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janeiro 29, 2004
A imagem do desejo sobreposta à paisagem nomeada
Do livro Viva Vaia, de Augusto de Campos, o poema visual Intradução
A imagem do desejo sobreposta à paisagem nomeada
Rubens Pileggi Sá
Se uma imagem pode ser definida por aquilo que vemos, então uma paisagem deveria ser, ou melhor, ter o ajuste perfeito adaptado aos nossos olhos, sendo projetada diretamente na caverna escura de alguma parte do nosso cérebro, como se fosse uma sessão de cinema.
Se assim fosse, simplesmente, não existiria o pensamento ou as idéias, pois o mundo todo já estava milimetricamente construÃdo para absorver o já existente como se fosse uma verdade absoluta e coletiva, não dependendo da cultura, do meio, da lÃngua, do nome que se dá a cada uma das coisas e, principalmente, da nossa visão sobre o mundo e as coisas.
A caverna escura de que nos fala Platão, onde as pessoas que viviam lá viam apenas sombras e não acreditavam no que lhes diziam sobre como era o lado de fora, possui uma força metafórica e simbólica inegável, mas, por outro lado, traz a idéia de alguém "iluminado" diante de seres da "escuridão" que não podem ver, se recusam a acreditar na verdade e necessitam de alguém que lhes indique o caminho para um lugar ideal. E esse filme a gente já conhece seu final.
É preciso aprender a desconfiar, também. Porque, para Platão, o mundo acaba se tornando algo com valores definidos demais para que possamos duvidar sobre aquilo que alguém diz que é bom, belo e justo. E se isso seria realmente o critério para enxergar as coisas tais como as queremos enxergar. Ou seja, as coisas são o que elas são somadas à visão que cada um tem delas. Dessa forma, uma mesma coisa pode ser diferente para pessoas diferentes e a própria visão que se tem delas pode ser completamente diferente de um para outro. O azul que você está vendo não é o mesmo azul que outra pessoa pode estar vendo também. Não, o azul não é verde, não se trata disso. Mas a qualidade do azul e sua dimensão subjetiva podem trazer para mim uma imagem capaz de fazer questionar mesmo o que é e o que pode ser definido como cor.
Quer dizer, uma pessoa de espÃrito obtuso poderia se contentar com um determinado sistema de valores onde tudo jÃtivesse pronto para uso (talvez por comodismo mental, talvez para manter-se no poder) e não se discutisse mais o assunto, mas, para um artista não basta pensar que se pode chamar uma banana por um outro nome, mas saber que é possÃvel invocar o que seja uma banana e, na sua frente ao invés de uma banana aparecer outra coisa, mesmo que seja uma banana.
John Cage, em "De segunda a um ano", traduzido no Brasil por Augusto de Campos, diz, em um dos trechos do livro, mais ou menos o seguinte: "quando uma pessoa conhece o Zen, uma montanha é apenas uma montanha. Quando essa pessoa passa a praticar o Zen, a montanha deixa de ser uma montanha. Mas quando essa mesma pessoa, finalmente vive o Zen, a montanha volta a ser uma montanha, novamente". E Gilberto Gil: "quando o poeta diz lata, pode estar querendo dizer o indisÃvel". E Arnaldo Antunes: "o nome das coisas não são as coisas". E assim são as coisas dadas a ver. Nunca algo é somente algo, mas sempre é atravessado por um filtro sobre aquilo que o eu pode ver, como nos ensina a fenomenologia.
Retomando a idéia da imagem projetada na parede do cérebro, podemos dizer que ela passa por uma espécie de tubo de projeção, que são nossos pensamentos, de onde tiramos nossas idéias e assim, temos a possibilidade de criar. Mas essa imagem que pode ser nomeada - uma casa adiante, alguns pássaros, um rio e, na outra margem, um recorte de mata - é apenas um senso comum. Há outras e outras o tempo sobrepondo-se a essa e que, pela sua fugacidade, está sempre se movendo contra tudo que parece absolutamente certo. E outra. E mais outra. Ad infinitum.
Mas não só, ela pode estar se perdendo dessa imagem dada e nomeada. E aqui entra em cena a arte diante da filosofia. Ou, se alguém desejar ir mais longe nas definições, um niilismo ativo e negativo. E a imagem - uma paisagem qualquer à nossa frente - se dissolvesse, como se faltasse lugar para contê-la. E aquilo que se perdeu fosse a única presença realmente existente diante de um olhar que a tudo alcança, mas que se deixa fixar somente por aquilo que a mente guarda: uma memória que escorre. Uma paisagem que muda de nome ao ser sobreposta pelo mapa de afetos, sempre tão entregue ao desejo. Um desejo de se tornar imagem também.
Escrito em 21 de janeiro de 2004.
rubenssa@onda.com.br