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outubro 7, 2021
Thiago Martins de Melo: Ouroboros sucuri por Gunnar B. Kvaran
Thiago Martins de Melo: Ouroboros sucuri
GUNNAR B. KVARAN
Tenho tido o prazer de acompanhar o extraordinário desenvolvimento e as realizações de Thiago Martins de Melo já há mais de uma década. Pude testemunhar como ele conseguiu alcançar habilidades notáveis como pintor. Ele dominou as diversas técnicas da pintura figurativa, criou novos tipos de estruturas narrativas, que se articulam na tela em macro e micro-histórias, tempos e lugares divergentes, e uma mistura de ficção e realidade. Seus trabalhos demonstram a riqueza de seu conhecimento e de sua cultura – intelectual, espiritual e intuitiva – e seus próprios desenvolvimento e crescimento individuais.
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No início, as pinturas de Martins de Melo se relacionavam com sua experiência pessoal e familiar, com seu entorno mais próximo. Posteriormente, ele expandiu sua visão para incluir a complexidade da sociedade brasileira, chegando a inseri-la, junto com a sua iconografia, num contexto global. As pinturas abarcam ao mesmo tempo o mundo e a vida íntima do artista. São sempre concebidas e construídas em camadas de símbolos e figuras que lhe permitem incluir elementos heteróclitos da realidade e além. A vida concreta, histórica e social, está sempre presente, mas há também uma dimensão espiritual e religiosa, onde atuam energias e forças que não pertencem ao nosso mundo terreno. Há também a política, uma forma de resistência que revela os mecanismos internos da injustiça e da discriminação social. Martins de Melo se preocupa com seus compatriotas, em especial com os marginalizados da sociedade brasileira. No entanto, orientado pela noção de “sincretismo”, ele consegue estender seu discurso a uma cena mais universal, onde os signos, os símbolos e os diferentes elementos cosmológicos assumem um sentido mais aberto, de amplo campo semântico, que se ancora em diversas realidades de diferentes épocas da humanidade.
Em seu ambicioso projeto como artista e contador de histórias, Martins de Melo ampliou e reinventou a noção de pintura ao transformar suas cenas pictóricas em animações e objetos escultóricos, ou experiências teatrais. Em suas obras, muitas narrativas acontecem simultaneamente, envolvendo acontecimentos e pessoas reais, bem como forças espirituais, mas sempre com um profundo senso estético e uma preocupação com a coerência e a clareza. Suas imagens fortes e poderosas são apropriadas, criadas e, então, postas em diálogo na tela. Na maioria das vezes surgem de sua imaginação, inspiradas pelo folclore, pelos mitos antigos e eventos sociais históricos, cruéis ou sublimes. Seja qual for o assunto, pode-se sentir em suas obras o prazer de pintar, a forma como ele manipula os materiais e os pincéis com sensualidade e satisfação.
Esta exposição apresenta um momento no tempo da obra de um artista que se encontra em uma contínua e vigorosa trajetória. Ele abriu e ampliou seus objetos e suas abordagens pictóricas. Somos aqui confrontados com obras de grande complexidade em termos de temas e soluções formais. Encontramos motivos fortes e recorrentes, como a serpente, um símbolo local e universal que cruzou religiões e tempos históricos e apareceu em várias obras de mestres mais antigos e contemporâneos. A primeira parte desta exposição apresenta uma seleção de trabalhos nos quais o artista revisita esse motivo da serpente, que lhe dá o título Ouroboros Sucuri. Na segunda parte, selecionamos uma constelação de novas obras; esculturas e pinturas que mostram a experimentação em curso do artista no que se refere a novidades formais e narrativas inovadoras, abordando a cultura, o espiritismo, o ocultismo, os mitos e a política dentro de um discurso pós-colonial. Juntos, formam uma construção complexa, em que o espectador passa por diferentes zonas da ficção baseada na realidade. É essa fusão de signos e símbolos, religiosos e espirituais, e referências sociais e políticas da memória coletiva que carregam essas obras com a sua energia singular e que as inserem na grande tradição da pintura histórica.
Embora as obras de Martins de Melo sejam convidativas, sedutoras e intrigantes, requerem certo tipo de interpretação do espectador. Por isso, pensamos que seria esclarecedor deixar o artista falar por si e nos contar sobre suas referências e seus ingredientes pictóricos mais importantes.
Seja bem-vindo ao pensamento de Thiago Martins de Melo.
Thiago Martins de Melo: Ouroboros sucuri
GUNNAR B. KVARAN
For more than a decade, I have had the pleasure of following the extraordinary development and achievement of Thiago Martins de Melo. I have witnessed how he has been able to attain remarkable skills as a painter. He has mastered the diverse techniques of figurative painting, created new kinds of narrative structures, which combine on the canvas in macro and micro stories, divergent times and places and a mix of fiction and reality. His works show the richness of his knowledge and his culture – intellectual, spiritual and intuitive – and his own individual development and expansion.
In the beginning Martins de Melo’s paintings were related to his personal and family experience and existence, his close surroundings, but later he expanded his view to include the complexity of Brazilian society, even placing it, as well as his iconography, in a global context. His paintings embrace both the world and his inner life. They are always conceived and built up in layers of symbols and figures that enable him to include heteroclite elements of reality and beyond. Historical and social realities are always present, but there is also a spiritual and religious dimension, where energies and forces beyond our earthly world take action. There is also politics, a form of resistance that reveals the inner mechanisms of social injustice and discrimination. Martins de Melo is concerned about his compatriots, especially those who have been marginalized within Brazilian society. However, guided by the notion of “syncretism” he is able to extend his discourse to a more universal scene, where the signs and the symbols and different cosmological elements take on a more open and multi-semantic meaning, anchored in diverse realities from different times of humanity.
In his ambitious project as an artist and a storyteller, Martins de Melo has extended and reinvented the notion of painting by transforming his pictorial scenes into screen animations and sculptural objects or theatrical experiences. In his works, many narratives take place simultaneously, involving real people and events and spiritual forces, but always with a concern for coherence and clarity and a deep sense of aesthetics. His strong and powerful images are both appropriated and created and then placed in dialogue on the canvas. Most of the time they grow out of his imagination, inspired by folklore, ancient myths and real social events, cruel or sublime. Whatever the subject may be, one can sense the pleasure of painting in his works, the way he manipulates the materials and the brushes with sensuality and satisfaction.
This exhibition presents a moment in time in the work of an artist who finds himself in a continuous powerful trajectory. He has opened up and enlarged his subject matter and his pictorial approaches. We are confronted with works of great complexity in terms of themes and formal solutions. We find strong recurrent motives like the snake, a local and universal symbol that has crossed religions and historical times and has appeared in various works of older and contemporary masters. The first part of this exhibition presents a selection of works where the artist revisits this motif of the snake, which gives it its title: Ouroboros Sucuri. In the second part we have selected a constellation of new works, sculptures and paintings that show the ongoing experimentation of the artist with regards to formal novelties and ground-breaking narratives, which touch upon culture, spiritism, occultism, myths and politics within a postcolonial discourse. Together they make up a complex construction, where the spectator passes through different zones of reality-based fiction. It is that fusion of religious and spiritual signs and symbols and social and political references from the collective memory that load these works with their unusual energy and which places them within the great tradition of History painting.
Even though the works of Martins de Melo are inviting, seductive and appealing, they require a certain kind of interpretation from the spectator. Therefore, we thought it would be enlightening to allow the artist to speak for himself and tell us about his most important references and pictorial ingredients.
Welcome to the thoughts of Thiago Martins de Melo.
setembro 24, 2021
Delicadeza e Resistência, Rubens Ianelli, por Daniela Bousso
Delicadeza e Resistência, Rubens Ianelli
DANIELA BOUSSO
A sensibilidade estética da obra de Rubens Ianelli nos convida a pensar sobre as situações históricas e culturais que demarcaram os seus caminhos. Falar deste artista e de suas andanças significa compreender que o seu trabalho é feito a partir de experiências cultivadas em um espaço de tempo intersticial, que mescla o ambiente paulistano da arte entre os anos 60 e 80 aos processos dialéticos instaurados pelo seu caráter.
Rubens iniciou a sua formação artística na infância ao lado de artistas como Volpi e Lothar Charoux, amigos próximos de seu pai Arcangelo Ianelli e do pintor Thomaz Ianelli, seu tio[i]. Mais tarde cursou a faculdade de arquitetura. De outro lado, a sua vida desdobrou-se nas artes e em ativismos políticos em viagens pelo Brasil e exterior.
O resultado destes deslocamentos é uma visualidade que remete ao geometrismo indígena, aos símbolos de civilizações arqueológicas e à figuração pré-colombiana. Seu imaginário também é fruto de observações nos anos 70, quando entra em contato com a Geometria Sensível[ii].
A militância política começa a partir de 1973, quando ingressa na arquitetura. Rubens desperta para a saúde a partir de uma viagem ao sertão e ao sul da Bahia, em 1978, quando um amigo lecionava a partir do método Paulo Freire. O artista ficou um tempo por lá: viu a miséria e a penúria das gestantes para parirem crianças que morriam de disenteria. Inquieto, ingressou na faculdade de medicina.
Enquanto cursava medicina também desenhava, fazia colagens e ganhou alguns prêmios em salões de arte. Convidado para a Bienal do México em 1990[iii], tomou um trem na Estação da Luz em São Paulo e foi para lá recém-casado. Típico jovem dos anos 1970, viajou com a mulher de todos os modos imagináveis e atendeu aos apelos políticos de sua geração.
Chegando à Nicarágua, trabalhou na frente sandinista e depois seguiu a pé para a Guatemala até alcançar o México, onde o casal ganhou a vida fabricando doces para hotéis. A Bienal do México ficou para trás.
Volta ao Brasil descendo o rio Solimões até chegar em São Paulo. A partir de 1993 participa de uma pesquisa antropológica com profissionais da USP, conhece a medicina tradicional indígena Xavante e atua por sete anos junto às populações indígenas amazônicas.
Após um mestrado em saúde pública na Fiocruz, entre 1995 e 1997, é convidado a coordenar uma equipe no centro do Acre[iv], em Tarauacá. Esse foi o ano mais difícil de sua vida. Condições climáticas erráticas, naufrágio, acidentes na floresta, infecções e riscos de vida o deixaram sem tempo para a arte. O médico nestas regiões desamparadas trabalha 24 horas por dia. Quase não dorme, as demandas são intensas. Em contrapartida, conheceu 40 aldeias e teve sob seu cuidado mais de 2.000 índios de 5 etnias diferentes.
Rubens voltou para São Paulo em 2001 e a partir daí só se dedica às artes visuais. A potência de suas criações reside na multiplicidade de linguagens como a pintura, a escultura e o desenho. São muitas as suas referências: artistas como Picasso, Miró, Klee, Volpi, Ianelli e a geometria dos desenhos indígenas, povoam o seu universo que abrange arquiteturas, cidades encantadas, tudo perpassado pela poesia do traço e pela intensidade das cores, assinaladas em cada obra.
Na sucessão de idas e vindas em sua trajetória evidencia-se o hibridismo. Se por um lado o trabalho dialoga com as abstrações orgânicas e com a geometria do modernismo, por outro, a contemporaneidade de sua produção alude à memória de um apagamento que não se fez apenas pela ação do tempo, mas pela ação dos homens sobre o eixo sul do planeta.
O artista criou um vasto repertório simbólico que nos remete a tradições ancestrais. Ao operar no resgate da memória latino-americana ele reafirma o seu universo dialético, forjado já na infância: “Um dia meu pai voltou do Peru com aquelas cestas de feira cheias de cerâmicas e tecidos pré-colombianos e eu fiquei siderado”[v], diz o Rubens.
Segundo o teórico Andreas Huyssen, nos anos 80 emergiu uma série de pesquisas culturais que colocaram em perspectiva transnacional os discursos da memória, retomando questões pós-coloniais e periféricas. Além de debates sobre o Holocausto, o mérito dessas pesquisas foi avançar para além de uma história hegemônica, focada apenas nos continentes europeu e americano.
O binômio história/memória voltou-se aos africanos, à América Latina e a outros povos, cujas linguagens e histórias estavam relegadas ao esquecimento e à aniquilação. Este foi o início de uma historiografia que contemplava questões de memória coletiva. É deste lugar que proponho atualizar a análise e o estudo da obra de Rubens Ianelli, que tem como foco central a memória latino-americana desde os seus primeiros esboços[vi], ainda adolescente.
Na evolução visionária ao redor do imaginário geométrico, o artista se antecede ao tempo atual via uma atitude decolonial em sua obra já no final dos anos 60, quase vinte anos antes dos estudos pós-coloniais se voltarem a uma nova historiografia. Neste ponto podemos perceber como ele coloca em xeque a temporalidade em relação ao espaço global.
Para Didi-Huberman, estar diante de uma imagem é estar diante do tempo. Interrogar estas pinturas de Rubens Ianelli realizadas em 2021 é indagar sobre o tempo atual, feito e desfeito em palimpsestos, camadas quase arqueológicas de tradições que se sobrepõem. Nesta exposição o artista constela os ecos dos tempos modernos no presente. É a história do modernismo latino-americano que perpassa suas telas, tratadas com a máxima delicadeza.
Tempo sem fim, tempo estendido na paleta elegante de cromatismos básicos do mural italiano. Ocres, brancos, terra índia, verde, negro fumo, em camadas e pinceladas onde óleos e têmperas repousam sobre a estrutura das grandes ortogonais, traçadas antes dos pigmentos pousarem sobre as telas. As figuras evocam civilizações Incas, Maias, Astecas, Pré-Colombianas e outros povos indígenas sul-americanos.
Mergulho imersivo nas horas, aperfeiçoamento e superação das lições de um passado recente da nossa História da Arte. Destreza ao aplicar a têmpera, delicadeza gestual da pincelada e domínio do desenho - menos visível agora - sempre presente em sua obra. Rubens Ianelli reconta a história de um continente à margem, em três conjuntos de obras nesta mostra de desenhos e pinturas.
Dos quadrados e triângulos vem as cidades, acesas por uma luminosidade ora velada, ora animada por laranjas e amarelos. Dos povos indígenas vem as setas, a compor ficções que aludem a civilizações de outrora. E dos mares vem as ondas, que se esvaem nas brumas dos movimentos fluidos. Tudo sob o trato sensível de mini pinceladas. Afinal sensibilidade é política de resistência, pois refaz em pequenas narrativas uma história fora do eixo.
Texto escrito por ocasião da abertura da exposição “Delicadeza e Resistência”, com curadoria de Daniela Bousso. Galeria Contempo, São Paulo. Setembro de 2021
Referências
DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant les temps. Paris: Les Editions de minuit, 2000.
Geometria Sensível. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3788/geometria-sensivel. Acesso em: 1 agosto 2021. Verbete da Enciclopédia.
HUYSSEN, Andreas. Culturas do Passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto, Museu de Arte do Rio, 2014.
MUSEU AFRO BRASIL. (Org.) Rubens Ianelli. São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.
Notas
[i] Desde cedo Rubens aprendeu a dominar os aparatos do desenho e da pintura em sua casa, num vaivém de pessoas como Fiaminghi, Volpi, Emanuel Araújo, Odeto Guersoni, Lothar Charoux, o crítico Paulo Mendes de Almeida, amigos próximos de seu pai Arcangelo Ianelli, e o pintor Thomaz Ianelli, seu tio, que conversavam sobre arte: a cor, a linha, o desenho, a representação, a cozinha e a matéria prima da pintura, tal como o óleo e a têmpera, da qual Volpi ensinava a receita para quem quisesse saber.
[ii] No final dos anos 1970, a Geometria Sensível começa a ganhar força entre nós com a realização da mostra “Arte Agora III, América Latina: Geometria Sensível”, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ em 1978. Sob curadoria de Roberto Pontual, expuseram artistas latino-americanos em busca de uma expressão especificamente latino-americana, segundo o crítico Juan Acha. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL) Mais tarde, em 2001, o artista conhece a obra do pintor uruguaio Joaquim Torres Garcia, conhecido internacionalmente pela sua prática com a Geometria Sensível.
[iii] Em 1990 é convidado a participar da Bienal do México pelo curador da mesma, Marc Berkowitz.
[iv] Rubens vai para o Acre em 2000, durante a gestão Ministerial de José Serra no governo de Fernando Henrique Cardoso, como chefe de equipe técnica.
[v] Depoimento do artista à autora em 20/05/2021.
[vi] Ao voltar de uma viagem à Europa em 1967 - ainda menino quando foi morar em Paris e Roma com a família - traz uma série de desenhos, com características presentes até hoje em sua obra e já em São Paulo inicia a série de totens entalhados em madeira, pintados com uma figuração geométrica.
agosto 28, 2021
A inconstância do olhar sobre o mundo por Bernardo José de Souza
A inconstância do olhar sobre o mundo
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
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Tudo começa com um olho. Quem olha para onde, para quem?
Há sempre três olhares convergindo em um mesmo retrato: o do autor, o do público e o do retratado — admitindo-se que este último saiba ou intua o feito fotográfico. Mas mesmo que dado personagem esteja alheio à captura de seu retrato, seu olhar é forçosamente tomado de empréstimo em meio à triangulação de perspectivas que vem forjar um mundo próprio, cujas capas de sentido sobrepõem-se simultaneamente dentro e fora da imagem. Este plano externo, ou “campo cego”, como diria Roland Barthes, esta esfera extra fotográfica que resta invisível ao espectador, responde pela dimensão narrativa implícita à obra de Mauro Restiffe — um palimpsesto de histórias plasmadas no celuloide, algumas simétricas, outras assimétricas, conjugadas no painel humano que dá corpo a esta exposição.
Ora velada, ora aparente, essa dinâmica de olhares orquestrada pela fotografia encontra sua raiz na pintura, mais explicitamente no quadro As Meninas, de Velázquez. Ali, descortina-se o embate entre sujeito e objeto, entre público e obra de arte, mediado pelos olhares do pintor e dos retratados, ambos colidindo sobre o espectador. Tal qual esta obra prima, responsável por instaurar a consciência moderna da representação artística, as imagens de Restiffe, em vez de capturar um tempo morto, vão propor um jogo de cena no qual todos operam como agentes discursivos, um imbricado na mirada do outro — desta forma, o espectador é tragado pela imagem, absorto em uma dimensão situada entre o passado e o futuro.
Já quando informados pela tradição fotográfica do século XX, herdeira de Cartier-Bresson, poderíamos ser tentados a pensar tal hiato temporal como o momento decisivo, mas não se trata aqui exatamente disso, bastante ao contrário, eu diria. Os momentos retratados pelo artista dão conta de um fluxo, de um porvir, do transcurso de tantas biografias, seus sonhos e projetos de vida, sua iminente realidade. As fotografias de Restiffe, portanto, não são maiores que a vida, mas se constroem na sua justa medida — o que não significa dizer que não haja em sua obra o desejo de um relato histórico, ou melhor dizendo, de histórias, algo que se evidencia sobremaneira nos grandes panoramas políticos da vida pública brasileira, exemplarmente traduzida no projeto ora em exibição na Bienal de São Paulo, no qual a posse do presidente Lula é situada vis-à-vis a de Bolsonaro, num perverso e decisivo espelhamento de realidades. Em ambas as séries, o fotógrafo vai emergir como agente político, orientando sua lente às arquiteturas de poder, movido pelo afã algo marxista ao qual cumpre desvelar a superestrutura em suas dinâmicas institucionais. O corpo social torna-se, portanto, objeto de sua obra.
Emblematicamente, a este plano “reportagem” em terra brasileira, soma-se uma outra investigação, igualmente marcada pela política, embora de natureza cultural diversa. As viagens a Rússia travadas pelo artista nos anos de 1990, e novamente em 2015, condensariam uma galeria de personagens de outra sorte, propondo uma renovada mirada antropológica e relação com a história. Mas em que pese o caráter investigativo dessa imersão junto ao povo que experimentara a revolução e dela se desfez quando ruíram as utopias comunistas pari passu o muro de Berlim, em 1989, em tais jornadas o artista se preocuparia menos com o macro e mais com a micropolítica, com as vidas que se tornaram invisíveis sob a cortina de ferro: suas rotinas, seus espaços privados, sua intimidade.
Pois a presente mostra na Fortes D’Alloia & Gabriel se processa na esteira das viagens russas, igualmente orientada para os sujeitos da história, ou para os indivíduos e suas muitas histórias. Esta série intermitente de retratos atuais (que todavia retrocedem às viagens russas), parte do farto arquivo que vem sendo compilado pelo artista ao longo da vida, e acena com a sedução de personagens ávidos por seus destinos, ou entregues a eles com graça, paixão ou mesmo resignação. Trata-se de figuras a um só tempo frágeis e sólidas, reais, senão de todo donas de seus destinos, agentes humanos sobre a paisagem, quer construída, quer natural.
Mais do que do passado, o arquivo trata do futuro. Registrar, para além de preservar a memória, significa redimensioná-la em plano constante. E assim funciona com o acervo de imagens de Restiffe: um conjunto de personagens, de pessoas, aliás, investidas de desejos, em trânsito, movidas pela curiosidade — esta mesma curiosidade dividida por nós, espectadores da malha humana retratada, tão sensível, tão estoica no curso de suas existências. Do lado de cá do torvelinho humano gravados no filme, nós nos encontramos, como extensões das biografias que espiamos à la voyeurs, antevendo a glória ou o desastre, que a todos nos alcança em algum momento no tempo.
Diria, ainda, que há algo de cinematográfico na obra deste artista, um tempo dilatado, uma espécie de cinema de fluxo que extrapola o campo fotográfico, uma vez que faz verter das imagens uma carga vital, capaz inclusive de animar as naturezas mortas a pontuar a sequência de retratos, pois delas também emana uma atmosfera provisória que nos convoca a vislumbrar narrativas para além da beleza plástica das imagens, de sua composição formal — a rigor, como de resto, de todas as demais fotografias, sejam elas bucólicas, eróticas, reflexivas, políticas ou demasiado íntimas.
Entre figuras públicas, algumas mais ou menos públicas e outras anônimas, a obra de Restiffe versa sobre o caráter provisório da história. E este acervo de histórias e memórias preocupa-se tanto com o tempo presente quanto com o deslanchar do futuro. De decisivo, apenas o desconhecido em seu jogo de espelhos entre o antes e o depois, entre o público e o privado, entre a macro e a micropolítica, entre sonho e a instável realidade.
Por fim, para arrematar este breve texto, faltou falar de uma imagem em particular, do olhar incisivo do artista em seu autorretrato em branco e preto: aqueles olhos negros que passeiam com intimidade sobre outros corpos e paisagens, aquele olhar-punctum que destila admiração e surpresa com o mundo ao redor, sempre nos remetendo alhures, ao que a fotografia não capta, mas enseja ou insinua. Ao não estabelecer um código fechado para suas imagens, o artista nos convoca a uma deriva pelo etéreo, por aquilo que poderia ter sido e ainda não foi, mas que talvez seja em algum momento da vida senão relegado ao esquecimento, à mais recôndita memória.
Evoé!
The Impermanence of Looking at the World
BERNARDO JOSÉ DE SOUZA
Everything begins with an eye. Who looks where, or at whom?
Three gazes always converge in a portrait: the author, the spectator and the portrayed — assuming that the latter is aware or senses the photographic act. But even when the person is unaware of the portrait, their gaze is forcibly appropriated in this triangulation of perspectives that forges its own particular world, whose layers of meaning are simultaneously juxtaposed inside and outside the image. This external plane, or ‘blind field’ as Roland Barthes put it, or this extra-photographic sphere that remains invisible to the spectator, is what makes for the implicit narrative dimension in Mauro Restiffe’s practice — a palimpsest of stories molded into celluloid, some of them symmetric, others asymmetric, brought together in the human survey that shapes the exhibition.
This dynamic of gazes — at times veiled and at times apparent – orchestrated by photography has its roots in painting, more explicitly in Velázquez’s Las Meninas, where we see the clash between subject and object, between audience and artwork, mediated by the gaze of the painter and of the portrayed, colliding with the spectator. In the manner of Velázquez’s masterpiece, which sets out our modern awareness of artistic representation, Restiffe’s images, rather than capturing a dead time, propose a staging in which everyone functions as discursive agents, where each one is intermeshed with the gaze of the others. Therefore, the spectator is sucked in by the image, absorbed in a dimension located between past and future.
Now that we are informed by the 20th century photographic tradition, descending from Cartier-Bresson, we could be tempted to think of this temporal hiatus as the decisive moment. However, this is not what is exactly at play here, perhaps quite the opposite I would say. The moments portrayed by Restiffe contend with a flow, with a future, the passing of so many biographies, filled with dreams and life projects, their impending reality. Restiffe’s photographs, therefore, are not greater than life, they are built at its exact measure. This does not mean that his work is exempt from the desire to be a historical account, or the desire to tell different stories, something that is clearly seen in his exemplary large political panoramas of Brazilian public life currently being exhibited at the São Paulo Biennial, where President Lula’s inauguration faces Bolsonaro’s inauguration in a perverse and decisive mirroring of realities. In both series, the photographer emerges as a political agent, turning his lens to the architectures of power, guided by a somewhat Marxist eagerness to reveal the superstructures of institutional dynamics. The social body thus becomes the object of his work.
Emblematically, this plane of ‘reportage’ on Brazilian soil is supplemented with another layer of investigation, which is equally marked by politics albeit of a different cultural nature. The trips to Russia made by the artist in the 1990s, and later in 2015, condense a gallery of distinct characters, proposing a renewed anthropological gaze and a link to history. However, notwithstanding the investigative character of his immersion within a people that had experienced revolution and left it behind once communist utopias crumbled pari passu with the Berlin Wall in 1989, in his journeys, the artist was less concerned with the macro and more interested in the micropolitics, the lives that became invisible under the iron curtain: their routines, private spaces, and intimacies.
The present exhibition at Fortes D’Alloia & Gabriel is conjured in the wake of Restiffe’s Russian travels, similarly looking at the subjects of history, or at individuals and their many histories. This intermittent series of current portraits (that reach beyond his travels to Russia) emerges from the rich archive that the artist has been compiling over his life. It greets us with the seduction of characters who are eager for their destinies, or who have given in to their destines with grace, passion or even resignation. These are simultaneously real, fragile, solid figures, and even if they are not the full masters of their destinies, they are human agents acting on the landscape, be it built or natural.
More than the past, the archive deals with the future. To make a record, more than preserving memory, is to constantly give it a new dimension. And this is how Restiffe’s image archive works: a group of characters, of people, full of desires, in transit, moved by curiosity — the same curiosity that we share; we, the spectators of the portrayed human fabric, so sensitive and so stoic in the course of our existences. From this side of the human whirlwind printed on film, we meet, as if we were extensions of the biographies that we peek into like voyeurs, foreseeing glories and disasters that everyone will face at some point in time.
I would also say that there is something cinematographic in Restiffe’s work, a dilated time, a sort of flow-cinema that reaches far beyond the photographic field. A vital load pours out of the images, a load that is in fact capable of animating the still-lifes interspersed in the sequence of portraits, as from them also emanates a provisional atmosphere calling us to look at the narratives beyond the images’ plastic beauty, their formal composition — which, strictly speaking, applies to every photograph, whether they are bucolic, erotic, reflexive, political or excessively intimate.
Recording public figures, some more or less public, or even anonymous, Restiffe’s work deals with the provisional character of history. This collection of stories and memories is concerned with both the present and the unfolding of the future. The crucial aspect here is the unknown within a game of mirrors between before and after, public and private, macro and micropolitics, dream and unstable reality.
Finally, as a way of closing this brief text, I must talk about a particular image, the artist’s incisive gaze in his black and white portrait: those black eyes that intimately stroll over other bodies and landscapes, the punctum-gaze that distils admiration and surprise when faced with the world around it, always taking us elsewhere, to the place that photography cannot capture but yearns for or insinuates. By refraining from establishing a closed code for his images, Mauro Restiffe invites us to be adrift in the ethereal, somewhere that could have been but still hasn’t, somewhere that perhaps, at some point in our life, will be relegated, if not to oblivion, then to the most recondite of memories.
Evoé!
agosto 23, 2021
De @maxperlingeiro para @lygiaclark
Querida Lygia
Permita-me a intimidade. Além da grande admiração que tenho por você há mais de cinco décadas, apesar de ter estado com você muito menos do que deveria por pura timidez, recebi a responsabilidade de planejar e implantar um projeto de exposição e uma publicação pelo centenário de seu nascimento. É, Lygia... O tempo passou e nós não percebemos.
O que falar sobre você depois destas exposições? Fundació Antoni Tàpies, em Barcelona, curadoria de Manuel J. Borja Villel, o Manolo, em 1997, com itinerância pela Europa, terminando no Paço Imperial no Rio de Janeiro, em 1998; Musée des Beaux-Arts de Nantes, França, 2005, com itinerância na Pinacoteca do Estado de São Paulo; a tão sonhada exposição no MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), “O Abandono da Arte”, curadoria de Luiz Pérez-Oramas e Connie Butler, 2014; a “Retrospectiva” no Itaú Cultural, curadoria de Paulo Sergio Duarte e Felipe Scovino; e, finalmente. “Pintura como Campo Experimental”, 1948-1958, apresentada no Museu Guggenheim de Bilbao, curadoria de Geaninne Gutiérrez-Guimarães, em 2020.
Missão impossível!
Neste momento, lembrei-me de uma frase do genial Walt Disney: “Eu gosto do impossível, porque lá a concorrência é menor”. E assim foi.
Pensei em nossos heróis: Mario Pedrosa, Ferreira Gullar e Guy Brett. Infelizmente não existem mais. Mas me lembrei de nossos amigos: Yve-Alain Bois, Luciano Figueiredo e Lula Wanderley. E assim fui construindo uma rede de afetos, todos muito saudosos de você.
A equipe de pesquisa começou a trabalhar a partir de outubro de 2020, no dia em que você completou 100 anos. Fui informado por um jornalista de que eu tinha sido convidado pela Associação Cultural Lygia Clark, a instituição que cuida de seu legado, para fazer sua exposição. Daí em diante, foi muito trabalho. Comecei a ler e reler tudo o que havia disponível sobre sua vida e sua obra, apesar de uma terrível sequela de memorização e atenção que o vírus da Covid-19 me deixou. Meu foco era o “impossível”: a descoberta de obras inéditas, uma das características dos projetos monográficos da Pinakotheke; fotografias; documentos; registros; e cartas. Semanalmente, também chegavam dezenas de informações. Por falar em obras inéditas, descobrimos o paradeiro daquela “Escada” que você falou mais de uma vez de sua predileção, que estava com o seu amigo Hoco Martins Pereira, e o retrato de sua cunhada Berta Clark, entre muitas outras. E todas as informações foram devidamente checadas e rechecadas e tal resultado estará disponível nesta publicação, mais uma de que muito me orgulho de ter produzido. Ao mesmo tempo, era uma corrida contra o tempo, pois tínhamos um compromisso com uma itinerância, Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, dando uma dimensão nacional às comemorações de seu centenário. E aí mais um susto. Em fevereiro de 2021, não chegamos ao tão sonhado pós-normal. O jeito, Lygia, foi esperar. Guardar os instrumentos, limpar o palco, encerar o assoalho, ensaiar com afinco todos os dias e jamais perder a esperança. Eis que um novo planejamento surgiu: abriremos com todos os protocolos permitidos no dia 23 de agosto de 2021. Na luta de não deixar você completar 101 anos. Senão, perderíamos todo o nosso trabalho – e com a esperança de que os jovens com até 20 anos já estejam vacinados até lá. Lygia, os jovens admiram muito você e gostarão de ver seu trabalho. As crianças também. Temos uma tradição desde 1994 de manter um educativo muito eficiente e, quem sabe, conseguiremos retomar também as atividades dos “Sábados na Pinakotheke”.
Gostaria de compartilhar também com você a generosidade de todos os colecionadores que, durante décadas, reuniram suas obras e foram unânimes em emprestar tais preciosidades. É impossível agradecer a tantos amigos e profissionais que nos apoiaram. Lembra-se daquela divertida entrevista que você concedeu ao jornalista Matinas Suzuki Jr. e ao curador Luciano Figueiredo? Foi totalmente transcrita agora, com os recursos da tecnologia, e será publicada na íntegra. Seu amigo Yve-Alain Bois mandou-nos também um texto definitivo sobre você lá na Universidade de Princeton e cedeu-nos o exemplar número 1 de sua lendária “Revista Mácula”, em que seu trabalho foi comentado em 1965. Além disso, Marcio Doctors, um estudioso de seu trabalho, contribuiu com um belo texto. Paulo Herkenhoff foi generoso em nos ceder seu glossário sobre os diversos períodos de sua produção artística. Nosso saudoso amigo, o fotógrafo Alécio de Andrade também estará presente; sua mulher, Patrícia, cedeu-nos um belo ensaio fotográfico feito em Paris em 1966, quando você esteve por lá e causou um barulhão. Por fim, Lula e Gina foram impecáveis em me educar sobre seus “Objetos Relacionais e Sensoriais” e a eficácia de seu tratamento, junto aos pacientes que precisavam realmente de seu talento. No auge de minha crise de atenção, Lula pediu-me que lesse os originais de seu novo livro, inédito... Não teve jeito! Em 36 horas, fui obrigado a ler mais de 100 páginas dos originais, em um fim de semana, porque sabia que, na segunda-feira, seria sabatinado. E foi um verdadeiro desbloqueio mental.
Enfim, espero, querida Lygia, que você goste do que fizemos para comemorar essa data tão significativa. E, agora, deixo para meu legado comemorar o próximo centenário.
Em tempo: Mario Carneiro e seu filme “Memória do corpo” também estarão presentes.
Rio de Janeiro, agosto de 2021.
Max Perlingeiro
agosto 21, 2021
Projetos para um cotidiano moderno no Brasil, 1920-1960 por Ana Magalhães e Patrícia Freitas
Projetos para um cotidiano moderno no Brasil, 1920-1960
ANA MAGALHÃES E PATRÍCIA FREITAS
Introdução
A exposição Projetos para um cotidiano moderno no Brasil, 1920-1960 apresenta um conjunto de obras representativas da circulação da linguagem moderna no país, sobretudo, no ambiente urbano da primeira metade do século XX. Em seu acervo, o MAC USP possui obras de artistas modernistas que nos permitem observar os processos utilizados na inserção dessa linguagem no cotidiano. Tratam-se principalmente de projetos para ilustração, cartazes e capas de revistas; estudos para murais decorativos para espaços públicos e privados e, desenhos de cenários e figurinos para peças de teatro e balé.
Da coleção do Museu, estão expostos trabalhos de sete artistas: Antonio Gomide, Emiliano Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Fulvio Pennacchi, John Graz, Mário Zanini e Vicente do Rego Monteiro. As obras consistem, em sua maioria, em desenhos feitos sobre papel, com variados materiais como grafite, crayon, guache, pastel, nanquim, aquarela e lápis de cor. Em geral, as peças são de pequenas dimensões, o que sugere ainda mais pronunciadamente o intuito de deslocamento, fluxo e movimentação. A esses desenhos correspondem produções diversas, tais como, revistas, livros, peças de vestuário e mobiliário – hoje parte de coleções públicas e privadas – que também são apresentadas nesta exposição. Para o caso específico dos murais, é traçado um roteiro em que se conectam os estudos do MAC USP às obras que ainda permanecem na cidade, permitindo aos visitantes explorar uma extensão da mostra no espaço urbano.
Com exceção das obras de Antonio Gomide, que foram adquiridas do marchand italiano Giuseppe Baccaro, e de Vicente do Rego Monteiro, compradas de sua esposa, Marcelle Monteiro, os desenhos expostos são doados ao MAC USP pelos artistas ou suas famílias, demonstrando a importância dessa produção para seus criadores. Bastante conhecidos do público brasileiro, cada um dos artistas expostos já foi contemplado por exposições e estudos sobre o modernismo no Brasil, mas é no exercício de aproximar seus desenhos presentes no MAC USP que encontramos uma nova visada. Dos estudos para indumentária de Rego Monteiro até os projetos para azulejos de Zanini, nos interessa compreender a complexidade desse conjunto, salientando a importância dele para o entendimento de uma experiência ampliada de modernidade no Brasil.
Os termos da modernidade
O exercício de expor obras que não se enquadram em um registro convencional do que se entende por “belas-artes” – isto é, pintura e escultura – apresenta desafios próprios, a começar pela terminologia utilizada para descrever esse conjunto. A questão, que pode se colocar a princípio como simplesmente semântica, revela de modo mais profundo o anseio por um vocabulário apropriado às especificidades desses objetos. A ampliação desse escopo linguístico deve refletir uma transformação na abordagem metodológica dessa produção, desviando de visões parciais a respeito das chamadas “artes menores” ou “artes aplicadas” .
Neste sentido, a mostra propõe diferentes ângulos de observação para obras e artistas já conhecidos e estudados dentro da historiografia do modernismo, sendo Emiliano Di Cavalcanti talvez o exemplo mais evidente. Seus desenhos já foram expostos antes e sua relação com a imprensa, o muralismo e o mundo dos espetáculos foi apontada em muitas ocasiões, mas é na inserção de suas obras em um conjunto maior que se nota a relevância desta produção para a efetivação de um projeto de modernidade.
A palavra “projeto” vem então na esteira desse exercício de ressignificação. Ela cumpre, no contexto desta mostra, um propósito duplo. De um lado, evidencia a materialidade das obras expostas, revelando aspectos processuais, como no caso dos desenhos para murais que apresentam o reticulado usado para instalação de pastilhas de vidro, ou os estudos de cartazes, que mostram a criação de caracteres modernos próprios para produção gráfica. Esses indícios nos permitem compreender os aspectos experimentais e propositivos desse conjunto, colaborando para o conhecimento de técnicas, usos e funções importantes para as narrativas da arte moderna no Brasil.
Também, nesse sentido, a abordagem focada nos modos de produção e circulação dessas obras nos permitiu observar a complexidade desse conjunto, analisando as obras expostas a partir das relações que guardam entre si e com a cultura e sociedade em que se inseriram. Não desejamos a narrativa de uma história única dessas obras no tempo e espaço. Certamente, nos importam as transformações de sua estrutura física e as possíveis mudanças de proprietários, mas também nos interessam particularmente as reverberações, percursos, permanências e desaparecimentos a que essas obras correspondem.
A esse respeito, podemos tomar como exemplo os desenhos para figurino e cenário do balé A Cangaceira, de Flávio de Carvalho. Eles têm uma primeira existência como desenho em papel, e quando o balé foi apresentado, passaram a aparecer como vestimenta ou cenografia, sendo associados às reproduções fotográficas da apresentação do mesmo balé, publicadas nos periódicos da época. Todas essas possibilidades de existência só podem ser consideradas como relevantes se levarmos em conta como elas ampliam o alcance do desenho original do artista. Elas efetivamente levaram a linguagem moderna ao encontro de seus receptores de maneira que uma obra única possivelmente não faria. Como Walter Benjamin escreveu em seu célebre ensaio A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica:
Pode dizer-se, de um modo geral, que a técnica da reprodução liberta o objeto reproduzido do domínio da tradição. Na medida em que multiplica a reprodução, substitui a sua existência única pela sua existência em massa. E, na medida em que permite à reprodução vir em qualquer situação ao encontro do receptor, atualiza o objeto reproduzido. (BENJAMIN, 2017, p. 15).
Vale ressaltar aqui a crescente importância dos meios de comunicação de massa no início do século XX para a popularização da linguagem moderna. Diretamente relacionados ao desenvolvimento tecnológico e industrial, a imprensa, o rádio, o cinema, a câmera e o disco tiveram um papel fundamental para a atualização dos objetos reproduzidos de que trata Benjamin. Como o historiador Eric Hobsbawm descreveu em seu livro A Era dos Extremos, “a revolução nas comunicações levou seus produtos muito além de seus ambientes originais”. (HOBSBAWN, 1995, p. 196). Essas condições foram certamente favoráveis à circulação do desenho moderno e à divulgação de um determinado modelo de modernidade.
Por outro lado, o título da mostra evoca o entendimento de como a atuação dos artistas no Brasil dialogava com um cenário internacional, de concepção de uma sociedade que se lançava aos avanços pós-revolução industrial. As premissas iniciais formuladas a esse respeito podem ser rastreadas até o pensamento de John Ruskin e William Morris, na Inglaterra vitoriana de meados do século XIX. Os escritos de Morris e Ruskin fundamentaram aquilo que é entendido, de modo geral, como as bases para o desenvolvimento do desenho moderno.
Na historiografia, o elo entre Morris e ao que conhecemos como design moderno é amplamente aceito e tem como eixo principal a ideia de que a arte teria um papel basilar de transformação social. Quando inserido no cotidiano, o desenho moderno aplicado aos objetos comuns colaboraria para uma experiência efetiva de modernidade e para a configuração de uma sociedade mais justa e democrática. No final do século XIX, as experiências preliminares de Morris, que partiam da ideia de uma qualificação do objeto industrial, foram gradativamente dando lugar à defesa da “beleza inerente à máquina”, e dos princípios do que se conheceu como arte industrial.
Nesse campo, destacam-se os trabalhos desenvolvidos por arquitetos, designers, artistas e empresas alemães na Deutscher Werkbund, uma organização criada em 1907 para estabelecer parcerias entre indústrias e designers. Em princípio, a Werkbund funcionava menos como um movimento artístico e mais como um modo de integrar o artesanato e as técnicas de produção em massa, de modo a aumentar a competitividade da indústria alemã frente à Inglaterra e aos EUA. Nomes importantes do desenho industrial moderno atuaram nessa iniciativa, tais como, os arquitetos Hermann Muthesius, Peter Behrens e Ludwig Mies Van der Rohe.
Em 1919, um dos antigos membros da Werkbund, o arquiteto Walter Gropius participou da inauguração da Bauhaus em Weimar, na Alemanha. Sintetizada pelo conceito de um “grande projeto de construção”, a escola tinha como principal premissa unificar o ensino de arte na Alemanha, que antes se dividia entre a Escola de Artes e Ofícios e a Academia de Belas-Artes. Em seu manifesto de inauguração da Bauhaus, Gropius formulou a ideia de uma colaboração fundamental entre artífices, artistas, e a produção em larga escala, dissolvendo qualquer separação possível entre arte e tecnologia. A reforma no ensino funcionaria, então, como o primeiro passo para a construção de uma nova sociedade.
Estudos recentes apontam ainda a importância do desenvolvimento de ateliês para o ensino e produção de artes aplicadas na Rússia, em período anterior à própria Bauhaus. Seguindo-se à Revolução de 1917, diversas escolas foram criadas pelo estado soviético, em substituição às escolas de arte pré-existentes. Os SVOMAS, ou Estúdios Livres de Arte do Estado, foram instalados plenamente em 1918, e tinham como objetivo o ensino democrático das artes. Voltavam-se à inovação artística e à formação do operariado, sobretudo, nos ateliês de artes aplicadas (arquitetura de interiores, têxtil, metais, gravura e impressão, cenografia, pintura ornamental, porcelana, cerâmica e ferro). Em 1920, por decreto do estado soviético, é criado o Ateliê Superior Estatal Técnico-Artístico, ou VKhUTEMAS, com um enfoque central na formação de artistas para o trabalho na produção e ensino das artes industriais.
Em São Paulo, os projetos para a modernização do ensino das artes foram também mediados por diversas questões políticas, sociais e econômicas, que amadureceram ao longo do século XX. As iniciativas de associar as linguagens artísticas aos objetos de produção em massa se deram de modo heterogêneo, resultando em esforços pontuais. Ainda que nosso conhecimento sobre essa produção necessite aprofundamento, a permeabilidade dessas experiências na cultura brasileira é patente, desde a importante formação do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo (1873-) até a experiência do Instituto de Arte Contemporânea do Museu de Arte de São Paulo (1951-1954).
Promovendo um ensino de artes alternativo à Academia Imperial de Belas-Artes, do Rio de Janeiro, o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo tinha como base as experiências europeias de escolas vinculadas ao movimento do Arts and Crafts, e formava artistas para trabalharem com pintura e escultura decorativas na capital. Dirigido a partir de 1890, pelo arquiteto Ramos de Azevedo, o Liceu teve grande relevância para a produção em grande escala de elementos decorativos em metal e madeira para as novas construções da cidade nas primeiras décadas do século XX. (BELLUZZO, 1988).
Na década de 1950, a iniciativa de aproximação entre artistas e industriais se tornou a principal premissa do então diretor do MASP, Pietro Maria Bardi e da arquiteta Lina Bo Bardi, para a criação do Instituto de Arte Contemporânea. Nessa escola, cuja estrutura se assemelhava aos modelos da Bauhaus e da Black Mountain College, ensinava-se a um grupo seleto de alunos tudo aquilo que formava uma ideia ampla de desenho industrial moderno. Para Bardi, o plano de inserção do Brasil em um campo internacional da arte moderna passava pela estratégia de vinculação sistemática entre arte e indústria, algo que ele possivelmente trazia do ambiente italiano e das pesquisas em design de objetos que já frutificavam lá. Em periódicos de época, é possível verificar a publicação de propagandas dos cursos do IAC com apelos do próprio Bardi para que empresários e industriais incentivassem seus funcionários a qualificarem-se nas chamadas artes industriais. (BELLUZZO, 1988).
Nas iniciativas mencionadas acima, observa-se, de modo geral, a relevância atribuída à reformulação do ensino de arte e ao seu papel para a construção de uma sociedade moderna no início do século XX. Somam-se a esta principal formulação outras duas premissas importantes para o modernismo: um novo plano urbano e arquitetônico para as cidades e a consolidação de uma crítica atenta à formação do público. Para este último aspecto, colaborou ainda o crescimento de espaços expositivos não apenas da nova arte, mas do que se denominava amplamente de artes aplicadas e decorativas. Feiras e exposições como a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, ocorrida em Paris, em 1925, e mesmo o 1o Salão de Arte da Feira Nacional de Indústrias de São Paulo, de 1941, buscavam aproximar não apenas o desenho moderno da produção industrial, mas ambos do grande público.
No século que se estendeu de 1850 a 1950, diversos termos foram cunhados, estudados e divulgados, com propósitos positivos e negativos, para definir os inúmeros frutos da relação entre arte e indústria. Não raro, o conceito de artes aplicadas serviu como repositório de muitas dessas definições, ampliando seu escopo até o ponto em que seu significado deixou de ser claro. Para esta mostra, nos propusemos olhar além das simplificações e restrições que acompanharam o uso desse conceito pela historiografia da arte, buscando formas de acessar a complexidade desse acervo e das questões suscitadas por ele.
O cotidiano em exposição
A exposição Projetos para um cotidiano moderno no Brasil, 1920-1960 beneficia-se do debate crítico propiciado pelas condições do MAC USP de se voltar à pesquisa e dar a ela acesso público. Partindo dessa premissa, procuramos trazer ao espaço expositivo obras que foram pensadas, a princípio, para estarem em circulação nas mais variadas esferas do cotidiano. Essa ação certamente atribui a essas obras um conjunto de significados específicos, pré-estabelecidos a priori, e que correspondem às estratégias e símbolos pertencentes a um espaço configurado a partir dos modelos de museu de arte.
Nesse sentido, essa exposição nos dá a oportunidade de pensar não somente as soluções para apresentação dessas obras no espaço expositivo – pendurar simplesmente todos os desenhos na parede, por exemplo, seria uma opção que ratifica os modos tradicionais de exposição e planifica os sentidos que aqui intentamos problematizar – mas também de buscar uma compreensão mais precisa do lugar dessas obras no próprio acervo do MAC USP.
A musealização de objetos do cotidiano, entendidos como obras de artes aplicadas e decorativas, coincidiu com sua exposição e circulação no ambiente urbano em meados do século XIX. Um dos primeiros e mais modelar museu de artes decorativas e aplicadas, o Victoria and Albert Museum, foi fundado em 1857, para abrigar o conjunto de objetos expostos na I Exposição Universal de Londres (1851). Nesse núcleo inicial, agrupavam-se de maneira indistinta peças de mobiliário, pinturas e plantas, entre outros objetos vindos do Reino Unido e suas colônias. Assim, a formação desse acervo simulava a maneira como esses objetos eram categorizados e exibidos na própria exposição, funcionando como um registro permanente do poderio imperialista inglês. Em 1899, foi criado um Museu de Ciências para abrigar tudo o que não se encaixasse no critério de artes aplicadas, legando ao Victoria and Albert sua coleção permanente. Esse acervo foi dividido nas categorias de Joias, Têxteis, Vestidos de Noiva, Moda, Vidros, Metais, Arquitetura, Cerâmicas, Livros, Teatro, Esculturas e Desenhos. (JAMES, 1998).
Ainda que com diferentes objetivos e especificidades locais, outros museus seguiram o exemplo inglês e formaram suas coleções de artes aplicadas entre o final do século XIX e começo do XX. Esse é o caso do Museum für angewandte Kunst (Museu de Artes Aplicadas), fundado em Viena como Museu Imperial Real de Arte e Indústria em 1864, do Metropolitan Museum of Art (Museu Metropolitano de Arte) de Nova York, fundado em 1870. Ainda que, esse último não tenha sido aberto como um museu de artes aplicadas, esse possui um departamento de Artes Decorativas. Por fim, o Musée des Arts Décoratifs (Museu de Artes Decorativas) de Paris, inaugurado em 1905 pelos membros da União das Artes Decorativas, com salas de época, que reproduziam a decoração dos períodos históricos.
Embora esses museus tenham se especializado nas chamadas artes aplicadas e decorativas, separando-se dos acervos de ciências naturais, o modelo para a catalogação e exposição manteve-se o do museu enciclopédico iluminista. Prevaleciam nesses espaços, muitas vezes, as abordagens voltadas para o campo da cultura material, tratando dessa produção a partir de um interesse arqueológico. Somente na virada do século XIX para o XX, com estudos como o do historiador da arte Alois Riegl, que são valorizadas características artísticas dentro desses conjuntos. Esses escritos acenaram para uma mudança de visão sobre a arte que, de certa forma, abriu caminho para a ressignificação do lugar ocupado por esses objetos dentro dos museus. Essa operação de aproximação dos objetos de uso ou circulação cotidiana com as obras de arte foi ampliada no contexto do museu e das exposições de arte moderna.
Para a arte moderna, a aproximação com o cotidiano constituía um paradigma essencial. Ela representava não apenas um movimento de ruptura com os valores da arte acadêmica, mas também um aceno para a noção de que na sociedade burguesa industrial a concepção de uma arte autônoma é problemática. Em seu processo de institucionalização, então, ou ainda na sua inserção em um espaço expositivo, cujo modelo ainda se espelhava em parte nos ambientes acadêmicos, a arte moderna necessariamente sacrificou uma, ou mais, dimensões de sua conectividade com o cotidiano.
Esse problema é sem dúvida uma questão relevante para o museu de arte moderna, que, em algumas ocasiões demonstrou estar consciente desse cisma, como no caso exemplar da exposição de comemoração dos 20 anos do Museum of Modern Art (Museu de Arte Moderna), de Nova York. Aberta em 1949, Modern Art in your life foi organizada pelo artista e então recém-diretor do Museu, René d’Harnoncourt. A mostra abordava as relações entre a arte moderna (leia-se pintura e escultura) e as chamadas “artes aplicadas”. Desse modo, foi proposto um diálogo franco e direto entre o desenho de artistas, tais como, Mondrian, Klee e Picasso e os mais diversos objetos de uso, como pôsteres, cadeiras, panelas e tubos de pasta de dente. Como descrito no catálogo da mostra, a intenção era salientar o efeito da arte moderna na experiência de vida cotidiana e a presença dessa linguagem como uma parte intrínseca do viver moderno. (D´HARNONCOURT, 1949).
O espaço expositivo da mostra Modern Art in your life ocupou todo o terceiro andar do MoMA e se dividiu em seis setores amplos: Abstract Geometric Form (Forma Abstrata Geométrica), Geometrically Stylized Representation (Representação Geometricamente Estilizada), Abstract Organic Form (Forma Abstrata Orgânica), Organically Stylized Form (Forma Organicamente Estilizada), Surrealism and the Fantastic (Surrealismo e o Fantástico) e Cubism and Futurism (Cubismo e Futurismo). Dentro dessas categorias maiores foram criados subgrupos nomeados como: Painting and Sculpture (Pintura e Escultura), Architecture and Interiors (Arquitetura e Interiores), Industrial Design (Desenho Industrial), Typography (Tipografia), Packaging and Advertisement Design (Embalagem e Desenho de Publicidade), Window Display (Vitrine) e Theater Design (Desenho de Teatro).
Enquanto a nomenclatura dos subgrupos é bastante descritiva, os termos empregados nos setores amplos remetiam claramente aos estilos que conformaram certa história da arte moderna para a curadoria do MoMA. Esse tipo de apresentação demonstra que embora a exposição abordasse a relevância dos objetos de uso, exibindo-os lado a lado com pinturas e esculturas modernas, no campo discursivo as categorias continuavam a obedecer aos referenciais exclusivos das belas-artes. No caso específico do MoMA, a diferenciação entre artes plásticas e objetos funcionais era institucional, uma vez que o Museu contava com dois departamentos distintos, o de Pintura e Escultura e o de Arquitetura e Design.
O problema levantado pela exposição de objetos do cotidiano no museu de arte – entendido aqui como o espaço que institucionalmente define o que é arte – esbarra naquilo que o crítico alemão Peter Bürger nomeou como a “problemática da categoria de obra”. Bürger (2017) credita à vanguarda a dissolução dos sentidos da obra de arte simbólica e a liquidação não apenas da “instituição arte”, mas da arte como atividade desvinculada do que o autor chama de “práxis vital”.
Tomando como exemplo os readymade de Marcel Duchamp, o autor demonstra como, ao assinar um objeto produzido em série, retirando-o de sua existência corriqueira e apresentando-o como obra, o artista se utilizava dos valores constitutivos da ideia de arte formulada desde o Renascimento, como plataforma para seus questionamentos e provocações. No entanto, à medida que as vanguardas se tornaram históricas e a despeito das intenções desse movimento, seus meios e processos foram absorvidos, recebendo para si a combatida categoria de arte autônoma, separada da “práxis vital”. O objeto encontrado (objet trouvé) foi assim incorporado ao museu, e tratado museograficamente como uma obra de arte.
Embora Bürger tenha formulado uma teoria da vanguarda como forma de responder às questões de seu próprio tempo, seus apontamentos elucidam uma questão fundamental para toda a arte que se seguiu às vanguardas:
(...) malogrado o ataque dos movimentos históricos de vanguarda à instituição arte, ou seja, não tendo sido a arte transposta para a práxis vital, a instituição arte continua a existir como instituição dissociada da práxis vital. O ataque permitiu, contudo, que ela passasse a ser reconhecida como instituição e que a (relativa) ausência de consequência da arte na sociedade burguesa passasse a ser reconhecida como seu princípio. Na sociedade burguesa, toda arte posterior aos movimentos históricos de vanguarda deve ter diante de si este fato, podendo ou resignar-se com o seu status de autonomia ou promover manifestações para romper com ele, mas não pode simplesmente – sem renunciar à pretensão de verdade da arte – negar o status de autonomia e supor a possibilidade de efeito imediato. (BÛRGER, 2017, p. 131).
Parece-nos então que estamos diante do fato narrado por Bürger. Não podemos – e nem desejamos – negar as implicações envolvidas na exposição de objetos do cotidiano como arte, mas talvez possamos utilizar essas próprias implicações como ponto de partida. Assim, esta mostra se abre como um campo fértil para a construção de novos entendimentos não apenas da produção e circulação dessas obras, mas também para sua inserção no acervo do MAC USP.
Projetos modernos no acervo do MAC USP
A incorporação de vários dos projetos e obras aqui expostos ao acervo do MAC USP se deu no âmbito de uma reavaliação da história da arte moderna no Brasil, levada a cabo pelo primeiro diretor do Museu, Walter Zanini. Esses objetos estiveram presentes em exposições por ele organizadas entre 1968 e 1977, que se dedicaram a rever alguns personagens importantes do modernismo no Brasil, mas que não pareciam vincular-se às correntes artísticas mais estudadas naquele contexto. Além disso, à exceção de Di Cavalcanti e de Flávio de Carvalho, esse colecionismo modernista implantado por Zanini tinha uma relação direta com temas de pesquisa de seu interesse como historiador da arte, bem como fugiam a uma categorização mais tradicional da historiografia até então.
Sua atenção a tais objetos talvez se deva a três fatores. Em primeiro lugar, ele havia se formado em uma geração de historiadores da arte que fez um esforço de ampliação do campo de pesquisa na disciplina, ao mesmo tempo em que viveu um grande debate, dentro e fora do país, acerca das relações entre arte e indústria, e a emergência do desenho industrial – conforme assinalado anteriormente. Além disso, na celebração do cinquentenário da Semana de 22, em 1972, espólios importantes de artistas que haviam trabalhado em outros meios emergiram e propiciaram uma articulação entre as ditas “artes maiores” e as interações entre arte, indústria e meios de comunicação. Assinale-se aqui o modo como o MASP, por exemplo, reabilitou objetos ligados ao desenho industrial, à decoração, à moda, às artes do espetáculo, à gráfica e outros, na grande exposição em torno da Semana de 22 (BARDI, 1972). Zanini talvez tenha encontrado nesse contexto a ocasião para reavaliar a produção, de um lado, do Grupo Santa Helena – em parte aquela que se concretizou na Osirarte –, e de outro, o conjunto da obra de outros artistas que ainda não haviam recebido a devida atenção da historiografia brasileira. Assim, as exposições de Antonio Gomide em 1968, de Flávio de Carvalho em 1973, de Vicente do Rego Monteiro em 1974 e de Mário Zanini em 1976, estabeleceram um programa de aquisição de novas obras, com um foco significativo na produção desses artistas para os meios de comunicação, as artes do espetáculo e a decoração, que nos permitiu hoje, não só rever e problematizar os modos de narrativa da arte moderna no Brasil, mas também transformou o acervo do MAC USP em um foco de grande interesse para tanto.
Artistas como Gomide e Rego Monteiro tiveram suas primeiras grandes retrospectivas em um museu brasileiro, justamente no MAC USP. Delas resultaram incorporações de projetos desses artistas na chave de leitura aqui proposta. No caso de Gomide, estamos falando do conjunto de 28 estudos de estamparia que foi exposto na mostra de 1968 e foram adquiridas por Zanini para o acervo do Museu. Já Rego Monteiro, além de Zanini ter se dedicado boa parte de sua vida a estudar e catalogar sua obra, a exposição de 1974 também resultou em aquisições para o Museu, a exemplo das aquarelas de ilustração e dos estudos de figurino para o balé marajoara que o artista havia concebido em 1921 – e que se desdobrou na publicação Légendes, Croyances et Talismans de Indiens de l’Amazone (1923) – cujo original em exibição agora foi adquirido na pesquisa realizada para a exposição.
Outro tema de pesquisa iniciado por Zanini diz respeito ao chamado Grupo Santa Helena e seu desdobramento na Osirarte. De algum modo, os artistas aqui envolvidos estão ligados à história institucional do MAC USP. No caso de Paulo Rossi Osir (idealizador da Osirarte), a biblioteca do Museu foi fundada a partir da aquisição de sua biblioteca pessoal em 1966. Além disso, artistas como Mário Zanini e Fulvio Pennacchi foram objetos de grandes doações para o Museu, respectivamente em 1975 e em 1976. Nas duas doações, observamos conjuntos relevantes de projetos que os dois artistas desenvolveram para a decoração e para a realização de murais – alguns, como nossa exposição demonstra, foram ligados à fabricação de azulejos na Osirarte.
A partir dessas iniciativas, ao traçar o Programa de Necessidades para o projeto de construção de uma nova sede para o MAC USP, em 1973, Zanini pensou na implantação de um setor de desenho industrial no Museu (ZANINI, 2013, p. 208-211). Em suma, a importância dada às artes aplicadas e ao desenho industrial para uma apropriada compreensão e narrativa da arte no Brasil refletiu-se no maior programa editorial empreendido por Zanini ao final da década de 1970: os dois volumes de História geral da arte no Brasil, publicados em 1983. Eles constituíram, de fato, a tentativa de um primeiro grande manual de história da arte nacional, no qual a pesquisa de ponta da época, realizada em universidades brasileiras foi publicada em formato de grande divulgação. O aspecto mais importante dessa empreitada talvez seja justamente o fato do fenômeno artístico no país ter sido abordado num campo expandido, pois os dois volumes contemplam capítulos sobre arqueologia brasileira (capítulo de autoria de Ulpiano Bezerra de Meneses), sobre a arte indígena, a presença do elemento africano em nossa arte, e um capítulo dedicado à arte-educação (de autoria de Ana Mae Barbosa). Nessa perspectiva, as artes aplicadas, o design e o desenho industrial tiveram destaque, com contribuições seminais de Flávio Motta (sobre a disseminação do art nouveau no Brasil), de Júlio Katinsky (autor do capítulo sobre o desenho industrial brasileiro e sua problemática, diante do tardio processo de industrialização do País), e do artista e designer, Alexandre Wollner (sobre o design gráfico brasileiro) – esse último, naqueles anos, responsável por criar a logomarca do Museu, em uso até os dias atuais.
Notas
(1) Giuseppe Baccaro (Roccamandolfi, Itália 1930 - Recife, PE, 2016) é marchand, galerista, colecionador e pintor. Chega ao Brasil em 1956, atuando como editor do jornal Progresso Ítalo-Brasileiro. No mercado de arte paulista, consagra-se pela aquisição e venda de grandes quantidades de obras de artistas modernistas, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Victor Brecheret, entre outros. Nos anos de 1960, trabalha com leilões de arte e foi sócio de Pietro Maria Bardi na galeria Mirante das Artes. (GIUSEPPE Baccaro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras).
(2) Durante parte do século XIX e XX, os termos “artes aplicadas” e “artes decorativas” foram debatidos, sobretudo, no campo dos estudos de Design e Arquitetura, para os quais são relevantes principalmente no que diz respeito à história do ornamento aplicado à arquitetura e nos primórdios de uma ideia de desenho industrial. Já no campo dos estudos de história da arte e mesmo naquele denominado estudos visuais, essa terminologia ainda esbarra em uma definição negativa. Como se observa nas entradas desses termos no dicionário de arte Oxford, o sentido de artes aplicadas está diretamente relacionado àquilo que não é considerado belas-artes, afirmando com ambiguidade e amplitude demasiada aquilo que poderia ser considerado dentro da definição do termo: “artes aplicadas – termo descrevendo o desenho ou decoração de objetos funcionais para torná-los esteticamente agradáveis”. É usado em distinção às belas-artes, embora muitas vezes não haja clara linha divisória entre os dois. “No caso do termo ‘artes decorativas’, a definição é ainda mais reduzida: ‘artes decorativas’ – termo contendo artes aplicadas e também incluindo objetos que são feitos puramente para decoração”. (CHILVERS e OSBORNE, 1994).
(3) Não existem registros da apresentação do balé A Cangaceira em São Paulo, no entanto, diversos artigos foram encontrados em periódicos paulistanos. Os figurinos foram expostos apenas alguns anos após sua produção, em 1954, no MAM SP (Curadoria de Pfeiffer e Millan, 1955); Museu de Belas-Artes do Rio de Janeiro (1955); e na I Bienal de Artes Plásticas de Teatro (Direção de Aldo Calvo, 1957). Recentemente, as peças foram expostas na exposição Flávio de Carvalho - a experiência como obra, na Oca, Parque do Ibirapuera (Curadoria de Afonso Luz, 2014).
(4) A literatura sobre o design moderno é bastante vasta, mas o texto fundamental para o debate sobre seus pioneiros é o de PEVSNER, 2002.
(5) Sobre a Deutscher Werkbund, ver PEVSNER e JAEGGI, c2000, SCHWARTZ, 1996 e Deutscher Werkbund, 100 anos de arquitetura e design na Alemanha, 2007. Informações podem ser encontradas também em https://www.deutscher-werkbund.de/wir-im-dwb/basic-information-in-english/, acesso abr. 2020.
(6) DROSTE, 1994 e ARGAN, 2005.
(7) MIGUEL, 2006; GARCIA, 2001 e ANELLI, 2019. Em 2018, o SESC Pompeia realizou a exposição Vkhutemas: O futuro em construção (1918 – 2018), com curadoria de Celso Lima e Neide Jallageas. A mostra continha cerca de 300 projetos de 75 artistas, designers e arquitetos da Vkhutemas, e foi contemplada com o Prêmio APCA 2018 – Categoria Pesquisa e difusão.
(8) Grande parte da literatura a que se teve acesso sobre a Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris não trata diretamente da Exposição, mas dos estilos apresentados nela, em especial o art déco. Para uma pesquisa ampla sobre o tema, indica-se a leitura de DUNCAN, 2009. Para o art déco no Brasil ver AMARAL, 2008. Sobre o 1o Salão de Arte da Feira Nacional de Indústrias de São Paulo existem poucos estudos específicos também, mas as menções são abundantes em estudos sobre os artistas modernistas no Brasil, uma vez que quase todos participaram da mostra. Para um relato curto, porém bastante significativo sobre a Feira e sua relação com os modernistas, ver ALMEIDA, 1976. Para uma menção particular sobre o Salão e a Feira no contexto do desenvolvimento do design moderno no Brasil, ver LEON, 2014. Por fim, para uma breve análise da crítica ao Salão, ver FREITAS, 2008, p. 149-163.
(9) Toda a pesquisa apresentada nesta exposição é fruto do trabalho de dois anos do grupo de pesquisa CNPq Narrativas da Arte do século XX, coordenado pela Profa. Dra. Ana Magalhães e do qual participam alunos de pós-graduação do Programa Interunidades em Estética e História da Arte e do Programa Interunidades em Museologia, ambos da Universidade de São Paulo, bem como alunos de graduação em iniciação científica e pós-doutorandos do MAC USP. Os resultados levantados pelos pesquisadores colaboraram não apenas para a mostra, mas para a adição e revisão de informações sobre as obras, que agora serão tratadas junto ao setor de catalogação do MAC USP. A produção escrita pelo grupo também está disponibilizada para a comunidade da USP e externa, como forma de contribuir para futuras pesquisas. Participaram das pesquisas: Andrea Ronqui (mestrado), Breno Marques de Faria (doutorado), Fabiana Aiolfe (mestrado), Fernanda Tang (iniciação científica), Gustavo Brognara (mestrado), Juliana Caffé (mestrado), Mariana Leão Silva (mestrado), Marina Barzon (mestrado), Milena Sales (mestrado), Patrícia Freitas (pós-doutorado), Rachel Vallego (doutorado), Regina Teixeira de Barros (doutorado), Renata Rocco (pós-doutorado) e Victor Murari (doutorado).
(10) Alois Riegl foi um historiador da arte austríaco que trabalhou como curador no departamento têxtil do Museu Imperial Real de Arte e Indústria, em Viena, e como professor da Universidade de Viena. Entre suas principais publicações estão Stilfragen: Grundlegungen zu einer Geschichte der Ornamentik (Problemas de estilo: fundamentos para uma história do ornamento), de 1893 e Die spätrömische Kunstindustrie nach den Funden in Österreich-Ungarn, de 1901 traduzido para o inglês em 1985 e publicado com o título Late Roman Art Industry (Arte industrial da antiguidade tardia romana).
(11) Nesse sentido, podemos mencionar a importância de experiências como as bienais de Monza, na Itália, fundadas em 1923, que tinham como objetivo inicial expor a produção do Instituto Superior de Indústria Artística (ISIA), mas que depois de três edições de grande sucesso, foi transferida para Milão e transformada na Triennale di Milano, uma exposição internacional de arte decorativa e industrial moderna, e de arquitetura moderna, nos termos da época. (BOSSAGLIA, 1986).
(12) As categorias são formalistas e os paralelos que elas têm com o diagrama que Alfred Barr, antecessor de d’Harnoncourt, havia concebido para a capa do catálogo Cubism and Abstract Art, de 1936. (BARR, 1936).
Referências
ALMEIDA, Paulo Mendes de. Indústria e artes plásticas. In: De Anita ao museu. São Paulo: Perspectiva, 1976.
AMARAL, Aracy A. O modernismo à luz do "art déco". São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2008.
ANELLI, Renato Luiz Sobral. Exposição Vkhutemas: revolução social e produção serial. São Paulo, Romano Guerra Editora, Drops, ano 19, n. 141.06, jun. 2019.
ARGAN, Giulio Carlo. Walter Gropius e a Bauhaus. Tradução Joana Angélica d'Avila Melo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
BARDI, Pietro Maria (org.). A Semana de 22: antecedentes e consequências. São Paulo: MASP, 1972.
BARR, Alfred. Cubism and abstract art., New York: The Museum of Modern Art, 1936.
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Artesanato, arte e indústria. São Paulo, 1988. 523p.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica (5a versão). In: Estética e sociologia da arte. Edição e tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
BOSSAGLIA, Rossana. L’ISIA a Monza: una scuola d’arte europea. Monza: Associazione Pro Monza, 1986.
BURGER, P. Teoria da vanguarda. São Paulo: Ubu, 2017.
CHILVERS, Ian e OSBORNE, Harold. The Oxford dictionary of art. New York: Oxford University Press, 1994. D´HARNONCOURT, R. Modern art in your life. 2nd edition. New York: The Museum of Modern Art, 1949. Deutscher Werkbund, 100 anos de arquitetura e design na Alemanha. Bonn, VG Bild-Kunst, 2007. Informações podem ser encontradas também no sítio virtual oficial da Deutscher Werkbund: https://www.deutscher-werkbund.de/wir-im-dwb/basic-information-in-english/, acesso em abr. 2020. DROSTE, Magdalena. Bauhaus 1919-1933. Koln, Benedikt Taschen, 1994. DUNCAN, Alastair. Art deco complete: the definitive guide to the decorative arts of the 1920s and 1930s. New York, Abrams, 2009. FREITAS, Patrícia. O Grupo Santa Helena e o universo industrial paulista (1930-1970). Campinas, 2008. (dissertação de mestrado, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas). GARCIA, Hernan Carlos Wellington Sanchez. VKhUTEMAS/VKhUTEIN, Bauhaus, Hochschule für Gestaltung Ulm: experiências didáticas comparadas. São Paulo, 2001. (dissertação de mestrado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo). GIUSEPPE Baccaro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 09 de abr. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7. HOBSBAWM, Eric. A Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. JAMES, Elizabeth. The Victoria and Albert Museum: a bibliography and exhibition chronology, 1852-1996. London, Fitzroy Dearborn Pub. in association with the Victoria and Albert Museum, Chicago, 1998. LEON, Ethel. IAC primeira escola de design do Brasil. São Paulo: Blucher, 2014. MAGALHÃES, A. G. (org.). Anais do seminário modernidade latina os italianos e os centros do modernismo latino-americano, São Paulo, MAC USP, 2013. Disponível em: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/anais/modernidade/ficha.html. Acesso em abr. 2020. MIGUEL, Jair Diniz. SILVA, Marcos (orient). Arte, ensino, utopia e revolução: os ateliês artísticos Vkhutemas/vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930). São Paulo, 2006 (tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo). PEVSNER, Nikolaus. Os pioneiros do desenho moderno: de William Morris a Walter Gropius. Tradução João Paulo Monteiro. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PEVSNER, Nikolaus e JAEGGI, Annemarie. Fagus: industrial culture from Werkbund to Bauhaus. New York: Princeton Architectural Press, c2000, SCHWARTZ, Frederic J. The Werkbund: design theory and mass culture before the first world war. New Haven: Yale University Press, 1996. ZANINI, W. Programa de Necessidades do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. In: FREIRE, C. Walter Zanini. escrituras críticas. São Paulo: Annablume, 2013. ZANINI, Walter. História geral da arte no Brasil [2 vols.]. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983.