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março 19, 2005
Quando as aparências se diferem
Reprodução de foto de Sherrie Levine, de 1994, de um quadro de Van Gogh: conceito original para pensar uma cópia
Quando as aparências se diferem
RUBENS PILEGGI SÁ
Algo em comum - É a cara do pai. Tem o nariz da mãe. Puxou a tia. Todo mundo tem alguém parecido fisicamente ou espiritualmente igual a nós. Algo em comum que possa nos unir, ou nos afastar de vez de certas coisas, certos hábitos ou até, de certas pessoas. "Alguma coisa nós temos em comum"!
E o que é esse algo em comum? Esse "algo em comum" é o que nos identifica um ao outro. Seja por questão de espaço, interesses de qualquer natureza, percepção de certos fenômenos, ou até nas aparências. E é aí que as aparências se enganam!
Mas se - como dizem - aparência não é tudo na vida, ao menos ela nos identifica quem é o seu portador. Como quem quer aparentar ter mais do que tem. Ou, como quem não se parece mais com a fotografia de sua própria identidade e é barrado por falsidade ideológica. Identidade é tudo!
Identidade Nacional - Um dos conceitos chaves para se entender a cultura nacional foi forjado no modernismo brasileiro graças às influências européias que estavam pipocando no começo do século passado, particularmente em Paris. Era de lá que os filhos da alta burguesia voltavam trazendo na bagagem idéias novas em um cenário que carecia de mudanças. O país deixava de ser exclusivamente agrícola.
A idéia era repensar a cultura local a partir "do caldeirão das raças" formado por negros, europeus e índios, valorizando o que era da terra e se apropriando do que interessava em relação à produção artística, tecnológica e intelectual que havia no velho mundo. Como disse Oswald de Andrade: "só me interesso pelo que não é meu", resumindo a ideologia da Antropofagia Brasileira. Assim como os extintos índios Tupinambás comiam carne de gente em rituais de "retirar a força do inimigo" e essa força "tornar-se" deles, nossos modernistas também passaram a utilizar a mesma estratégia em relação à cultura estrangeira. Até aí nada de novo!
Copiar ou não copiar? - Então quer dizer que a nossa identidade é a cópia? Quer dizer que vale tudo nesse jogo de "ensinar o que eles sabem e tomar o que eles têm", como diz o cáustico ditado? Sim e não é a resposta.
Sim, porque nenhuma imagem, nenhum texto, nenhuma idéia, nenhuma ciência, nenhuma nova tecnologia, nenhum conhecimento humano, nenhuma sabedoria, nenhuma cultura, surge sem que existam condições, contexto e História que as sustentem, que as estruturem. A própria natureza repete seus ciclos, "se copia", favorecendo a época do plantio e da colheita.
E em nossa época, com a disponibilidade de informações ao nosso alcance, repetir, copiar, misturar e combinar parece ser o que de mais original podemos criar. Do clone ao transgênico. Do "scratch" do Hip Hop às plagio-combinações estéticas da música popular.
E a resposta à pergunta acima é, também, não. Porque nesse jogo de vale tudo onde os interesses financeiros, mercantis, comerciais, econômicos se sobrepõem à ética e à vida, o roubo passa a valer como parte do jogo, como se fosse natural deixar que o capital humano fosse propriedade apenas de uma pequena parcela de privilegiados que podem desfrutar dos benefícios da tecnologia.
Em razão disso, o grupo italiano Wu Ming criou o conceito "copy left" em contraposição ao "copy right" dos direitos autorais exclusivos. Quer dizer, é permitida a cópia, desde que para fins não comerciais. Desde que não se ganhe dinheiro sobre a produção intelectual, artística e científica de outrem. Desde que se agregue valor cultural ao produto utilizado. Vale dizer, desde haja comum acordo entre as partes envolvidas. Diálogo.
Hábitos culturais - Aliás, por falar em cópia, quando alguém copia o trabalho de outro alguém, pelo menos há uma reverência pela criação do outro. E quem o faz precisa ao menos se esforçar para fazer igual ou melhor que o original. O pior é quando arrancam o original do seu contexto e o vendem como posse de quem quer que o tenha se apropriado. Seja propriedade intelectual, seja um peixe arrancado do rio. Parece que quando as regras não estão claras, não há regras, já que nossa "tradição" extrativista torna "natural" a apropriação indébita. Crime instituído pelo hábito!
O pai da criança - A questão sobre direitos autorais, realmente, envolve desde grandes gravadoras e produtoras que vêem seus faturamentos caírem com as possibilidades de reprodução de sons e imagens, particularmente pela internet, até movimentos artísticos e filosóficos que, inclusive, incentivam a apropriação do conhecimento como produto comum, de acesso a quem queira utiliza-lo. E isso é um fato quem ganhando corpo em nossa sociedade. O que falta esclarecer, ainda, é que nem sempre o pai biológico da criança é o verdadeiro pai, porque a personalidade e o caráter da criança serão moldados de acordo com a sua formação e é essa a regra ética que deve ser levada sempre em consideração.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.