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setembro 29, 2003
O texto como ação e a ação como texto II
"São Mateus", de Caravaggio. Pintado por volta de 1598, foi rejeitado pela igreja e posteriormente destruído durante a II Guerra: representa um anjo descendo dos céus e ensinando o Santo a escrever.
O texto como ação e a ação como texto II
RUBENS PILEGGI SÁ
Lançar mão de uma imagem perpassada por cenas de memória que vão se desfiando no tempo, se fiando no espaço. Assuntos de uma escrita inscrita à sangue, no coração da palavra pulsante. Nas fibras de uma idéia em movimento.
Tomar como caminho a direção de uma película como o filme "O Livro de Cabeceira", de Peter Grenaway, em que as peles humanas são tatuadas por um alfabeto de redenção, vingança, morte e poesia.
Ou na letra L bordada nos intestinos do escritor Yukio Mishima com a espada do samurai, em uma cerimônia de defesa da honra - o Sepuku - dentro do quartel general do exército japonês, invadido por ele e seus seguidores fanáticos que queriam o retorno à tradição.
Occan é o primeiro monstro intersemiótico da literatura (Leminski - O Catatau). À medida que as palavras se aproximam ou se afastam dele, no texto, vão perdendo a lógica. Devoradas por esse "ser" enigmático, o texto salta de um lado para outro dentro de sua estrutura interna de romance: um vírus de linguagem.
O texto como ação. A ação como texto.
Ritmo, cadência, intervalos de tempos contínuos, o uso de silêncio e ruídos, etc. transformando a palavra não só em veículo de informação, em meio de comunicação, mas em música, em dança, em artes gráficas, visuais: ver/ler, mover-se.
O VerbiVocoVisual aprendido e apreendido desde os concretos. E suas implicações no uso das fontes, das cores das letras, da tipologia, o grafismo alterado, re-significado. A palavra, a letra, o signo dançando no espaço: poemóbiles, poemobjetos. Poesia sem palavras. Imagens que falam por si.
Tudo isso se (de)compondo a partir de onde? De quando? De quem? ... uma linguagem atravessando categorias é sempre e só (e tanto) mais uma marca, um sinal de vida que pulsa, pisca e passa, como quem atravessa o semáforo. Ou é banhado - madrugada adentro - pela luz vermelha de um carro de polícia, cruzando a avenida no sinal fechado.
Mas o fato é que "isto não é um cachimbo" (lembrando Magritte através de Foucault), em que o desenho de um cachimbo desdiz o texto que nega a representação, ao mesmo tempo em que acusa a presença da imagem. Isso é o que é: "as palavras e as coisas" em constante deslizar, chocar, entrecruzar. E o único consolo de apreensão do "agora", "já passou" (Arnaldo Antunes).
O caligrama, o ideograma, os hieróglifos, as incisões, as inscrições, os jogos entre palavras, imagens e ações onde eu "só vendo a vista" (Marcos Chaves) "frases feitas" (Edson Barrus): VI-VER-DE-AR-TE. O grafismo, os fonemas, os palíndromos, as aliterações, os anagramas: IRACEMA/AMERICA. O grafite nas cidades, as marcas movediças das sombras nas paredes: um mapa/alfabeto de sons, cheiros, texturas, sabores e sensações de se ler/ver com os sentidos da percepção tocados pela alma. O contrário de anestesia.
Palavras em vermelho, como o sangue usado nas paredes das cavernas pré-históricas: animais que eram capturados não só em sua forma aparente, mas em seu ânima. Uma imagem/escritura = gesto/vestígio, apontada para a teoria dos signos que se fazem informação, mensagem, comunicação. E, também, poética de encontros e passagens para dimensões que só ao espírito é permitido habitar.
rubenssa@onda.com.br