de ilusión y deseo".
Aqui temos alguns indícios mais interessantes: as dicotomias atração/repulsa, sedução/medo e ilusão/realidade dão pistas sobre o apelo deste material. Inextricável ao universo infantil, associado de um jeito ou de outro para quase todo mundo a memórias afetivas de um tempo irrecuperável ou que nunca chegou a ser, o ursinho de pelúcia é algo como o "objeto A" de Lacan, o elo perdido e impossível de simbolizar. Uma obra de arte feita de pelúcia, ainda que tenha como propósito a crítica, como que elimina magicamente qualquer possibilidade de reflexão, tira de cena a consciência. Um bichinho de pelúcia sendo sorteado no avião, assim de surpresa, como que dispara nas pessoas o desejo de recuperar algo. Algo impossível de recuperar. Daí a frustração por não ser sorteado. Daí o vazio quando se é o sorteado.
Duas exposições atualmente em cartaz, uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro, encontram-se nesta encruzilhada. Em São Paulo, na galeria Thomas Cohn, o artista argentino Vicente Rozados realiza sua primeira mostra individual. No Rio, Raul Mourão apresenta o projeto Luladepelúcia na galeria Lurixs. Rozados reencena fábulas, ícones da história da arte e mitologias urbanas e rurais em obras feitas de pelúcia sobre MDF. Visitar a exposição é uma experiência única e imperdível (para quem não viu, a mostra está em cartaz apenas até amanhã, das 11h às 18h; vale a pena arrumar um tempinho e passar na galeria Thomas Cohn, que fica na av. Europa, 641). As cenas construídas pelo artista nos transportam a um outro tempo. O percurso lúdico e onírico é invadido a cada passo por pequenas subversões de sentido, ruídos surrealistas, perversões do suposto universo infantil.
Cito alguns exemplos: Um peão suspenso no movimento de domar um touro aparece circundado de vasinhos de flor, flutuando ao seu redor; uma gueixa sob uma árvore é observada por miniaturas de crianças que fazem as vezes dos "frutos" da árvore; a leiteira de Vermeer surge, com uma máscara de gás, derramando o leite de seu jarro no ouvido de um rapaz adormecido. Quando observado em detalhe, é um mundo estranho este habitado pelos personagens de Vicente Rozados, mas, paradoxalmente, o ambiente criado por estas sedutoras peças de pelúcia colorida pontuando todo o espaço resulta alegre e singelo.
O Luladepelúcia de Raul Mourão é isto mesmo que o nome diz: bonequinhos de pelúcia que representam nosso Presidente da República. E, como o assunto é longo -e cabeludo-, deixo para terminar este texto em breve.
(continua...)
NOTAS:
1. Disponível em http://www.artewebbrasil.com.br/5bienal/raquel.htm
Mi nombre es Vicente Rozados y queria hacele llegar mi agradecimeinto por su texto sobre mi obra expuesta en Thomas Cohn. Realmente reconforta, no solo por su reconociemiento sino por la molestia que se ha tomado para con mi trabajo. Lamento no haberle podido responder estas lineas antes en pos de hacerle saber lo grato que me ha resultado leer su interpretacion, su mirada y claridad, sobre eso que he arrojado, que bastante tiempo y esfuerzo intelectual y fisico me ha demandado, en las paredes de la galeria.
Nuevamente gracias,
Vicente