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março 9, 2004
A paisagem descrita pelo escriba
Jackson Pollock: Trilhas Onduladas, de 1947: uma imagem que, não querendo representar nada, pode ser a representação de tudo.
A paisagem descrita pelo escriba
RUBENS PILEGGI SÁ
Viajar é descortinar paisagens que ficarão presas na memória. A história tece sua lógica às avessas. O dia está claro. A temperatura agradável. E essa viagem tem ao menos a vantagem de despertar o vento. Vamos em frente!
Tanta gente indo para o mesmo lugar e ninguém sabendo onde está indo, mesmo se indo, no caso, possa ser voltar. A paisagem existe de dentro para fora e de fora para dentro dos olhos que essa terra há de olhar. Visto isso, então é só colocar o olho para fora, além de janela, para reparar: monocultura de palavras ricas. Latifúndio de saberes extensos. E nessa trajetória, paisagem que já se decora, cada passageiro constrói a sua própria leitura desse livro aberto da história: Fulano quer invadir páginas. Sicrano observa se muito calor resseca a seiva das letras. Beltrano acha tudo muito bonito, mas não tem opinião formada ainda para discorrer sobre o texto. Delano cumpre seu papel: sabe usar a crítica como instrumento de trabalho. Seu sonho é casar com a filha de algum fazendeiro rico da região. Talvez com os estudos...
Um caminhão lotado de metáforas para exportação deixa alguma propriedade rural para abastecer o navio, em um porto longínquo, onde, certamente, do outro lado do oceano, saberão editar melhor que nós - pobres consumidores de leitura - os frutos dessa terra. No final dessa espiral produtiva, teremos idéias prontas, embaladas para consumo nas prateleiras dos supermercados e mercearias do país.
Tudo é tão grande, mas se torna tão pequeno e passageiro à medida que a viagem continua por esses caminhos. Deixando para trás apenas a visão de montanhas que se perdem no meio da paisagem. Elas, que pareciam tão centradas em sua própria imagem.
Não há viva alma à esquerda ou à direita do caminho. Só algumas máquinas provando que a Natureza transformou-se em Cultura. Toda a extensão de terra está esquadrinhada por lotes, como se fossem quadros de uma exposição sobre a página generosa de chão vermelho. Pinturas que mostram o mesmo padrão abstrato e monocromático de ocupação de espaços, por onde quer que passem os olhos.
Um trabalho abstrato não inclui pássaros, árvores nativas, rios de água limpa, casas com crianças, nada, mas nada mesmo além da livre expressão da vontade humana de realizar OBRAS.
Mas, também, seu contrário (o que não deixa de ser a mesma coisa). Ou melhor, em um texto ou imagem que, aparentemente nada quer dizer - a não ser mostrar-se enquanto escrita, marca, sinal, testemunho de uma época - tudo pode ser mostrado ao mesmo tempo. Como em uma pintura abstrata que, ao negar a representação, de repente começa a revelar, aqui e ali, uma casa, uma árvore, um rio, uma paisagem, etc.
Veja, por exemplo, uma parede descascada, ou uma mancha de bolor, ou uma imagem microscópica. De repente as imagens começam a aparecer. Quem as desenhou senão seus olhos? É essa a experiência da paisagem que ora se descortina. O que parecia tão longe e distante, se aproxima do ponto de chegada. É possível vislumbrar o fim desse caminho.
Um escriba viajante, que veio tentando capturar o instante na ponta de sua caneta vai colocando ponto final em suas observações, contando com a possibilidade de mostrar uma paisagem onde cada um vê aquilo que quer. No final das contas, cada qual com sua leitura diante de um mesmo cenário visto, lido.
Rubens Pileggi Sá é artista, escreve na Folha de Londrina e publicou o livro Alfabeto Visual.