|
março 23, 2006
Cartografia do Desespero, de Cristina Pape
Cartografia do Desespero
Texto de Cristina Pape, originalmente publicado no Questões Contemporâneas
"O prédio acabara de ser esvaziado e os velhos móveis já não mais lá estavam. As marcadas paredes ainda carregavam sua história e no chão as manchas dos surrados e irregulares tapetes. As janelas estavam abertas e o ar entrou com seu poder renovador.
O grande portão estava aberto. Ela entrou e logo percebeu o silêncio de dentro e fora. As paredes antes tão ruidosas nada mais lhe diziam. O sol entrava pela janela do grande salão e tal qual uma igreja românica, despejava seu raio no chão onde nada havia a ser destacado, a não ser a si próprio ou o sorriso do gato.
Perdeu-se ela no tempo e nesta durée pode perceber o suave ruído que vinha de fora. Era o vento, vento que balançava as folhas, as folhas, as folhas, as folhas, as folhas, as folhas, as folhas as folhas, as folhas. Seus olhos abertos fixavam o infinito nas paredes agora sonoras. Tempo, tempo, tempo que passastes e não se percebeu. O coelho está atrasado. O vento mudara e ela notou que algo se passava com as jaqueiras, palmeiras, figueiras, cássias, abacateiros, piperáceas e tantas outras que até então estavam presas ao chão, agitadas naquele continuum com uma métrica própria. Grandes árvores, quando subitamente um macaco pulou para dentro do salão e em suas mãos estavam algumas folhas, amarelas."
Este trabalho foi fruto de uma pesquisa para a minha tese de doutorado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo Programa de Pós Graduação em Linguagens Visuais.
Minha trajetória como artista plástica sempre esteve ligada às esculturas, aos objetos, instalações e performances. Surpreendi-me quando percebi que estava indo na direção do texto, dos fragmentos, do acaso, da memória e da cor amarela.
Não posso dizer que alguma vez tive a intenção de trabalhar com a arte que discute a si mesma, muito pelo contrário. Sempre trabalhei com um processo de reflexão e de estética sobre a minha forma de transitar pelo mundo e quando sinto que cheguei a um ponto onde eu mesma já não sou mais identificada com a obra apresento-a ao mundo. O trabalho é meu mas não precisa ser óbvio porque o espaço que existe entre o proposto e a leitura do público será sempre inusitado.
A partir deste momento a arte fala de si mesma, mas não como a condição que me move inicialmente. Neste ponto o repertório que carrego começa a atuar objetivamente.
Também não posso afirmar que isso seja um método eterno.
Eterno, só as nuvens.
A série "Cartografia do Desespero"
Quando comecei a preparar esta exposição eu já estava produzindo a série " Cartografia do Desespero". São trabalhos feitos com cera e cinza de carvão vegetal. A numeração deste trabalho depende do número de peças que cada um contém e a do Parque Lage foi a geratriz, logo, número I seria o mais apropriado.
Toda a série é feita com o amarelo e o negro como cores dominantes, ora como matéria, ora como ausência ou excesso de luz.
A Exposição
A exposição " Cartografia do Desespero I" ocupou os dois espaços da Galeria das Cavalariças na Escola de Artes Visuais do Parque Lage participando do projeto " Zona Instável".
Eu queria um site specific e por isso seria muito importante manter as paredes, as portas, o chão, a iluminação original, o cheiro, o sistema de iluminação. Trabalhar com o apoio logístico que a própria escola oferece e não contratar profissionais de outras instituições foi uma opção porque a equipe é parte afetiva de lá e conhece bem o local.
Eu queria os espaços exatamente da maneira que eu os vivo há muitos anos observando suas transformações ao longo do tempo. Da matéria ao imaterial.
"Cartografia do Desespero I " não pode ser instalada em outro local porque como uma singularidade que é, nunca encontrará as mesmas condições em outros espaços e muito menos nas lembranças.
Os Espaços
Resolvido o título do trabalho e a situação de especificidade, absolutamente denunciadores de um momento meu particular, a fase seguinte foram inúmeras visitas ao local sempre sozinha para deixar que as lembranças aflorassem e me dissessem o que fazer ali.
Que imenso espaço aquele, com paredes tão altas, enormes, úmidas, animais que entravam e saiam à nossa revelia e aos nossos desejos secretos. Uma iluminação natural e artificial ao mesmo tempo difícil e interessante. O cheiro, misto de vegetação externa e umidade de dentro não poderia ser mais característico.
Os dias foram se passando e aos poucos o trabalho foi se delineando. Deveria ser uma mistura de minha hipótese da tese e ao mesmo tempo um projeto para aquele local. Como conjugar os dois?
O que fazer num gigantesco espaço que não pode ser transformado fisicamente porque sua força é maior do que a minha?
Como enfrentá-lo? Melhor seria nunca tentar. Dialogar, acariciar, vive-lo, torna-lo um amigo foi o caminho escolhido. Nunca guerrear com ele, muito pelo contrário, eu o queria meu aliado. Era ali que eu ia expor.
Um local de exposição deve ser afetivo e não um agente inimigo. Todas as situações devem sempre ser encaradas de forma amigável e então não há como não encontrar solução para problemas.
O espaço no seu silêncio e na sua majestade foi me dizendo o que fazer.
Tornar o espaço seu aliado é uma forma de trabalhar e porque não usar o vazio como forma e elemento da obra?
Os chineses dizem que nas suas pinturas tradicionais, é preciso que haja espaço para uma manada de cavalos poder cavalgar. A ansiedade que o ocidente tem de preencher os espaços é uma angústia e ela deveria ser aceita para ser diluída.
A outra questão era : como eu iria integrar as duas salas? Cada uma tem porta de entrada independente. Uma sala está ao lado da outra e uma imagina a outra, mas não se vêem.
A luz intensa daquela cor amarela que eu queria aprisionada na sala menor deveria dialogar com o salão, mas como? Como fazer com que isso acontecesse sem abrir um buraco na parede ou usar outros recursos que eu não queria mais óbvios? Meu trabalho ali era cor, texto e o meio ambiente. Seria com esses elementos que a conexão das duas salas teria que acontecer.
A sala pequena
O melhor seria começar desenvolvendo o projeto no espaço menor. Ele possui janelas de vidro, um chão e paredes que de vez em quando mostram a cor de uma exposição anterior, um gambá que dorme lá dentro e um sistema de
Possui uma porta de entrada de madeira e exatamente em frente a ela no outro extremo uma outra de vidro que permanece sempre fechada, mas que permite a natureza entrar no espaço à nossa revelia, mas eu não a queria tão presente no trabalho. Ela estaria sempre presente porque para se chegar ao ponto de observação, todos teriam que passar pelo jardim em volta. Assim seria melhor.
Um ponto de observação bem definido me ajudaria a colocar a obra isolada. O chão teria que ser pintado de amarelo Cadmo, o mais brilhante e explosivo que um amarelo pode ser. A iluminação deveria ajudar a cor a se expandir, característica que lhe é própria.
Então o primeiro passo foi pintar o chão de amarelo, deixar as janelas com as marcas do tempo e das exposições anteriores, as paredes mostrando de vez em quando um tom avermelhado muito intenso e que brota como água das pedras, distribuir a iluminação com o sistema original de lá e jogar a luz centralizada para o centro do chão. Formou-se um desenho quadrangular e a cor explodiu para as paredes e para o ar, deixando-os amarelecidos. Esse era o objetivo maior. Fazer com que o amarelo explodisse em sua potencia máxima. Aquela cor em sua máxima força. A luz.
"Para os chineses, o amarelo ou o preto significa a direção norte ou dos abismos subterrâneos onde se encontram as fontes amarelas que levam ao reino dos mortos".
Esse seria meu lago, meu espaço onde tudo que já se foi pode ressurgir. O local de onde a vida renasce.
Para não sofrer a interferência da natureza a sala ficaria fechada com a porta de madeira e seria olhada sempre pelas janelas ou pelos fundos. Não se entraria ali, no reino dos mortos para não macular seu brilho, não chegar perto demais e manter a distancia que ele impõe.
Um chão pintado de amarelo, paredes toscas, um teto de madeira, uma porta grotesca pintada de branco, água que escorria pelo chão a cada chuva. Um fragmento amarelo no meio do mato.
O grande salão
Várias visitas ao espaço, que se divide em dois: um enorme e uma asa menor do lado esquerdo. Sentava no chão, encostava nas paredes, deitava no chão, caminhava calmamente pelo salão e quieta ouvia o meu próprio silêncio e aos poucos fui percebendo o que aquele gigante queria de mim. As paredes marcadas, manchadas, o chão também, teias de aranha, marcas de outras exposições e manchas de umidade que iam se movendo com o passar dos dias, iam aumentando, dando ao espaço um tom cada vez mais amarelecido. O que Golias queria de mim? Eu sem pedras nas mãos. Depois de alguns dias em silêncio percebi que a exposição seria a mais econômica possível. Nada de recursos e efeitos fenomenais, porque o salão já é um monumento. Um texto foi no que pensei, porque ele é como o rádio: ouvimos e não vemos e assim podemos imaginar muito. Podemos imaginar tudo. Um texto que começasse no espaço sem iluminação, no reino dos mortos, escuro, de onde emerge a vida e iria tomando conta, ao longo de 27 metros de parede, trazendo o leitor para o espaço mais claro e para a conclusão provisória de uma narrativa.
A relação entre o espaço, a cor, a memória, a experiência, o tempo e o infinito foi sendo devagar e cuidadosamente construída.
O primeiro passo foi buscar na memória as minhas lembranças e elas, vivas que são, foram aparecendo e se mostrando neste ano de 2005. Tão diferentes certamente do que foram os fatos há mais de 15 anos atrás, mas as lembranças têm o glorioso papel de nos fazer viver cada momento e cada segundo como se fosse hoje. Escrever sobre as experiências vividas lá na escola e no seu entorno foi o primeiro passo e ao mesmo tempo colocar as questões da tese na exposição.
Quais são as minhas questões?
O amarelo é um fragmento que deflagra, tira o sujeito do tempo cronológico e joga no tempo afetivo propiciando uma experiência de infinito e a memória, suporte de todo o meu trabalho, é formada de acasos resgatados pelas lembranças.
Uma vez a questão esclarecida para mim, o texto brotou mais uma vez como água nas pedras.
Qual a cor do texto?
Como colocar o texto numa parede tão úmida?
Onde colocar o texto?
Para a primeira pergunta, a resposta fora dada desde o início: amarelo. Esse seria o canal imediato de ligação entre as salas.
A resposta para a segunda pergunta foi colar o texto em tiras de PVC e pendura-las em seqüência na parede com pregos em L, a uma altura de 1,60 m do chão, a minha altura, porque se são minhas memórias revividas, retrabalhadas, como poderia usar a altura de outro?
Caminhar pelo espaço e ir lendo o texto levou as pessoas a seguirem um movimento contínuo e que devagar as ia colocando num outro tempo, o da leitura.
O tempo da leitura obrigava o público a refletir um pouco sobre o que estava fazendo e não simplesmente olhar, gastar a visualidade como um objeto pode pedir ao observador.
Não havia Ponto de observação porque todos os locais eram possíveis, mas havia a condição de ser um site specifico.
Com muita alegria
Cristina Pape
Rio de janeiro, 9 de dezembro de 2005
" ... o amarelo, os amarelos..."
"Um texto escrito em letras amarelas que, mais do que remeter ao problema da cor, sugere a passagem do tempo - o próprio texto está montado sobre paredes marcadas pelo tempo (manchas de umidade, reboco descascado, chão manchado). Indo de um ponto a outro entre as duas primeiras salas, e do ponto menos iluminado, as palavras que o compõem se desenvolvem ao longo de um certo percurso e, para serem lidas, também exigem do espectador consciência temporal. O amarelo reaparece na terceira sala, no piso, nada mais fazendo do que saturar o ambiente e criando uma espécie de suspensão do tempo. Duas referências a Lewis Carrol sublinham o centro de interesse da instalação, remetendo ao mesmo problema: o coelho que, com seu relógio, queixa-se sempre do atraso, e o sorriso do gato que permanece por alguns momentos depois que o resto do animal foi gradualmente desaparecendo . Fragmentos de tempo: o fragmento de um gato , o seu sorriso; um fragmento (inadequado) de tempo, o do atraso do coelho; fragmentos do parque, as folhas amarelas, trazidas pela mão dos animais.
Fragmentos de todo modo, que no remetem a outro problema. A cultura Ocidental foi , de todas as que conhecemos, aquela que deu ao fragmento uma importância e um significado únicos na história: fomos a única civilização que, deliberadamente, não apenas recolheu e preservou relíquias, mas "construímos" fragmentos em toda sua (in)completude. Nenhuma outra cultura " ergueu ruínas" arquitetônicas ou construiu " disjecta membra" de obras de arte - isto simplesmente não faria sentido para mais ninguém que para o Ocidente. Mas tamanho é o peso da história sobre nossos ombros que aos jardins ocidentais do século XVIII e XIX não faltam ruínas de aquedutos romanos (para citar um único exemplo, os jardins do Palácio do Eleitor, em Kassel, Alemanha); os fragmentos da escultura grega que a nós chegaram têm na obra de Rodin uma evidência dos " fantasmas" que sobre ele pairavam. Nossa cultura não se cansa de reunir resíduos para deles tirar um todo, ainda que este mesmo seja tão-somente um fragmento.
É também de fragmentos, fragmentos de amarelo, que a instalação de Cristina Pape se constitui. Recolhidos (escolhidos) à medida que objetos caíam sob seu olhar, ao acaso, ao longo dos anos, acabaram por fazer parte do ciclo " Cartografia do Desespero" que a presente mostra é uma das varias manifestações até agora. Normalmente constituída por amarelo e preto, na sua presente forma apenas o amarelo aparece. Amarelo que, para costurar a idéia de tempo (ou da relíquia que o tempo não destruiu), e de nossa relação especificamente ocidental com os dois, Cristina associa ainda o amarelo aos lagos da China, os lagos amarelos, que indicam o Norte, de um lado o ponto cardinal por excelência (a ponto de, quando este ás vezes nos falta, ficamos " desnorteados"). Lagos que, no Oriente, fazem referência tanto quanto a área onde a terra emerge quanto à área onde vão os mortos. Uma cartografia do desespero, mas talvez também toda uma cartografia da desesperança...
Reunião , de qualquer modo, de todas as memórias em que o amarelo institui plausibilidade ou verossimilhança. Não necessariamente veracidade. Pois trata-se aqui de um fato estritamente artístico, isto é, do campo da ficção, em que a " verdade" , ou correspondência (cumplicidade) entre o fato e o enunciado, não tem pertinência. Pouco importa se os " acontecimentos amarelos" consolidados na instalação tiveram ou não tiveram lugar. Basta apenas que eles tenham sido enunciados como possíveis, como os macacos com folhas amarelas às mãos... (incidentalmente, como se trata de uma instalação specific site, e o Parque Lage tem um sem-número de macacos e de folhas das mais variadas espécies, a possibilidade não está tão distante da probabilidade).
Estamos bem longe dos excessos do trabalho de Cristina de alguns anos atrás (os bolos ou o mercado, referências diretas ao gosto popular, e Mar Negro, outra instalação em que uma única cor predominava, e de caráter bem diverso). Antes, a situação ocorria pela saturação com excesso de elementos. Nada disso se passa agora. Trata-se aqui do mínimo necessário para a artista estabelecer a situação artística pretendida. Uma transformação que anuncia uma nova economia do material, um discurso que se faz pelo murmúrio e pelo sussurro, não pela dramaticidade do gesto."
Reynaldo Roels
Março de 2005
Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Reynaldo Roels por ter me permitido viver uma das exposições mais gratas que já realizei, ao Vitor Paranhos pela presença que se concretizou num lindo DVD que me sensibiliza a cada vez que o vejo, ao amigo Renato Marianno que me auxiliou na montagem, ao Daniel Belluchi que além da montagem ajudou a pensar o trabalho, antes, durante e depois.
Quero agradecer à equipe da escola: Roberto da marcenaria e ao eletricista / iluminador Homero, que pacientemente me ajudaram sempre que foi preciso.
Quero deixar meu agradecimento especial à Anna Bella Geiger que aceitou meu convite para participar do debate sobre a exposição, que para mim mais é do que uma artista porque é parte de minha memória viva.
:)
\o/