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julho 29, 2005
Da "pintura que não dá pé" à escultura que afoga, por Juliana Monachesi
Da "pintura que não dá pé" à escultura que afoga
JULIANA MONACHESI
Deve ter sido uma visão e tanto a da sala principal da Maria Antonia vazia em noite de abertura, o público todo contido pela pequena grade branca alinhada às duas primeiras colunas do espaço. Algo como aquelas peças do Serra que vão espremendo as pessoas mais e mais. Só que, aqui, o muro era invisível, tênue. Da parte da sala a que as pessoas tinham acesso, via-se uma peça de gesso travada no vazio.
"Não tem aquela coisa de chegar perto, encostar, colocar a lata de cerveja em cima e chamar de meu chapa!" (1)
O título deste trabalho de Carlito Carvalhosa seria, originalmente, "Perna de três", mas acabou ganhando o nome "Favor não tocar" durante a construção da obra, depois que o artista decidiu que haveria uma barreira impedindo a circulação. O conhecimento deste nome-que-não-foi-mas-poderia-ter-sido possibilita uma primeira aproximação entre a escultura em exibição no Ceuma e uma série de esculturas que o artista realizou no MuBE em 1999, intitulada "Duas águas".
É que parece haver duas famílias de títulos na produção de Carvalhosa: aqueles que praticamente descrevem a constituição física das obras, como "Ceras perdidas" e "Espelhos graxos", e aqueles que ficam entre termo técnico e expressão poética, entre descrição física e metafórica da obra, como "Duas águas" e "Perna de três" (No exemplo, mais uma coincidência é ambos conterem números no nome).
"Perna de três" serve para designar um elemento de construção civil. Já "duas águas" é o nome que se dá ao telhado que possui caimento de dois lados para a água, construído na forma de um "V" invertido. As duas facetas do telhado inspiraram João Cabral de Melo Neto a designar com este nome a divisão de sua obra, em título de livro de 1956: uma faceta mais hermética e outra, mais popular, poemas para ler e outros para recitar.
Para além de uma possível relação entre os nomes das obras, "Duas águas" e a peça do Ceuma têm em comum o material, a cor, a densidade travestida de leveza. Trataria-se -a exposição na Maria Antonia- de um desdobramento das peças expostas no MuBE em 99, como se em vez de famílias de nomes, fosse possível indicar na produção de Carlito Carvalhosa famílias de trabalhos?
Este grupo de obras teria menor parentesco, por exemplo, com as esculturas em gesso perfurado mostradas na exposição de 2003 na galeria Raquel Arnaud, que estabelecem maior diálogo com a série de porcelana esmaltada de 1996/7, não tanto pela questão das perfurações, mas por uma espécie de acabamento "seco", oposto ao acabamento "úmido" de "Duas águas" e de "Favor não tocar".
"A peça na Raquel tinha várias naturezas, uma parte furada, outra muito fina, era uma peça mais híbrida, na linha das peças em porcelana. Uma peça que você pode dar a volta nela e sempre vai surgir algo que não se apresentava antes. Desta vez pensei que era possível ver a peça com mais intensidade se eu mantivesse a distância dela. Para fazer o espaço em torno dela parte da peça."
É como se a distância tornasse a escultura mais visível, no sentido daquela experiência original de ver, que se opõe à experiência contemporânea de "re-ver", de que nos fala Paul Virilio: "Hoje em dia nós não somos mais verdadeiros 'voyants', mas já 'revoyants'; a tautológica repetição do mesmo, em funcionamento em nosso modo de produção (industrial), está em funcionamento da mesma forma em nosso modo de percepção", escreve em "O horizonte negativo" (1984).
O oposto de "rever" seria "tornar visível o invisível", tarefa de que o filósofo se auto-incumbiu. Para combater a super oferta visual que atrapalha a percepção -"eu me convenci de que a visão dá menos a ver, e de que é acima de tudo um processo de ocultamento"-, Virilio propõe uma cegueira voluntária, que o leva a notar as articulações entre os objetos, mais do que os próprios, encontrando nos intervalos e interstícios formas novas e mais complexas.
Fazendo do espaço em torno da peça parte integrante dela, Carvalhosa nos força a adotar uma espécie de cegueira involuntária. No habitual afã de ver mais e melhor, de ver de perto e de tocar, acabamos -entre a frustração e a impotência, ali brecados pela barreira- deixando o olhar vagar pelo vazio, imaginando como aquilo foi parar ali, se há alguma coisa sustentando aquele corpo informe em algum ponto onde a vista não alcança.
É interessante mencionar que a peça foi abaixada e não levantada; foi construída inclinada, acima de onde ela está, e abaixada até travar. Ela parou naquela posição, e só então o artista colocou travas de aço para evitar que ela se movesse durante o período da exposição, o que talvez nem acontecesse, já que as toneladas de gesso de fato estão prensadas entre as colunas.
Sua suspensão remete à vocação de "instante congelado" das pinturas que estavam na Raquel Arnaud (de gesso, óleo, graxa e resina sobre espelho). E também daquelas um pouco anteriores, em que o artista prensava apenas o gesso molhado entre vidros. Essa suspensão fica entre a precariedade e a perenidade, um paradoxo como aqueles apontados por Rodrigo Naves em texto sobre a natureza cindida de sua produção (2).
"Eu gosto desse paradoxo, gosto que as peças sejam instáveis, no sentido do seu significado, da presença dos materiais e na relação dela com o espaço."
Lorenzo Mammì tem lindas definições para obras do artista, que esclarecem aspectos da peça atual, como "pintura que não dá pé" (3). Essa escultura como que não dá pé também, não por uma indefinição entre figura e fundo (que era o que Mammì apontava nas pinturas de 1989), mas pela posição acima da linha do horizonte: a gente não vê a parte de cima e fica na ponta dos pés, como quem já quase afundou a cabeça na água.
Outra da lavra de Mammì: "a verdade da obra se situa num território indefinido entre o nada e a anedota" (4). "Favor não tocar" estaria também "entre o nada e a anedota" porque remete a coisas sem imitar nada (parece uma nuvem, parece um avião, parece um navio encalhado, parece um bicho, um tubarão, mas não é nada disso) e porque esconde seu processo de construção -seguindo, novamente, o raciocínio do crítico.
"Escultura que não dá pé de fato é um bom nome. Acho, no entanto, que nessa peça há uma indefinição entre figura e fundo, eu acho que ela transforma a escala da sala".
E o gesso, afinal, é bom ou mau caráter?, pergunto.
"O gesso é um material de todo dia, do braço quebrado ao forro decorado, é um material de transição em arte, ninguém pensa muito nele, por isso ele me interessa. Eu gosto dele mudar do úmido para o seco, de ele ser tão neutro que é difícil saber o que ele é. Uma vez fui a um castelo na Alemanha, barroco, todas as colunas eram em gesso imitando mármore. Parece que no século 17 era mais caro e sofisticado fazer o gesso imitando mármore do que comprar o próprio mármore, e por isso todas as colunas eram em gesso, nesse caso o falso ostentava mais do que o verdadeiro."
Notas:
1. As intervenções, entre aspas e em negrito, são falas de Carlito Carvalhosa, retiradas de respostas a uma entrevista feita por e-mail, nos dias 27 e 28 de julho de 2005, a respeito da exposição no Centro Universitário Maria Antonia.
2. NAVES, Rodrigo. "Óleo sobre água", em Carlito Carvalhosa, Lorenzo Mammì (org.). São Paulo: CosacNaify, 2000.
3. MAMMÌ, Lorenzo. Prefácio ao livro Carlito Carvalhosa. São Paulo: CosacNaify, 2000.
4. Idem, ibidem.
vai ser chato assim lá na puta que pariu
Posted by: simon at agosto 8, 2005 5:26 PMParabens,Carlito, o seu trabalho apesar de ter uma outra poética me remeteu ao George Segal, talvez pelo material empregado .
Posted by: sandra schechtman at outubro 13, 2005 10:28 PMOlá Carlito. Parabéns pelo trabalho. Estou fazendo contato pois preciso o email profissional da jornalista Juliana Monachesi. Isso pode ser informado. Estarei no aguardo. Saudações, Eduardo Fittipaldi
Posted by: Eduardo Fittipaldi at setembro 1, 2008 8:21 PM