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setembro 9, 2003
Um dia azul embriagado de blues
Monocromo azul (I.K.B.), 1960. Pintura sobre tela de Yves Klein. Imersão na cor como proposta de imersão nos sentidos da percepção.
Um dia azul embriagado de blues
RUBENS PILEGGI SÁ
Para não fazer sentido eu convoco os amigos para um trago no bar, onde conversas consistentes possam vir à tona, sem ficar preocupado com nenhum tipo de lei.
Além de apreciar um bom bate-papo, me invade a sensação de buscar palavras e imagens exatas que dêem conta dos sentimentos mais sublimes – quem sabe (por que não?) infames – e mais singelos que se possa trocar com quem está a fim de se entender: talvez falar sobre os bêbados da vila, e pronto. Já é um motivo, um tema para se fazer blues. Um início de conversa para estreitar a camaradagem. Aceita um copo?
Que a bebedeira nos salve da mesmice das idéias prontas para uso. Das frases feitas cuspidas das bocas de quem não tem o que dizer. Do lugar-comum dos discursos furados feitos para convencer a massa. Que a gente saiba usar tudo isso com graça!
Falemos então da embriaguez. Que o torpor vindo da luz do céu – nesses dias limpos que o inverno traz – venha encher nossas almas. Que nos toque a embriaguez que só um cara disposto a se martirizar mergulhado em um tonel do mais puro destilado poderia nos oferecer. E, no que lhe sobrasse de sobriedade, falasse: a revolução está no alambique!
Vivemos um momento propício a mudanças de paradigmas: éticos, estéticos, comportamentais. Ao mesmo tempo, há um cinismo às avessas em curso, em que a blaque, o xiste, as aliterações mais canhestras fazem-se passar por atitudes de extrema consciência (a cada gole de bebida, a língua se solta cada vez mais) só para tudo parecer extremamente sóbrio. Molhar a palavra, aqui, não quer dizer ter controle, ou controles, mas irradiar-se além delas.
Escrever bem é como/ver. E as palavras estão aí, prontas para uso, dispostas a ceder ao nexo de tudo o que gira ao redor para ser captado pelas percepções. Fazer qualquer julgamento nesse momento seria perder a chance de levantar o braço para pedir que lhe encham o copo, mais uma vez. (“É sempre bom lembrar, um copo vazio está cheio de ar”) .
O blues é triste como são tristes os dias azuis de inverno. Palavras de ordem trafegam entre o dogma e o determinismo, mas todo bêbado convicto deveria ser tratado como uma espécie de santo. Com o dinheiro da sociedade. É na convicção desse bêbado que não desiste enquanto a última gota ainda não tenha sido absorvida que está a nossa redenção. Desse gesto em diante nasce a mais suprema subversão de todas: a perda dos sentidos ordinários de controle e domínio sobre a matéria. E tudo começa a fluir. Que leis que nada. Sejamos a própria lei. Que arte o quê? Estamos imersos nela como a própria bebida que ora nos faz celebrar a vida, ainda que o efeito da aguardente mais barata, ou do uísque mais caro, uma hora passe e a realidade venha nos trazer a notícia de que ela foi-se embora, o gato morreu, cortaram a luz, mais um idiota suicidou-se, o dinheiro para a bebida acabou e nesse boteco da vil/d/a não se possa pendurar a conta. Mas o blues já existe nesse dia triste de inverno, em que o céu embriaga a alma de luz. A mim e aos amigos, um brinde.
Rubens Pileggi Sá é artista plástico e está lançando o livro com os textos da coluna Alfabeto Visual.