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janeiro 29, 2004
Paisagem de paisagem
Turistas aproveitam o passeio de barco pelo litoral paranaense para ler: cultura e "paisagem natural" como parte da mesma viagem.
Paisagem de paisagem
Rubens Pileggi Sá
Você que está agora no litoral, lendo sua Folha, curtindo um sol, uma praia, viajando. Você que já tirou suas férias, ou ainda vai tirar, ou pensa em passar uns dias na praia, no campo, ou em outra cidade. Você que, em sua cidade, resolveu conhecer a redondeza, talvez, até, arriscar conhecer seu vizinho. Você que aproveita esses dias para viajar em uma leitura, ler um livro. E até - por que, não? - resolve empreender uma viagem até mais ousada: conhecer-se.
Viajar é o nome desse período quando as escolas entram em férias, começo de ano, calor, todo mundo querendo sair da batida que o cotidiano impõe e vai continuar impondo o resto do ano. A viagem é sempre uma aventura, por mais que já saibamos de antemão até quem vamos encontrar no meio do caminho. Sempre deixamos algo pra trás. Sempre levamos algo conosco. Sempre deixamos e levamos algo de onde quer que seja. Nem que seja uma lembrança, a mais doce e leve das matérias.
Mesmo o menos sensível dos mortais há de ter impresso na retina a lembrança de um pôr-do-sol, ou algo assim como a inesperada presença de uma estrela cadente, um pássaro pousado sobre um galho de árvore surpreendido por um olhar curioso, uma flor desabrochando, ou qualquer visão, cuja sensação comumente pode ser chamada de Bela.
Mesmo a pessoa mais alucinada do mundo deve ter sido arrebatada por alguma imagem que, de tão grandiosa, frágil e passageira, tenha lhe roubado ao menos um minuto de sua atenção. Contemplar não é só ficar estático diante de uma cena e por ela ser absorvido. É também viver essa contemplação como algo que pode ser chamado de Absoluto. Fazer parte do uno.
O olhar é tanto construtor de paisagens, imagens, cenas, quanto elas são construtoras do olhar. Um morador da cidade não consegue ver, no meio da floresta o que um nativo pode ver. E também o contrário. Mas, por incrível que pareça, muitas vezes são as pessoas "de fora" que conseguem ver certos detalhes que as pessoas que moram no lugar não conseguem ver. Admirar uma paisagem, ter gosto por banho na praia, ver estrelas, por exemplo. Será que é por isso que nos preocupamos tanto com o olhar dos outros sobre nossa maneira de olhar as coisas do mundo? Porque muitas vezes não valorizamos o que possuímos, queremos o que não temos e o outro (o estrangeiro) nos leva justamente o que era nosso e não dávamos importância até então. Se, como disse Walter Benjamin, "perder-se exige todo um aprendizado", conhecer-se talvez seja uma das artes mais sofisticadas, pois exige a decifração de códigos cujo acesso depende não só do meio físico, geográfico, como da paisagem humana e suas implicações com o meio onde estamos e habitamos.
E é sobre as paisagens que construímos nossos mapas de afeto. Pois a chamada "paisagem natural" também é uma paisagem construída pelo olhar do homem. Todos nós temos florestas e praias habitadas e virgens dentro de nós. Cada olhar nosso sobre qualquer coisa desse Universo já é um dado anteriormente criado pela cultura na qual estamos inseridos e que só a consciência é capaz de modificar o entendimento sobre o que parece ser o mesmo para todos. Tubarões são tão perigosos e metem tanto medo, até aprendermos que a maioria deles não ataca os homens. E quando o fazem, normalmente é porque seu meio está ameaçado por desequilíbrio ecológico.
Assim, tanto quanto sair de viagem para contemplar uma "paisagem natural", contemplar a paisagem cultural e humana, faz parte da viagem. Conhecer a cultura local - o fandango do litoral paranaense, por exemplo -, a história da formação dos lugares, os "causos" e histórias que cada um tem para contar é aproveitar o que a vida tem de melhor para oferecer. É saber-se o tempo todo estrangeiro e nativo, indistintamente. Turista e habitante desse lugar onde tudo passa pela admiração de algo que tem a VER com poesia e arte. Com a filosofia e com a ciência de um mundo onde todas as partes são inseparáveis umas das outras. Sem ter que precisar pensar em nada disso!
Escrito em 14 de janeiro de 2004.
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