|
outubro 9, 2003
Um breve toque sobre o corpo (na arte) I
Primeira Aquarela Abstrata (1910). De Vassili Kandinsky: o corpo da arte sofre transformações no tempo e no espaço.
Um breve toque sobre o corpo (na arte) I
RUBENS PILEGGI SÁ
Alguém disse certa vez sobre o corpo que ele é tudo à sua volta, mais sua ausência. Que o corpo é definido pelo que está dentro e o que está fora dele. Ou seja, ao invés de conceituar o objeto, a matéria, o corpo pode ser pensado, também, sobre aquilo que ele não é.
O dicionário Aurélio, por exemplo, dá trinta e quatro definições sobre tal palavra. Entre elas: o corpo de um edifício, de um pássaro, de uma pessoa, de um instrumento, de uma lei. Ou a palavra corpo em sentido metafórico, usada em várias áreas do conhecimento, seja na religião, na biologia, na estética, na matemática, etc. criando um vasto corpo de definições para a palavra ... corpo.
Para o escritor, o livro. Para o poeta, a palavra. Para o leitor, a matéria escrita na página. Para o advogado, as leis. Para o médico, o objeto. Para o psicólogo, o local de expressão da subjetividade. Para o artista, a matéria mesmo, o local onde sua criação pode ser expressa. Dentre elas, seu próprio corpo.
Um breve passeio pela história da arte e podemos ter uma idéia como essa noção vem se transformando com o passar do tempo. Foi na Renascença que a matemática, através da perspectiva, transforma a pintura, cada vez mais, em uma representação calculada da realidade. Se os desenhos até o fim da idade média parecem toscos, o Renascimento vai lhes dar a proporção calculada de uma cabeça, de uma profundidade de campo, de relações entre partes distintas dentro de uma composição. Isso chega a um nível de virtuosismo que acaba esgotando a exploração da representação fidedigna da realidade. A arte precisa inventar o que dizer. Até mesmo porque, a partir do século 19, a fotografia coloca em cheque a busca dos pintores pela perfeição.
O que vinha sendo esboçado desde pelo menos Rembrandt e - principalmente depois, inaugurando o Romantismo - Delacroix, por exemplo (que deixa a marca do pincel na superfície da tela, como forma de mostrar seu gesto, sua atitude perante sua época), ganha corpo com os impressionistas, que agora se interessam pela realidade enquanto fenômeno luminoso, enquanto homens de seu tempo e não mais como seus antecessores, fechados dentro dos ateliês, pintando cenas históricas. Aqui, segundo vários autores, é inaugurada a Arte Moderna, onde o artista se volta para o conteúdo mesmo daquilo que é sua matéria, sua especificidade, ou seja, a relação entre as cores, harmonia, composição, etc. É então que surge um artista como Cézanne (1839-1906), que faz questão de delinear as figuras do quadro com tinta preta, que está interessado na relação entre as formas, os planos e os volumes. O quadro deixa de ser algo para representar o mundo, ele passa a ser parte do mundo. O corpo, agora, na arte, passa a ser a própria arte.
A época era propícia às transformações. O pintor holandês Vincent van Gogh, nascido em 1853, inauguraria, com suas pinceladas vigorosas e extremamente pessoais, a possibilidade de se passar emoções através da arte, coisa que parecia relegada a um segundo plano. O corpo ganha sentimentos.
Desde então, as possibilidades de viver esse corpo não se comportam mais dentro de si. Ele não precisa representar mais nada. Ele é. O pintor russo Vassili Kandinsky (1866-1944) começa a pintar quadros que são puras formas. É a arte abstrata. Outro russo, o pintor Kasimir Malevich, pinta, por volta do mesmo período, uma tela branca sobre fundo branco, fazendo desaparecer a expressão, voltando a um grau zero de toda a experiência: fosse artística, fosse vivencial. Matisse se liga nas cores e formas decorativas. Picasso e Braque inventam o cubismo. Colam notícias de jornais, coisas sobre a superfície da tela. Kurt Schwitters cria sua obra, denominada de Mertz, juntando toda a sorte de materiais no espaço de sua residência. Mondrian simplifica tudo, apenas com as cores primárias e linhas ortogonais. Na escultura, cuja "revolução" vinha, pelo menos desde Rodin - que deixava a impressão de seus dedos aparecerem em seus modelos de bronze - apareceram nomes como Brancusi, que fez do pedestal também escultura, embaralhando a idéia do que seria o espaço destinado para a arte do espaço destinado à vida. O corpo da arte, agora, passava a ser um espaço de experimentação e de idéias. O artista (ou anti-artista) francês Marcel Duchamp compreende esse contexto, deslocando a idéia que se tinha até então da arte para os objetos comuns do cotidiano, como um banquinho e uma roda de bicicletas, ou um urinol, por exemplo, chamando-os de ready-mades. A partir deste tipo de experiência, já não era mais preciso da intervenção direta do artista no corpo da obra, mas em seu significado.