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novembro 19, 2003
O corpo e além
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O corpo e além
RUBENS PILEGGI SÁ
A questão do corpo é a própria questão do tempo. E o que é o tempo nesses termos em que estamos querendo nos distinguir, ou seja, perpassado pelo que se convencionou chamar-se arte? Já que passado, futuro e presente se superpõem em camadas indistintas. Sim, ainda que por representação. Foi essa a grande questão do cubismo: trazer à frente todas as faces do objeto representado. Como já se falava na física: simultaneidades.
O tempo como a quarta dimensão do espaço: a-cronos. Que é também música sem ritmo, melodia ou harmonia. Arte sem arte.
Desde que Nietszche propôs a morte de Deus – quando seu “Zaratrusta” chega a feira, depois de anos meditando e compreende que os homens de sua época O mataram – nada mais parece deixar de sucumbir à tentação de Tanathos.
Depois da morte do Pai, o sexo com a mãe (Freud: conceito edipiano), depois de Dada. Da morte da arte, da morte da história, o que mais falta matar? Somente com o suicídio ainda nos é permitido sonhar: “/// primeiro assassine a IDÉIA – exploda o monumento dentro de nós - & então, talvez... o equilíbrio do poder se inverterá. Quando o último tira em nosso cérebro for assassinado pelo último desejo não satisfeito – talvez até mesmo a paisagem ao nosso redor comece a mudar... /// ” (Hakim Bey – CAOS – terrorismo poético e outros crimes exemplares).
“O corpo é obsoleto” – diz Sterlac, um artista australiano que se utiliza instrumentos médicos, próteses, robótica, sistemas de realidade virtuais e internet para explorar interfaces íntimas e involuntárias com o corpo. Tendo feito mais de 25 suspensões com ganchos presos ao corpo, colocado um terceiro braço ao corpo, filmado o interior do seu corpo, inventado uma orelha adicional para ouvir RealAudio, etc. sua visão parece-nos ser a de que, no momento em que a ciência pode manipular realidades como mutações genéticas, clones, alterar cores, formas e texturas da pele, ou fazer nascer uma orelha humana nas costas de um rato, por exemplo, o corpo passa a ser mera massa inerte, carcaça a ser carregada por um dispositivo qualquer, artificial ou não.
C-O-R-P-O cor. O corpo ainda não existe, ainda não nasceu. Sua dimensão está além das possibilidades de sua manipulação. Diante da contemplação de um corpo qualquer: um cara musculoso, uma gostosona qualquer. Diante do uso do corpo por um bailarino, um ator, um esportista, por exemplo, tudo o que podemos reter é a contemplação, algo que nos foge, algo passageiro que escorre, líquido.
Desse modo, o corpo é, ele também, parte de um grande fluxo, mutável, mutante. Ele é seu próprio discurso. Seu lugar é reinventado, ressignificado a cada vez: seja em uma pintura do século XVII, em que o artista representa um grupo de médicos dissecando um cadáver (Rembrandt: Lição de Anatomia); seja quando o corpo representado é a própria tela pintada (modernismo); seja quando o artista torna-se a própria arte (além-Pollock); seja quando o corpo só tem existência na medida em que a relação com o objeto da arte seja participativa (Oiticica: Parangolé); seja quando ele se torna um conceito (arte como idéia de arte); uma ausência que o torna ainda mais presente; ou seja quando ele se perde de si e se torna parte do cotidiano, do próprio corpo coletivo, agora tomado como corpo a ser desenvolvido, a se fortalecer em outras instâncias que podem se chamar arte, ativismo, ou aquilo que está diante do seu nariz é você quem inventa o que é. Desde que a idéia de um ego seja substituída por um after-ego. Ou por um crime poético que lhe valha o nome.
Rubens Pileggi Sá é artista plástico e lançou em 2003 o livro Alfabeto Visual com os textos da coluna de mesmo nome, publicada semanalmente na Folha de Londrina.