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maio 9, 2005
Retardando o tempo por Rubens Pileggi Sá
"Uma e três cadeiras", de 1965, de Joseph Kosuth: o significado da obra como parte dela.
Retardando o tempo
RUBENS PILEGGI SÁ
Dizem que uma certa tribo mede o tempo pelo tempo que uma coisa, em comparação a outra, leva para ser feita. Por exemplo: se alguém pergunta quanto tempo leva para escrever um texto, a resposta pode ser o tempo de um casal fazendo amor. Ou, o tempo que se leva para chegar à rodoviária de um determinado lugar é o mesmo tempo que um cuspe leva para secar, se cuspido agora.
O tempo, medido pelo relógio é apenas uma das medidas possíveis para o tempo vivido. O tempo, medido pelo relógio, não é o tempo que se experimenta, mas o tempo que justifica a produção de mercadorias, o tempo dos negócios, o tempo da economia. O tempo da natureza segue o fluxo do sol, da lua, das marés, das estações, do tempo de preparar a terra, plantar, adubar e do tempo de colher. Mas não quer dizer que isso vá acontecer na abstração do dia tal, mês tal, tal horário, etc. O tempo sabe se administrar sozinho e não precisa de uma máquina para controlá-lo.
Quando Marcel Duchamp, no início do século passado viu um motor em funcionamento, teria dito: "isso não vai acabar bem!". Segundo a escritora de arte Rosalind Krauss, em seu ensaio "Duchamp, ou o Campo do Imaginário", toda a obra do artista seria uma "obra em atraso", no sentido de "estar em atraso" e o de "paralisar", "capturar", "retirar", de se "extrair algo do fluxo temporal". Suas obras falam das marcas deixadas daquilo que aconteceu e que sobrevivem como uma fotografia, um registro de algo passado, um instantâneo acontecido impossível de ser capturado senão por seus indícios, como as marcas circulares deixadas por um copo com gelo sobre uma superfície qualquer.
Talvez o indício mais ancestral que conhecemos seja os rastros dos animais deixados no chão, na areia, na terra. Nossa escritura provavelmente nasceu daí. É a captura de um significado que nos informa que nossa caça ou nosso caçador por ali passou. E nos coloca em estado de atenção e alerta. Nossa memória ganha, assim, uma prova que pode durar por alguns instantes (ou milênios) antes de perder-se, apesar de não possuir o acontecido, porque esse é sempre conjugado no gerúndio, o acontecido está sempre acontecendo...
A arte conceitual começa com uma obra chamada "uma e três cadeiras", de 1965, de Joseph Kosuth. Em uma parede está afixada a definição de um dicionário sobre a palavra cadeira, uma foto de uma cadeira e uma cadeira de verdade. Para quem estuda semiologia, um prato cheio, pois, ao se aproximar do significado que o título da obra nos remete, nos vemos atrás de "pegadas" que fazem da questão visual muito mais uma percepção de tempo "em atraso", do que, propriamente, da representação de uma cadeira e suas possíveis "materialidades".
A medição do tempo não é uma exclusividade dos ponteiros do relógio, nem de impulsos elétricos que nos informam a que horas o trem sairá. Podemos, como os pertencentes daquela tribo citada, vivenciar uma "suspensão temporal de tirar o fôlego" quando nos entregamos à sensação de algo arrebatador, que não precisa de uma explicação lógica e a linearidade do tempo é simplesmente abolida. Um segundo ou um milênio passados no relógio não fazem mais sentido, simplesmente vivemos o fluxo, onde contemplar e agir são partes da mesma dimensão. Não há criadores, nem obras, nem espectadores, nem arte, nem nada. Aliás, nesse momento nem pensar sobre o que quer que seja, pensamos. Apenas estamos vivos, fazendo amor, cuspindo, escrevendo ou lendo, nos deixando levar, é óbvio, por indícios.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.