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agosto 2, 2004
A identidade dissolvida
Sobre a obra de Alice Miceli e a questão do pós-humano
JULIANA MONACHESI
Alguns trabalhos que me vieram à mente enquanto assistia ao vídeo Ínterim, de Alice Miceli: Gisela e Leandro (1998), díptico com saída digital em papel fotográfico feito pela dupla Gisela Motta e Leandro Lima em que o retrato de um foi sobreposto ao do outro no computador e a imagem resultante é a fusão de ambos; a série de fotografias Mom and Dad (1994), de Janine Antoni, em cuja ficha técnica figura o curiosa descrição da técnica utilizada: mãe, pai e maquiagem; as auto-intervenções performáticas de Orlan; a série Pintura (2000), de Clarissa Campello, auto-retratos em que por meio de intervenções digitais e/ou manuais a artista obtém imagens completamente diferentes, como se não fora sempre a mesma pessoa retratada; e, claro, o projeto Narkes (2003), de Helga Stein.
Cada um destes trabalhos tem sua especificidade e não vou me deter nelas, pois não é o caso aqui; só faço a ressalva para não parecer que estou colocando tudo no mesmo "saco". Anyway, o que há de comum entre estas obras? O problema da auto-imagem, uma discussão do auto-retrato? Ok. Mas tanto Janine Antoni quanto Alice Miceli, e a dupla Gisela e Leandro, obviamente, se utilizam de outras pessoas, outros retratados, para "representar" suas próprias identidades, se é que é isso o que está em jogo. A artista francesa traveste o pai com as roupas da mãe e vice-versa, obtendo assim fotografias de dois pais, duas mães e dois travestis.
O que está em pauta é uma transformação, um trânsito entre polaridades ou entre possibilidades; nenhum destes trabalhos propõe um retrato clássico, estático, com cada elemento definidor da identidade em seu devido lugar. Ínterim tem 20 minutos de duração, o tempo exato que transcorreu entre o nascimento da artista e o de sua irmã gêmea. Um close permanente e estático no rosto de uma vai terminar como um close do rosto da outra. Durante os 20 minutos, a transformação é "traduzida" digitalmente: um olho começa a mudar, uma linha de expressão depois, tudo muito sutil, mas encenado como que "ao vivo", diante dos nossos olhos. A mudança é palpável, mensurável, matemática.
É claro que o fato de dispor dos meios técnicos para fazer esta "operação" não implica em dar conta do que se passou naqueles 20 minutos nem do que diferencia uma pessoa da outra. Mas é do embate com este impalpável, imensurável e imponderável que a artista toma partido em seu trabalho. Ela brinca de Deus. Em um plano metafórico, bem entendido, mas que não impede que se analise a obra do ponto de vista das intervenções não-metafóricas desta natureza que a tecnociência torna possíveis nos dias de hoje. Uma "operação" que interroga ou até determina a identidade: eis uma interpretação polivalente, que vale para o vídeo Ínterim e também para a cultura do upgrade humano. Cirurgias plásticas, modificações genéticas... estaríamos nos encaminhando para uma condição de pós-humanidade.
Existe um livro que ilumina esse buraco negro filosófico de forma indescritível. O Homem Pós-Ôrganico - Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais, de Paula Sibilia (editora Relume Dumará, 230 páginas e os R$ 28 mais bem pagos da história do mercado editorial). Eu poderia escolher inúmeras passagens igualmente iluminadoras para vir em meu auxílio na tentativa de analisar a obra de Alice Miceli à luz desta temática, mas segue esta, em que a autora começa a diferenciar duas linhas de pensamento sobre a técnica que podem ser rastreadas na tradição epistemológica e que contribuem para detectar as bases da tecnociência moderna e contemporânea (está na página 46):
"Os conhecimentos e as técnicas dos homens não são todo-poderosos; seus 'dedos profanos' não podem perturbar todos os âmbitos, pois há limites que devem ser respeitados. Como se depreende logicamente de seus postulados, o progresso dos saberes e das ferramentas prometéicas redunda em um certo 'aperfeiçoamento' do corpo, porém este será sempre naturalista e não-transcendentalista; ou seja, não pretenderá ir além dos limites impostos pela 'natureza humana'. Pois, de acordo com essa visão, os artefatos técnicos constituem meras extensões, projeções e amplificações das capacidades próprias ao corpo humano. Aí a tecnociência de inspiração prometéica se detém, sem pretender ultrapassar o umbral da vida -os 'segredos tremendos as estrutura humana' profanados pelo dr. Frankenstein."
À tradição prometéica apõe-se a fáustica, esta que vai decretar o corpo humano obsoleto e buscar transcendê-lo, rumo ao pós-humano. Orlan é logicamente fáustica. Pois bem, nem se trata de uma dualidade apocalípticos e integrados revisitada nem de um instrumental teórico em que eu vá tentar enquadrar o vídeo de Alice Miceli, mas são questões que se colocam para pensar qualquer trabalho de arte em novos meios que discuta identidade. Outras obras na exposição do Santander adensam este debate, como a de Helga Stein, já mencionada, e a de Patrícia Piccinini, entre outras, e a elas voltaremos.
eh alice!
Posted by: carlo sansolo at agosto 20, 2004 10:05 PM