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março 6, 2005
A natureza pura da impureza
"O Abapuru", ou "o que come gente", de 1928, de Tarsila do Amaral: obra chave do modernismo brasileiro.
A natureza pura da impureza
RUBENS PILEGGI SÁ
Em uma palestra, há anos, em São Paulo, na biblioteca Mário de Andrade, o poeta Roberto Piva falava sobre um monge budista que tinha fama de mulherengo, vagabundo e beberrão. Esse monge se defendia dizendo que, se ele gostava tanto de mulher, era porque na outra vida ele tinha sido uma. Se nada fazia, era porque ele já tinha sido um peixe. E, se ele gostava de beber, era porque tinha sido uma abelha em encarnações passadas e gostava de se inebriar com o perfume das flores, com o doce do mel, com o fermentado das uvas.
Essa explanação sobre o tal monge fazia parte de um discurso sobre xamanismo e mudança de alma de um corpo a outro. Como todos sabem, o xamã é o feiticeiro, o pajé da tribo que entra em contato com o mundo dos mortos para trazer mensagens para o mundo dos vivos. É o porta-voz entre mundos diferentes.
Em uma palestra do antropólogo Viveiros de Castro, ano passado, na Universidade Estadual de Londrina, falou-se sobre mitos indígenas, xamanismo e da crença que os índios têm de que uma onça pode ser um companheiro da tribo ou ser ele próprio transformado em onça.
O problema, dizia Viveiros de Castro é "na hora em que a onça vai beber água", ou seja, o ponto de vista da onça. Ela pode simplesmente ver não outra onça, mas um apetitoso porquinho do lado dela, dando bobeira. Aí prevalece a lei do mais forte. Se o índio vencer a batalha, sua onça era uma crença verdadeira. Se a onça vencer a peleja, valeu a crença dela.
Fora a galhofa que salta desse tipo de história, o que está em jogo é um pensamento de mundo, ou mundos, cujos mitos não temos noção completa de seu significado. E só podemos agir por especulações. Em suma, quando uma coisa entra em contato com outra, o que é que resulta daí? Se algo passa a ser completamente outro, perde-se a idiossincrasia, a diferença. Por outro lado, se a mudança, a passagem, não se fizer completamente, como dizer que algo realmente mudou? Um desses casos é o contato de brancos ocidentais com culturas autóctones, invariavelmente impondo seu modo de vida consumista industrializado. O resultado desse contato, no entanto é - ou deveria ser - que uma cultura mais flexível se tornará não outra cultura, mas um híbrido entre uma e outra.
Pensar no que é o Brasil, por exemplo, onde a convivência de etnias diversas ocorre sem grandes traumas (se excetuarmos o que foi com os índios e os negros, por exemplo), ou na apropriação de elementos de outras culturas - como faz a capoeira regional ou a umbanda - então podemos dizer que nos interessa o contato com outros povos sem perder o que de mais "naturalmente" nosso existe, que é, justamente, o hibridismo, a miscigenação, enfim, o que não é nosso. O impuro tornado autêntico, próprio.
Mas, se algo se transforma em outro para tornar-se ele mesmo, então nada muda. Porque um e outro são o mesmo e a matéria não se perde, apenas se transforma, muda de direção, desloca-se de seu conceito original. Tudo se torna, por sua vez, híbrido. E a única pureza, paradoxalmente, é o hibridismo.
É exatamente isso o que a arte brasileira contemporânea reivindica. Melhor, é isso desde, pelo menos, o início do modernismo. Não uma arte "original", "autóctone", "primitiva", fechada dentro de seus códigos, indisposta ao diálogo, mas uma arte, justamente, em sintonia com temas e linguagens das mais diversas fontes. Conectada tanto com a arte realizada na Palestina quanto, por exemplo, nos Estados Unidos. Mais, que hoje consegue se viabilizar e se tornar visível graças à abertura e caminhos realizado por artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark, via Oswald de Andrade, que já dizia, começo do século passado, que "só interessa o que não é meu", como "lei do antropófago".
Aliás, como "lei antropofágica", tanto na linguagem como no tema de trabalhos de arte, seja na literatura, na plástica ou no cinema, podemos pensar nas montagens do cineasta russo Sergei Einsentein, onde duas seqüências de cenas resultavam em uma terceira que não era a soma das duas anteriores, mas um desfecho de uma narrativa, assim como é a poesia japonesa do hai-kai com seus três versos curtos, sintéticos e precisos, de alta voltagem poética. E também no livro "Meu tio o Iauaretê", de Guimarães Rosa, em que o personagem acaba se transformando em onça, atacando finalmente o interlocutor/leitor curioso por saber quem é aquele sujeito contando histórias ao pé da fogueira.
Como disse o Tempo ao príncipe Rama, no livro sagrado Hindu, Ramayana, "O caminho de Rama": "É tudo um, Rama, todo o tempo que já foi ou que será é um... o começo e o fim são difíceis de se ver e são um, Rama... - O Tempo sorriu. - E também minto muito, Rama... devo reconhecê-lo..."
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual, a venda na Livraria do CANAL.
O Abapuru, ou o que come gente, de 1928, de Tarsila do Amaral: obra chave do modernismo brasileiro.Belo texto para uma obra negociada em leilao e adquirida por um investidor extrangeiro.
Sim,incrivel que nenhum dos empresarios nacionais,ou
instituicoes governamentais,tenha sido assessorada para tal
importancia da obra em territorio nacional.
Como a maioria dos bens culturais,icones da nossa propria historia,que aos poucos passam a ser trofeis baratos adquiridos estupidamente de um povo sem memoria.
Acredito que seja interessante guardar qualquer imagem deste icone antropofagico,pois o original,
ninguem tem a menor certeza de poder ver em dias futuros.