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março 24, 2004

Síndrome primeiro mundista for export

RPS-07_sindrome_prim_p.jpg

"Caipira picando fumo" (1893), de Almeida Junior: arte brasileira para exportação.

Síndrome primeiro mundista for export

RUBENS PILEGGI SÁ

E o Oscar vai para...Cidade de Deus, disse o crítico de cinema, na televisão, ato falho, durante a entrega do prêmio de cinema mais festejado do mundo. Não foi. Não foi desta vez. Foi um recorde do cinema nacional em indicações, 4. Logo teremos umas 6 indicações e depois disso, aí sim, aí o Brazil zil zil, trará para o país uma tão cobiçada estatueta. Vai depender muito, é claro, dos acordos econômicos feito com o FMI, negociação sobre a ALCA, etc., mas isso é só uma questão de tempo. Enfim, depois do cinema novo que propunha a "estética da fome" enfim, surge algo tão forte e pungente quanto: "a cosmética da fome", segundo a visão de muitos críticos.

Não, não se trata de maquiar a pobreza, simplesmente, mas saber que há um jogo político que favorece sempre as mesmas empresas, os determinados roteiros, os atores globais de sempre. Obviamente, porque para chegar ao primeiro mundo é preciso ser como eles. E para ser como eles, precisamos aprender o jogo deles: ou seja, copiar seu padrão estético.

É incrível como no Brasil as coisas se desdobram sempre para "aparecer lá fora". O velho ditado "para inglês ver" é o nosso ponto comum cultural. Desde o carnaval, símbolo de nossa "pungência criativa", que se tornou, de fato, for export, até o cara que monta uma bandinha de rock no fundo do quintal de casa, todo mundo tem como mira a imagem que pretende vender para os gringos. Até o presidente da república não escapa à sina nacional de ter uma imagem a se apresentar ao exterior. E, sejamos sinceros, não lhe faltam esforços, nesse sentido.

E assim é em tudo, desde que o Brasil surgiu. Nossa preocupação sempre foi agradar a Corte. Sempre a de imitar seus costumes. Sempre a de importar tudo - desde alimentos até a paisagem - como se nossa cultura, híbrida, não tivesse que responder às nossas próprias indagações, mas na invenção do outro como um certo tipo de juiz, capaz de nos ceder a chave de entrada ao paraíso desenvolvido.

E a contrapartida disso também é um avesso da lógica - outra característica BEM brasileira. Que é a superioridade dos produtos, marcas e modelos importados sobre os produtos tupiniquins. Importado da Europa, ou, de preferência, dos EUA, porque do Paraguai a gente só tem interesse é nos eletroeletrônicos contrabandeados.

Tudo é tão bizarro e tão desvalorizado entre nós mesmos que quando alguém chama alguém de baiano, aqui no sul, isso significa palavrão. E dizer que alguém é índio, então. É pior do que chamar de preto. Índio, aos olhos de muito gente, é gente sem cultura. Ainda que muitos - a maioria - de nós tenhamos traços indígenas. Ainda que a maioria da população brasileira seja descendente de negros. Ainda que o Bahia e todo o nordeste e norte do país sejam a fonte mais criativa de nossa identidade nacional. Pior que isso, só quando alguém tenta dizer que não é ou não veio de tal lugar, por vergonha.

Na arte, então, nem se fala. Vivemos entre o ufanismo do "Brasil brasileiro" e o desmoronamento das salas de teatro e cinema transformadas em bingos e "assembléias de deus". Nossos ícones continuam sendo o "índio de tocheira", a mulata, o futebol, o samba e a beleza de nossas paisagens naturais. Mas tudo isso sempre sob um olhar que queremos condescendente, porque tentamos imaginar como seria a visão do outro sobre nós, para tentar nos adaptar.

E por aí desfilam na avenida da história desde o barroco nacional, passando por uma literatura como a de um José de Alencar, uma música como a de Carlos Gomes, uma pintura como a de Almeida Júnior, etc., sem que se volte uma vez somente para, justamente, à verdadeira raiz desse caldo híbrido e desconcertante que é a população nativa. Mesmo com toda essa neo valorização da cultura nacional, o olhar com que se enfoca nosso patrimônio é um olhar para "agradar o turista". Seja a descoberta de uma comunidade que preserva suas raízes, seja a descoberta de um livro que fala de uma comunidade injusta e injustiçada, vivendo sob ameaça do tráfico.

E Cidade de Deus é um desses exemplos. É verdade, pode trazer dinheiro, troféu, status. Mas, mais verdade ainda, sem distribuição de bens para a coletividade. Ou melhor, somente oferecendo um acesso passivo da comunidade sobre suas próprias questões, como se tudo continuasse a depender de alguém que pudesse resolver as questões por eles. Antes ainda valia o ditado "não dar o peixe, mas ensinar a pescá-lo", agora, só é mostrado a foto do peixe...e olhe lá!

Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual. (O livro está a venda na Livraria do CANAL )

Posted by Rubens Pileggi Sá at 8:02 AM | Comentários(3)
Comments

critica da critica
caro rubens, essa materia me parece bem mais interessante e útil que a ultima que li sua("carta não sei das quantas para não lembro quem" - inclusive manifestei-me a respeito)."sindrome primeiro.....export" demonstra uma reflexão produtiva e provocativa(só faltou ir um pouquinho mais a fundo na origem dessa preocupação constante do brasileirio de agradar o olhar estrangeiro. pq é a partir da raiz do problema que realmente se reflete uma questão tão vergonhosa nossa(lembra do ditadinho"cortar o mal pela raiz"), apontando assim novas possibilidades.abraço

Posted by: marcos at junho 10, 2004 4:45 PM


O OLHAR QUE EDIFICA É O MESMO QUE IMOLA!

Postado originalmente no Blog do Canal

Posted by: FLAVIO LOPES at julho 23, 2004 4:11 PM

"Não sei muito acerca de deuses, mas creio que o rio
É um poderoso deus castanho ; taciturno, indômito e intratável,
Paciente até certo ponto, a princípio reconhecido como fronteira,
Útil, inconfidente, como um caixeiro viajante.
Depois, apenas um problema que ao construtor de pontes desafia."
T.S. Eliot

Não basta os limites de uma cidade, de uma região, de um território, de uma língua: todos os limites são virtuais e imprestáveis: criar pontes (que também são mprestáveis) entre os limites: sair dos limites: passear no vazio, no ilimitado, no além do programa.

Não basta Madeira, Nilo, Ganges, Tietê, Mississipi, São Francisco, Sena,Tâmisa, Amazonas, Indo: não basta florestas, desertos, oceanos, continentes, ilhas, corpo, voz, desejo ou sonho: limites a serem contagiados pelo construtor de pontes: tanto faz quanto tanto foz.

Não basta os regionalismos nem os cosmopolitismos das moneras: não basta:precisamos de pontes e, de repente, o gozo em saltar as pontes: e no fluxomortal, mergulhar, gozando todos os sonos.

Não basta o Boto, a Bôta, a Cobra Grande, o Boi: olhar do colonizador, olhar gordo de ocidentalidades turistas. Não basta Macunaíma ou Miramar: poucacanibalidade, muita imitação e respeito.

Não basta riobaldos e sinhás vitórias: não basta a Grande Arte:não basta esta gosma de classe média pregada em edifícios de papel: não basta. Não basta essa Identidade Nacional: não basta nem a identidade nem o nacional:muito menos o internacional.

Não basta o sentido nem a razão. Não basta a forma nem o formato. Não basta a aspereza nem o tédio. Não basta o linear nem o mistério. Não basta o policial nem o cômico. Não basta nem a alminha nem o carma. Não basta o horóscopo nem o nome. Não basta a data nem a hora. Não basta o peso nem o pesado. Não basta essa palavra colada às coisas como se fosse uma barata morta ou restos de carne sobre a cama.

Não basta Gramáticas, Ortografias nem Dicionários. Não basta a Bíblia, o Corão nem o Manual dos Escoteiros. Não basta nem Kama Sutra nem Código Civil. Não basta nem erudição nem Jeca Tatu.

Não basta essa fé provinciana nem esse lirismo água com açúcar. Não basta a nova nem a velha Bossa. Não basta o samba nem o carnaval. Não basta o negro nem o índio. Não basta o branco nem o amarelo.

Não basta Europa ou África. Não basta nem Ásia nem azia, América ou Oceania.Não basta gêneros: nada basta esse bastar. Não basta o grito nem o sussurro.Não basta. É sempre muito pouco. É sempre sempre igual. Não basta.

Não basta nem a bundinha, nem a garrafinha, nem o uisquinho, nem a prainha, nem as avenidinhas, nem Ariano, nem os Campos, nem francês nem inglês, nem todas essas igrejas mortas, nem todo esse lerolero global, nem milongas nem toadas. Não basta.

Não basta essa falta de fome. Não basta a história, a memória, a escória.Não basta a Geografia, a Antropologia, a inútil Sociologia. Não basta esse falso erotismo: esse falo flácido sem flanar: é preciso a obscenidade radical: não basta a devoração canibal: é preciso ser libertino: não basta devorar: é preciso desmembrar o mundo: torná-lo vazio: sem sentido: e remontá-lo no meio da praça: não basta tê-lo devorado até a saciedade: é preciso maculá-lo: remontá-lo com outro sentido e sentido algum: é preciso libertar a palavra, o som, a imagem, o corpo, e o não de todo esse peso, de todas essas idéias, de toda asperidade, de toda autoridade: tudo preso a tudo por nada, sem pontes, sem o deslimite do depois das pontes e do vôo sobre as pontes: tanto faz quanto tanto foz.

Não basta nenhuma crença: não bastam Deuses, Demônios, Pátrias, coronéis, generais e lobisomens: não basta nem miséria nem riqueza: só a obsessão cria as pontes e somente a libertinagem do libertino cria a liberdade radical, aquela que pode nos fazer saltar pontes sem precisar a travessia, para nada, por gozo.

Basta de descritivismo, de predomínio do objeto. Basta dessa arte sem imaginação, sem sonho, sem invisibilidade, cheia de realidades tolamente visíveis, pré-visíveis tramas televisivas.

Basta desse falso diálogo de jornal invadindo a palavra. Basta de arte-mercadoria: a arte não vale nada: não é valor/trabalho: o artista não é trabalhador: arte não é ofício: arte é orifício.

Basta desse respeito à linguagem: é preciso implodi-la para insignificar: precisa ser tocada, maculada, desmembrada para enlouquecer e deixar fluir e fluir-se.

Basta de caminhar dentro do estúpido senso comum das mídias, dessa crítica amigável, dessa bajulação mútua, dessa análise historicista: mero acalanto de boiadas.

Chega de Primeiro, Segundo e Terceiro mundo: a arte é o gozo que dissolve o concreto do mundo: tanto faz quanto tanto foz. E chega de bastar: é preciso reaprender a gozar.

Somos criadores: pairamos sempre sobre as águas, mordendo os dedos dos pés, criando o círculo de fogo sobre o nada: precisamos somente dizer o faça-se:essa palavra vinda do mais íntimo das entranhas:
tanto faz quanto tanto foz:cadê a tua voz?"

MANIFESTO MADEIRISTA
31/12/98

Postado originalmente no Blog do Canal

Posted by: joeser alvarez at julho 23, 2004 4:12 PM
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