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setembro 18, 2006
Texto de Marilyn Zeitlin, sobre a exposição de Rosana Palazyan na Galeria Leme
Rosana Palazyan
Curadoria de Marilyn Zeitlin
23 de setembro a 20 de outubro de 2006
Galeria Leme
Rua Agostinho Cantu 88, São Paulo - SP
11-3814-8184 ou info@galerialeme.com
www.galerialeme.com
Segunda a sexta, 10-19h; sábados, 10-17h
MARILYN ZEITLIN
"Ele não é meramente impulsionado a despertar vida em objetos petrificados
mas também a investigar as coisas vivas de modo que se apresentem como antigas,
e, abruptamente, revelem seu significado."
Theodor Adorno
Retrato de Walter Benjamin, 19501
Rosana Palazyan faz obras de arte que são sutis, brutais e sublimes. Seu conteúdo revela a realidade da experiência cotidiana das pessoas com quem ela fala e trabalha: traz à tona os pensamentos interiores de meninos internados em instituições dedicadas à recuperação de adolescentes em conflito com a lei; e de pessoas em situação de rua. Eles são os intocáveis, os párias. Oportunidade é o que ela oferece às pessoas com quem se envolve e que são, com muita freqüência, tanto emudecidas quanto despercebidas. As palavras que o convite dela evoca são, muitas vezes, surpreendentes e mesmo chocantes, não só pela violência e abuso que exprimem, mas também pela ternura e esperança. Sua apresentação é tão delicada que poderia passar despercebida, não fosse também tão atraente que não se pode evitar examiná-la mais de perto para encontrar sua mensagem - e, muitas vezes, recolher-se alarmado. Embora ela tenha feito instalações poderosas - meu primeiro encontro com seu trabalho se deu com instalações2 expostas no Museu Rufino Tamayo na Cidade do México -, as obras muitas vezes são de pequena escala, atraindo-nos a um exame detalhado, a um relacionamento íntimo com os objetos. E é isso que acontece nas obras exibidas aqui: objetos pequenos, brancos, feitos de materiais macios.
Na maioria das culturas, a costura é uma atividade feminina. Neste último trabalho, Rosana retorna ao bordado, um meio que havia deixado de lado durante cinco anos e que considera como uma forma de desenho. Agora, ela o retoma novamente, desenhando as narrativas que reúne e, com a tensão e o paradoxo da beleza como uma linguagem, expressa coisas que são, às vezes, enaltecedoras, e às vezes quase insuportáveis. O bordado sugere intimidade, lembrando coisas que são, muitas vezes, ocultas ou extremamente pessoais. A obra extrai sua força de uma esfera muito particular: os sentimentos e pensamentos interiores e, quase sempre, não-expressos, das pessoas que vivem à margem da sociedade. Ela transformou travesseiros em suporte para seus diminutos palcos teatrais, desenhou suas narrativas em lenços delicados, usando essência de rosas como a fonte de cor e acrescentando esse perfume sutil às obras. Ela criou livros que contam horrores e que têm apenas alguns centímetros quadrados. Ao retomar ao bordado, o meio agora está transformado. Ela partiu para novas referências, para formas naturais: a crisálida e formas botânicas. Ela também se afastou da narrativa explícita, indo em direção à abstração e sutileza. Ao decidir trabalhar dessa maneira, mantendo sua conexão com pessoas rotuladas como "marginalizadas", Rosana volta transformada a seu conteúdo e a seu meio.
As obras nesta exposição sustentam-se por si sós, uma a uma, cada qual com sua própria mensagem. Consideradas em conjunto, criam uma escala para o projeto como um todo que insere a galeria na obra, não só como um receptáculo para a exposição, mas como um elemento estético na instalação. Ao pensar em como apresentaria seu trabalho, com seus detalhes diminutos na arquitetura da Galeria Leme, um espaço que se impõe e chama atenção por si mesmo, Rosana pensou em termos do espaço e da forma como o público poderia vivenciá-lo. O ambiente espacial apresentou um desafio que ela resolveu ao permitir que o edifício funcione como um contraponto, e ao destacar os detalhes de sua arquitetura. Ela explora a grade marcada pelos buracos nos painéis de concreto e os transforma em focos e pontos de ligação para os pequenos objetos que compõem o que se torna uma vasta instalação. As agulhas usadas na costura dos casulos são os instrumentos que os prendem às paredes. Assim ela surpreendeu aqueles que conhecem seus trabalhos anteriores, colocando as narrativas fora da própria obra e dissolvendo nossas expectativas do diminuto ao preencher essa ampla sala, dialogando com a arquitetura e transformando-a em um elemento que colabora com os objetos, e, por fim, levando a grade modernista a um novo domínio.
O trabalho é sublime no sentido em que o secreto e o sagrado são sublimes. Ele revela apenas a ponta do iceberg da pesquisa da artista que, neste trabalho, inclui seu estudo de plantas daninhas5 do Brasil e sua interação característica com as pessoas que fazem parte do mundo oculto que subjaz ao mundo aparente. Ele é sagrado no sentido em que penetra no terreno da transgressão. Sacralidade e tabu estão intimamente fundidos, um aspecto da prática religiosa conhecida como budismo tântrico, no qual todas as proibições são acolhidas para permitir acesso a novos níveis de experiência. Rosana adentra a arena proibida para encontrar seu material.
Em sua obra anterior, Rosana trabalhou com meninos em instituições dedicadas à recuperação de adolescentes em conflito com a lei. O que ela alcançou nesse trabalho foi a humanização dos adolescentes internos, ao identificar as percepções que eles tinham de sua própria experiência. Não são generalizações nem estatísticas, não são analisados da distância segura da ciência social e da objetividade. Ela nos permite, por meio de sua própria conexão com eles, ver que o clichê da perda da inocência é inexato, ou apenas uma parte da história. Penso nos primeiros filmes de François Truffaut que, como Rosana, fez obras como Os Incompreendidos3, do ponto de vista da criança. Ambos artistas nos mostram que a dureza da experiência não leva inexoravelmente à insensibilidade, à perda da inocência ou mesmo à perda da esperança. Na elaboração de "... um pedido para a estrela cadente " Rosana perguntou aos meninos internos quais eram seus sonhos, o que eles pediriam a uma estrela. As respostas cobrem uma ampla gama, desde o cinismo - "você tá brincando comigo?", até o chocante - "uma bicicleta e uma pistola", o desesperado - "quero sair desta vida", o prático - "saber ler e escrever", - e o escapismo total - "eu queria voar"4. Esses pensamentos interiores, que Rosana torna audíveis, refletem indivíduos. Não estamos acessando dados a respeito de um problema social. Estamos ouvindo vozes de seres humanos, cada qual com sua própria vida interior.
As vidas externas que os levaram a essas instituições, contudo, têm características em comum. Eles são os filhos das favelas mais pobres e das ruas, as crianças perdidas de pessoas condenadas a existir sem expectativa de vida, com horizontes cada vez mais restritos para aquilo que consideramos sucesso, com a duração de vida passível de ser interrompida pelo extraordinário nível de violência que se tornou normativo no contexto de seu cotidiano. Estou falando sobre o submundo do crime e do tráfico de drogas que floresce nas grandes cidades do Brasil, mas também no submundo urbano de Nova York, Cidade do México, Bogotá - um fenômeno globalizado tão onipresente que é enfrentado ou com carros blindados e guarda-costas ou por um desinteresse negligente.
Como podemos tornar visíveis as pessoas desse submundo? Como podemos vê-los como nós, não como uma espécie diferente, presa em uma implacável espiral de violência? Rosana acolhe o tabu que os rodeia e fala com eles, envolve-se com essas pessoas invisíveis ou atemorizadas, para ouvir seus pensamentos interiores e colocar suas palavras diante de nós. Em O Realejo, feito para a 26ª Bienal de São Paulo, em 2004, Rosana usou um realejo com um pássaro que faz parte de suas memórias de infância no Rio de Janeiro. A figura nostálgica, com seu chapéu tradicional de copa achatada, com o realejo caprichosamente pintado do qual emanava música, e com o belo pássaro, atraiu a participação das pessoas. A expectativa era de que o pássaro tirasse a sorte para cada um, uma mensagem de boa sorte. Mas, em vez disso, os pedaços de papel continham textos coletados das pessoas que a artista encontrou nas ruas de São Paulo, nos abrigos para sem-teto e nas ONGs que oferecem assistência social àqueles em situação de rua. Eles falam de sonhos, da vida, da sorte, de liberdade e da sociedade. A peça, como a maior parte do trabalho da artista, tem um exterior atraente, dentro do qual se abriga um conteúdo por vezes perturbador e surpreendentemente tocante. A obra nos fala não só dos pensamentos interiores de pessoas em situação de rua com quem ela conversou, mas nos lembra também dos mecanismos do acaso que fazem com que uma pessoa more na rua e outra faça parte de um público de arte. A obra relembra ao espectador os fatores arbitrários que decidem as condições de nossas vidas.
Durante o processo de pesquisa para a realização deste trabalho, Rosana novamente notou a importância dos sonhos e da esperança como instrumentos para a sobrevivência. A tensão entre a realidade da experiência cotidiana de alguém socialmente marginalizado e a vida interior de sua imaginação é uma área de pesquisa que a artista continua a explorar em seu trabalho mais recente.
No trabalho para esta exposição, Rosana coletou histórias de sucesso. Ela desenvolveu sua pesquisa com pessoas que viveram em situação de rua e estão novamente acima da linha de visibilidade social. Por meio de seus esforços hercúleos, transformaram a própria vida, e agora trabalham e pagam aluguel. Cada um deles refere que além das estruturas institucionais que os apoiavam, a mudança foi possível também pela generosidade de uma pessoa que se dispôs a ajudar com oferta de tempo e cuidado. Mas, acima de tudo, suas transformações só foram possíveis a partir de uma decisão interna, uma vontade de mudar.
Neste novo trabalho, mais do que bordar as narrativas de abuso infantil ou do que contar histórias de derrota ou esperança, Rosana deixou que as narrativas permanecessem impronunciadas. As histórias estão sob o trabalho, mas não de modo explícito. Isso marca um novo nível de sutileza em sua obra. Em vez disso, o que ela quer expressar é o processo de transformação. As evidências das transformações são como objetos em relicários. Cada um tem um pequeno lar nas cápsulas semelhantes a casulos que ela criou com tiras de tecido. Sugerem bandagens, mortalhas em miniatura, algo ao mesmo tempo natural e feito pelo homem. Dentro delas, a artista colocou um artefato que confeccionou. Considerando a idéia de que a identidade de uma pessoa está nas palmas de suas mãos, ela desenhou as linhas das mãos daqueles que não estão mais em situação de rua e as representou em bordados em folhas de tecido, como se estivessem escritas em um livro. O trabalho propõe muitas questões. Podemos mudar nosso destino? Podemos superar nossa sina - mudar o traçado de nossas palmas - por meio de determinação própria e da ajuda de alguém que nos estenda a mão?
A artista também passou por um processo de transformação. Este é um trabalho novo para ela. As narrativas, que formavam o sólido núcleo interno de praticamente todas as suas obras que precedem este projeto, agora estão submersas. Ela fez a mesma pesquisa, mas agora deixa as palavras das narrativas como subestruturas, e não mais explicita os dramas em primeiro plano. Esse processo torna o trabalho ainda mais sutil, mais abstrato. O assunto abordado, em vez disso, é a possibilidade e a dinâmica da mudança. É a celebração de resultados positivos contra todas as probabilidades.
O aspecto dinâmico do trabalho reflete-se também nas plantas daninhas que ela plantou nos sulcos existentes entre as placas de concreto do piso da galeria. Literalmente Rosana animou o espaço da galeria ao inserir seres vivos nessas fendas. Durante sua pesquisa sobre lepidópteros Rosana descobriu as plantas daninhas e aprendeu que as populações de borboletas e de outros animais que dependem direta ou indiretamente dessas plantas estão diminuindo com sua eliminação. Por competir com culturas produtivas as plantas daninhas são eliminadas por meio de pesticidas, e com isso a vida silvestre é afetada sensivelmente. Então Rosana pesquisou em livros de agronomia o que define um vegetal como planta daninha. Sua pesquisa revelou que uma planta é considerada daninha se: - crescer onde não é desejada; - não tiver valor de beleza nem utilidade; - suas virtudes não tenham sido ainda descobertas; - nascer importunamente em uma cultura dita econômica e competir com ela por espaço e nutrientes. E que: - as plantas daninhas são muito fortes e resistentes e proliferam rapidamente.
Só se pode concluir que os temas que ela aborda são as suas plantas daninhas: belos, mas no mundo do tabu: pobreza, drogas, alcoolismo, crime. Rosana me contou que em 2005 houve muita discussão sobre a "higienização" do centro de São Paulo. Essa era a palavra usada pelas autoridades, um eufemismo para a remoção dos que vivem das ruas da cidade. Ela aponta como isso é similar à remoção das plantas daninhas de um campo agrícola produtivo economicamente.
Agora, Rosana está cultivando plantas daninhas , comenta que muitas delas são belas - uma beleza que não é comercial - e que são daninhas apenas porque não são queridas. Ela as planta nas fendas entre as placas de concreto no piso da galeria, onde facilmente passam despercebidas, como ervas que crescem nas brechas das calçadas ou em meio aos pedregulhos. Essas plantas não têm valor, são mesmo daninhas, mas duráveis. No entanto, ao colocá-las nos sulcos do piso de concreto, Rosana sujeita-as ao abuso em potencial, mesmo quando não são vistas, mas também as eleva à posição dignificada de "arte".
Rosana penetra na percepção pública das pessoas marginalizadas com quem ela interage e colabora. Esta caracterização pública não deixa de ter um nível de verdade, mas Rosana penetra nessa verdade para ouvir diretamente as pessoas. Essas pessoas confiam nela - em parte porque ela vai ouvi-los, vai descobrir quem são e com o que sonham. A vulnerabilidade é a proteção da artista. Fazer jus à confiança e preservar o material que coleta deles é uma responsabilidade que lhe é bastante pesada. Contou-me que, em 2006, quando um de seus trabalhos que incluía histórias de pessoas com quem havia falado foi vendido, procurou-as para compartilhar o lucro com elas. Encontrou algumas, que se mostraram surpresas com sua oferta, pois sentiam que uma troca mútua havia ocorrido quando haviam conversado. Consideravam as conversas importantes em suas vidas marcadas pela solidão e pelo sentimento de abandono.
Então, tendo decidido trabalhar com pessoas cujas histórias a tocam, como poderia criar uma linguagem que vá além dos clichês e generalizações? Ela o faz usando a abordagem que está no próprio cerne da produção artística: continuamente revelar e ocultar.
O processo de revelação é o drama central desempenhado na inauguração da exposição. Rosana convidou biólogos, cientistas que criam e pesquisam lepidópteros em um borboletário no estado de São Paulo por ela visitado em fevereiro de 2006. As crisálidas que ela fez com tiras de tecido branco contêm um objeto, que o espectador não vê até esse momento. Os biólogos abrirão com cuidado, uma por vez, cada um dos casulos que contêm objetos de arte. A delicadeza dos gestos e a postura científica que lhes são diariamente habituais permeiam seus movimentos. Duplas de biólogos, vestidos como se estivessem em um laboratório, entram na galeria carregando bandejas de instrumentos. Eles removem a delicada folha de tecido, na qual estão bordadas as linhas das mãos de um dos antigos sem-teto e a colocam nas mãos de um espectador. Sendo este tecido transparente, como um véu, as linhas da mão do espectador irão transparecer, fundindo os dois conjuntos de linhas: o do espectador e o do ex-sem-teto. Ao final desse experimento, os cientistas colocam estas pequenas folhas de tecido, nos buracos de onde saíram. Agora liberta da crisálida, a folha de tecido bordado, irá assumir uma forma tridimensional, que talvez sugira a forma de uma borboleta, embora esta seja apenas uma das muitas associações possíveis. Só então a obra estará completa.
Mas o que ela significa? À ciência, Rosana acrescentou teatro e ritual, um ritual que sugere a possibilidade de uma metamorfose quase mágica. Uma pessoa pode mudar seu destino e essa mudança pode ser registrada nas linhas de sua mão? Ela pede que você, espectador participante, compartilhe a perspectiva de um outro, ainda que apenas por um momento. O participante abre suas mãos para que o tecido no qual as linhas das mãos de alguém desconhecido estão bordadas possa ser colocado sobre suas próprias mãos. Desta forma, as linhas da mão de ambos se fundem metaforicamente. Nesse momento, Rosana propõe a você, participante, mesmo que por poucos instantes, o exercício de colocar-se no lugar do outro, de uma pessoa que não conhece e provavelmente alguém muito diferente de você. Você também é capaz de mudar sua vida ou, ao menos, capaz de testemunhar essa transformação em outro ser humano.
Falar sobre este trabalho nos aproxima perigosamente dos clichês que a própria Rosana evita. Ela transmite o não expresso, o que não pode ser dito, e é isso que torna essa obra inesquecível.
Theodor W. Adorno, "A Portrait of Walter Benjamin", em Prisms, originalmente escrito em 1959, tradução para o inglês 1967, reimpressão 1986.
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Rosana Palazyan, Caixinha de Música - Love Story, 1999/ 2004. Instalação. Fita bordada, acrílico e mecanismo de caixa de música.
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François Truffaut, Les quatre cent coups, 1959.
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Rosana Palazyan, O Lugar do Sonho, São Paulo, 2004, contracapa.
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Ela escolheu uma planta especialmente bonita: o trevo com flores amarelas que viu nas calçadas das ruas do Rio de Janeiro. Nos Estados Unidos o trevo é cultivado para alimentar o gado, onde também goza de um status de planta "bela", pelo padrão atraente de suas folhas e por suas macias flores cor de rosa.
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