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março 3, 2011
O Estado da arte por Silas Martí, Folha de S. Paulo
O Estado da arte
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no caderno Ilustrada do jornal Folh de S. Paulo em 3 de março de 2011.
Galerias do Rio e de Recife se mudam para São Paulo, acirrando disputa por artistas já representados por casas locais, sintoma de um mercado de arte que está cada vez mais aquecido
Não é indolor a entrada de uma galeria de arte no mercado. E se esse mercado é forte como o de São Paulo hoje, novos jogadores no pedaço causam alvoroço e provocam fraturas nos relacionamentos entre artistas e galeristas.
No fim do mês, uma casa do Rio e outra de Recife se juntam na capital paulista, criando um entreposto central para seus territórios de origem. Laura Marsiaj, carioca, e Mariana Moura, pernambucana, abrem a Moura Marsiaj em Pinheiros, no lugar da extinta galeria Oeste.
"Já estou de mala e cuia para São Paulo", disse Marsiaj à Folha. "Tínhamos a necessidade de uma representação maior na cidade, somos duas galerias se unindo e cobrindo todo o território."
Mas nem tudo está vindo nessa mudança. Ficarão no Rio alguns de seus artistas já representados em São Paulo por outras galerias, caso de Barrão e Mauro Piva, da Fortes Vilaça, Lenora de Barros, da Millan, Iole de Freitas, da Raquel Arnaud, e Márcia Xavier, da Casa Triângulo.
Moura está deixando para trás um forte time representado em São Paulo pela galeria Nara Roesler -Artur Lescher, José Patrício, Laura Vinci e Gil Vicente, que mostrou seus desenhos de assassinatos de líderes políticos na última Bienal de São Paulo.
Em abril, quatro sócios, todos colecionadores, abrem a galeria Transversal, na Barra Funda, com um elenco tímido de nove artistas, mas que deve ganhar vulto com o tempo e arrisca atrair também nomes de outras casas.
Chamado choque de representações, a situação de um artista representado na mesma cidade por mais de uma galeria é comum em mercados desenvolvidos, como o norte-americano e o europeu, mas é um sintoma de que o mercado nacional entra numa nova fase, turbinado pelo forte interesse global.
Uma obra de Adriana Varejão acaba de ser arrematada em Londres por R$ 3 milhões, recorde de preço para um artista brasileiro vivo.
De olho em valores cada vez mais altos, galeristas alijados do centro financeiro do país agora se esforçam para levantar suas bandeiras em São Paulo, acirrando a disputa por artistas num mercado cada vez mais acelerado.
Enquanto em suas cidades de origem Laura Marsiaj e Mariana Moura estão entre as casas mais fortes do mercado, representando artistas consagrados, as duas tentam engrossar o time com jovens autores na cena paulistana.
CASAMENTO E DIVÓRCIO
Mesmo antes de abrir as portas, a Moura Marsiaj já tirou a pintora Renata De Bonis da galeria Oscar Cruz e a fotógrafa Amanda Melo da Zipper. Enquanto isso, Hildebrando de Castro, que começou a expor no Rio, na Laura Marsiaj, agora preferiu ficar na paulistana Oscar Cruz.
"Estamos com a política de não estimular esse tipo de comportamento", diz Mariana Moura sobre a troca de galerias por parte dos artistas. "A gente prefere manter a situação assim como está pelo menos por um tempo, mas é claro que essas mudanças de galeria sempre vão existir."
Mas também serão sempre indesejadas caso o artista que decide romper a relação seja um nome rentável para a casa. "Relação artista-galerista é como casamento", resume a marchande Nara Roesler. "Se algum não quiser ficar mais conosco, e não é isso que eu sei, ele tem o direito de trocar de escuderia."
Sobre o fim da relação com Amanda Melo, Fabio Cimino, da Zipper, usou palavras que lembram mesmo um rompimento amoroso. "Cada um segue o seu caminho, cada um escolhe o melhor", afirmou o galerista. "Espero que ela seja feliz para sempre."
Lenora de Barros já disse se sentir às vezes no meio da relação entre os titãs Laura Marsiaj e André Millan. "Minha galeria-mãe é a Millan", conta a artista. "A Laura Marsiaj chegou a conversar comigo para mudar há uns anos, e eu disse não, mas isso tudo foi bacana, sem confusão."
Enquanto isso, Millan pretende fazer o caminho inverso, abrindo uma filial de sua galeria, uma das mais importantes do país, no Rio, sem descartar possíveis choques com algumas casas cariocas.
No caso, Amilcar de Castro e Miguel Rio Branco, dois dos nomes mais fortes do time da Millan, são representados no Rio pela galeria Silvia Cintra.
"Acho complicado o artista ter duas galerias na mesma cidade, é uma coisa sem sentido, não existe", diz Millan. "Mas não há uma regra, penso que deve haver sempre uma escolha do artista."
Fora da arena dos gigantes, pequenas galerias que surgem no cenário recrutam nomes novos para não estremecer relações de mercado, caso da galeria Transversal.
"A gente se preocupou em não pegar nenhum artista de outra galeria para não gerar inimizades", diz João Grinspum Ferraz, um dos sócios. "Tem uma resguarda ética."
Vik Muniz mostra seus primórdios em SP por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Vik Muniz mostra seus primórdios em SP
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 3 de março de 2011.
Exposição no Tomie Ohtake reúne obras do início da carreira do artista famoso pelas construções fotográficas
Entre as obras estão uma mala de chumbo maciço, um sarcófago de plástico e um Mickey espetado com pregos
Eram de outra ordem as construções de Vik Muniz. Antes das fotografias aéreas, as montagens de chocolate e diamantes, e bem antes da fama avassaladora que tem hoje, o artista inventou uma série de estranhos objetos.
Juntos numa exposição agora no Instituto Tomie Ohtake estão as relíquias dos primórdios da carreira, muitas delas só fabricadas depois que obras mais famosas garantiram a verba para a produção desses trabalhos mais ou menos engenhosos.
São imagens arquitetadas em sonhos, obras de outros artistas, imagens recalcadas na memória e cenas bizarras flagradas na realidade, como quando viu um homem vestido de palhaço bater o carro.
Só os pés daquele velho palhaço se deixam ver por baixo de uma enorme cortina verde no espaço expositivo, como um vulto espalhafatoso que espreita a sala. Da mesma forma que um lençol numa cama em miniatura parece ostentar uma ereção.
São potências risíveis e carnais, talvez o lastro dessa produção, que sublinham a obra do artista em formação.
Nesse ponto, ele remete às origens quando transforma numa espécie de fóssil as engrenagens de uma motocicleta que tinha na adolescência, funde em bronze uma bola de futebol murcha e manda costurar uma flor artificial que se curva em perpétuo estado de fenecimento.
Talvez esteja aí a chave para o que veio a fazer depois: buscar um grau de realidade maior, ou finalidade, para o efêmero, suas construções descartáveis de comida, entulho, arame ou até confetes.
Finalidade, no caso, é tentar dar corpo a um amontoado de formas disformes, à matéria banal que filtra do estado bruto para a representação tangível. Muniz faz então uma arqueologia dos sentidos que norteiam as obras, explicitando uma vontade obsessiva de classificação.
Num enorme mural, o artista cataloga imagens de borboletas recortadas de revistas. Também fotografa flores artificiais atribuindo a cada uma o nome científico da espécie. Ainda coleciona bonecas, como fetos desmembrados, em vidros de formol dispostos numa cristaleira um tanto tétrica à meia luz.
Muniz ilustra esse conhecimento taxonômico juntando num único volume maciço todos os tomos da "Enciclopédia Britânica", uma pilha de papel que rivaliza em peso com a mala de chumbo sólido que mandou fabricar.
Seu Mickey espetado com pregos do vodu e uma ampulheta cheia de tijolos presos no gargalo arrematam as tentativas, frustradas ou não, de atingir um quê iconoclasta.
março 2, 2011
Nova titular da Diretoria de Direitos Intelectuais diz que fiscalizar o Ecad seria intervenção do Estado no direito autoral por André Miranda, O Globo
Nova titular da Diretoria de Direitos Intelectuais diz que fiscalizar o Ecad seria intervenção do Estado no direito autoral
Matéria de André Miranda originalmente publicada no caderno Cultura do jornal O Globo em 2 de março de 2011.
RIO - Desde que assumiu o Ministério da Cultura (MinC), há dois meses, Ana de Hollanda vem deixando claro que um dos principais pontos de sua gestão será repensar a reforma da Lei do Direito Autoral, que vinha sendo preparada pelo governo Lula. Esta semana, a ministra deu o principal sinal de como o tema será tratado de forma diferente no novo governo: ela afastou Marcos Souza, titular da Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI) do ministério e coordenador da reforma, e nomeou para a função a advogada carioca Marcia Regina Barbosa, que foi diretora-executiva do antigo Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) no anos 1980 e, desde 1995, é servidora da Advocacia-Geral da União.
Ao GLOBO, Marcia afirmou ter sido chamada para o cargo por sua experiência técnica e por ser uma pessoa isenta na discussão. Ela acrescenta, ainda, que o projeto de reforma da lei pode ser refeito.
A senhora vai assumir a Diretoria de Direitos Intelectuais em meio a críticas pelo posicionamento da ministra Ana de Hollanda contra a reforma da Lei do Direito Autoral. O que a ministra lhe falou sobre suas posições acerca do tema?
MARCIA REGINA BARBOSA: Hoje (segunda-feira) nós tivemos nossa primeira reunião de trabalho. Toda essa polêmica em relação ao projeto de lei e à retirada do selo do Creative Commons do site do MinC é comum quando se discute direito autoral. A questão sempre gerou conflitos. A história do direito autoral mostra que, todas as vezes em que surgem novas tecnologias aparentemente pretensas a derrubar tudo o que era feito antes, o debate é lançado. E sempre aparece alguém para acusar o outro de estar destruindo a cultura.
O problema é que o debate está sendo realizado dentro do governo há pelo menos quatro anos. E a ministra já deu declarações que deram a entender que ela pretende começar tudo novamente.
Há algumas coisas que saem na mídia que não são bem assim. Outro dia li que a ministra teria tirado o projeto da Casa Civil, parando o processo de reforma. Só que essa devolução é normal numa mudança de gestão. Você sabe quando o projeto foi encaminhado para a Casa Civil? Apenas em 23 de dezembro de 2010. Não houve tempo hábil para se fazer nada com ele lá. Então entrou um novo governo, e a ministra começou a tomar pé da situação, para saber o que foi feito. O acervo gerado pelo debate dos últimos quatro anos foi grande, mas quem acompanhou a discussão sabe que as divergências também são muito grandes.
Então qual será o próximo passo do MinC?
Amanhã (terça-feira), eu vou me reunir com o Marcos Souza para tomar conhecimento do que estava sendo feito. A gestão do Marcos trouxe avanços, mas em toda mudança de gestão é preciso tomar a rédea das coisas antes de anunciar planos. A DDI tem projetos fantásticos com o pessoal da mídia livre, para aumentar o acesso à cultura, mas temos que achar um denominador comum entre esses projetos e os autores. Por isso, pode ser que façamos um novo projeto ou que montemos comissões para discutir pontos do atual. Mas imagino que não vamos gastar mais quatro anos para dar continuidade ao processo, porque já temos massa crítica suficiente para trabalhar. E não podemos nos esquecer que, depois, a grande batalha é no Congresso Nacional.
Um dos pontos mais discutidos do projeto de reforma que vinha sendo preparado pelo governo anterior se refere ao controle do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad. Qual é a sua posição sobre isso: o Ecad deve ou não ser fiscalizado pelo governo?
O Ecad foi criado porque, na época, eram quatro ou cinco associações querendo arrecadar ao mesmo tempo de um usuário. Foi uma grande sacada. O CNDA, em que eu trabalhei, tinha a função de fiscalizá-lo, e eu me lembro de ter intervindo duas vezes no Ecad. Mas, depois, parou-se de fiscalizar por um anseio da própria sociedade. Recentemente, no último contato que tive com o Ecad, fiquei encantada em ver como o escritório cresceu e se modernizou. Se houver um desejo da sociedade de que o Ecad volte a ser fiscalizado, precisamos debater. Mas é necessário medir isso bem porque, afinal de contas, seria o Estado intervindo no direito do autor. Todo mundo quer ter acesso aos bens culturais e acha que os autores têm obrigação de compartilhar sua obra, mas há pessoas que vivem e dependem desses direitos. Quem produz precisa ser remunerado.
Há informações de que seu nome foi indicado para a DDI por Hildebrando Pontes Neto, ex-presidente do CNDA e atual advogado do Ecad. É verdade?
Eu não tenho relação estreita com ele, mas trabalhei dez anos no CNDA, tanto com ele quanto com várias outras pessoas. Tenho minhas ideias, meus posicionamentos, muitos coincidem com os do Hildebrando, outros não. Não sei se foi ele que me indicou, mas reagiria bem a essa informação. No fundo, acho que fui escolhida por ser da AGU e trazer um aspecto técnico à DDI. A ministra queria alguém que conhecesse o tema e que fosse isenta. Tenho experiência no Judiciário e acho que posso ajudar. O momento é de bom senso.
Propriedade quase ilimitada por Pedro Venceslau, Revista Fórum
Propriedade quase ilimitada
Matéria de Pedro Venceslau originalmente publicada na Revista Fórum em maio de 2010.
A melhor maneira de entender o debate sobre a reforma da lei autoral no Brasil é fazer um jogo de “pode ou não pode”. Escutar música no IPod? Não pode. A cada música que você escuta no seu aparelho, dois crimes estão sendo cometidos: um por baixar no computador e outro por repassá-la ao aparelho. O máximo permitido é ouvir pequenos trechos ou ficar só no refrão. Fazer xerox de livro na Faculdade, pode? Poder, até pode, mas só um pedacinho. A questão, nesse caso, é: o que se entende por um pedaço? Varia, dependendo do interlocutor.
Para a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), por exemplo, trata-se de questão altamente filosófica, do tipo ser ou não ser. Uma simples página pode extrapolar o limite de “pequeno trecho” se ela contiver a essência do pensamento do autor. Mas e as outras 199 não extrapolam? Há quem seja mais específico e defenda que 10%, 20% ou até menos da metade do livro possa ser copiado sem grandes prejuízos. Pelo sim, pelo não, a associação acima citada promoveu uma ofensiva contra centros acadêmicos e copiadoras. Resultado: por medo, muitos simplesmente deixaram o negócio ou passaram para a ilegalidade. Um adendo: livros de autores como Platão e Sócrates podem ser copiados integralmente, já que caíram em domínio público. O difícil é listar isso.
E exibir um filme em sala de aula para os alunos, pode? Não, não e não. Nem mesmo os cursos de cinema podem mostrar filmes sem pagar uma taxa ao Ecad, o poderoso Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. Fazer adaptações teatrais na escola, pode? Pode, mas só dentro dela. Recentemente, uma escola pública decidiu transferir sua peça de fim de ano para a praça em frente, com intuito de que houvesse mais espaço para os pais. Receberam então uma visita do Ecad exigindo que fossem pagos direitos autorais. Música no dentista? Na academia? Na festa junina? Nada feito. A lei de direitos autorais em vigor no Brasil é uma verdadeira caixa de surpresas. Enquanto algumas destas distorções são decorrentes da velocidade alucinante do desenvolvimento das novas tecnologias, outras estão instaladas na sociedade devido à força do lobby da indústria. Para corrigir ambas, o Ministério da Cultura lançou, em 2007, uma ofensiva, que começou com o Fórum Nacional de Direito Autoral, e vai terminar com apresentação, para consulta pública, de um novo projeto de lei. No meio do caminho, o Minc promoveu mais de 80 reuniões e envolveu, direta e indiretamente, 10 mil pessoas no debate. Fórum ouviu especialistas, artistas e membros do governo para entender o que vai mudar e onde estão os nós da nova lei.
Entre o certo e o duvidoso O cerne da questão é quem está faturando com o quê. Comecemos com o caso do xerox. A ideia do projeto de lei do Minc é seguir o padrão europeu. Quem explica é Marcos Alves de Souza, diretor de direitos autorais do ministério: “Vamos resolver esse assunto na consulta pública e o consenso está muito distante. As editoras e a ABDR, por exemplo, não vão querer que deixem copiar nada. Por outro lado, a UNE e a Academia vão querer copiar tudo de graça. O que a gente quer propor é que a cópia possa ser feita para uso privado. Mas, se tiver um intermediário que ganha dinheiro com isso, é justo que ele remunere o autor. Para isso, seria criada uma gestão coletiva de direito reprográfico. Vou poder xerocar o livro todo, mas o dono do xerox terá que pagar uma taxa”. Ou seja: o xerox vai acabar ficando mais caro para o aluno? “Vai, mas é muito pouco. Isso não inviabilizou o xerox no resto do mundo. É um valor irrisório, na casa dos dois centavos”, conclui.
O que ocorre hoje é que o dono do xerox vive um dilema. Em várias universidades não se pode copiar nada, nem um pequeno trecho. Ou eles atuam na legalidade ou mudam de ramo. Outro ponto importante é que será permitido copiar integralmente discos ou livros que estejam com a edição esgotada, ou fora do catálogo e do mercado por um prazo de cinco anos. Já o caso do IPod será diferente. Pelo projeto, baixar música deixa de ser crime e ponto final. Mesmo aí há quem discorde. Em alguns países cobra-se uma pequena taxa extra de direito autoral na hora da compra do aparelho e, depois, repassa-se o lucro através de uma entidade de gestão. “A diferença em relação ao xerox é que no IPod você não usa intermediário. Ninguém está faturando com isso. Trata-se de uso privado, a não ser que você dê uma festa, use as músicas e cobre ingresso”, diz Marcos Souza.
Outro aspecto importante do projeto é regular a relação entre o criador da obra e a indústria do entretenimento. “A nova lei vai resolver algumas lacunas e problemas de redação da lei atual. Sempre se pensa no criador como alguém que fica em casa, produzindo, mas, hoje, grande parte do mercado trabalha com obra sob encomenda, especialmente na área publicitária. São jingles, filmetes e slogans. Isso está muito mal regulado. A lei é muito dependente de contrato, e a gente sabe que muitas vezes não se faz contrato”, explica Manoel Pereira dos Santos, professor e coordenador do curso de especialização em propriedade intelectual da FGV.
Um exemplo hipotético. Uma agência de publicidade contrata um músico para produzir um jingle para a Coca-Cola. A quem pertence o direito dele? Há muita discussão sobre isso e, como a lei não fala nada, faz-se um contrato. “O projeto vai definir isso e regular. Uma boa regra seria que, se a empresa contratou o músico e ele fez o jingle, então pode usar sempre em suas campanhas, mas não em outros produtos. O ministério deu a entender que vai regular nesse sentido: se eu encomendei, então uso só para isso. Com a internet e a difusão maior das obras isso se agravou. As obras circulam muito mais. Virou um problema sério”, diz o professor da FGV. A nova lei deve, ainda, definir regras claras para as chamadas “obras orfãs”, que é quando não se consegue localizar o autor, nem os herdeiros. Quem se arrisca a usar o material nessas circunstâncias corre o risco de ser acionado na Justiça a qualquer momento. “Nesses casos, vamos atuar para evitar abuso de direito. A ideia é criar a licença não voluntária. No caso de abuso de direito, o prejudicado pode apresentar uma denúncia. Mediante um processo legal, se estabelecerá uma licença tendo como base os usos e costumes. O poder público vai definir”, explica o representante do ministério.
Muitos intelectuais lamentaram que o projeto de lei não tenha avançado em um ponto: o tempo que uma obra demora para cair em domínio público. A lei prevê 70 anos depois da morte do autor. “Isso quer dizer o seguinte: se o autor faz a obra aos vinte e morre aos noventa, são 140 anos de espera. É uma duração completamente desproporcional. Eu gostaria que isso fosse revisto. É preciso pensar em outras formas esses prazos. Mas em Portugal também é assim por imposição da Comunidade Europeia. Isso, aliás, foi uma consequência negativa da integração ao mercado comum europeu”, lamentou para Fórum o professor J.Oliveira Ascensão, especialista em direito autoral, catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa e considerado o papa desse tema na Europa. “Não vai mudar o tempo de domínio público, que é de setenta anos. Isso seria uma guerra. Haveria muitos problemas para implementar”, conclui Marcos Souza.
Polêmica à vista Trem da alegria, empreguismo estatal, estatização do direito autoral. Antes mesmo do projeto de reforma da lei ter sido enviado para consulta pública, o Ecad já havia preparado um arsenal retórico para combater a mudança. Para quem não o conhece, trata-se do poderoso Escritório Central de Arrecadação e Distribuição. Apesar de ser uma sociedade civil de natureza privada, é ele que controla a arrecadação e a distribuição de recursos provenientes de direito autoral no Brasil. A revolta se deu porque o ministro da Cultura Juca Ferreira ousou mexer em um vespeiro. A redação da nova lei prevê a criação do Instituto Brasileiro de Direito Autoral, um órgão público que terá a missão de fiscalizar e dar transparência ao trabalho das entidades arrecadadoras. A fim de organizar a ofensiva, o grupo criou uma entidade, o Conselho Nacional de Cultura e Direitos Autorais. O objetivo, segundo eles, é “mostrar que a nova regulamentação eleva o risco de estatização dos direitos autorais e do sistema de arrecadação”.
O curioso é que foi justamente um deputado tucano, Bruno Covas, quem presidiu a CPI do Ecad da Assembleia Legislativa de São Paulo no ano passado. Depois de meses de investigação, a comissão concluiu que “os direitos autorais ligados à música estão em estado institucional anárquico em razão da falta de poder de normatização, supervisão e fiscalização do Estado”. Segundo o relatório final da CPI, esta "anarquia" permite ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) “exorbitar das suas obrigações financeiras, legais e estatutárias, dando origem a irregularidades e indícios de crimes como falsidade ideológica, sonegação fiscal, apropriação indébita, enriquecimento ilícito, formação de quadrilha, formação de cartel e abuso de poder econômico”.
Na prática, o escritório deixaria de operar como a CBF, por exemplo. E teria que dar satisfação ao Estado. “O que o Minc quer fazer é criar um órgão que opere como agência reguladora, como a Anac e a Anatel, que não substituem o Judiciário. Isso daria mais confiança e mais tranquilidade”, explica o professor Manoel Pereira, da FGV. “É mais ou menos isso, uma agência como a Anac. A diferença é que os aeroportos são do Estado e as obras não são nossas. São privadas e vão continuar sendo. Mas de fato é como ter um ente regulador. O Ecad vai fazer tudo como faz hoje, mas com regras e transparência. É preciso que a transparência seja um pilar, assim como é necessário definir quais critérios devem ser seguidos e que o pagamento corresponda ao efetivo uso da obra. É assim no mundo inteiro. Esse provavelmente será o ponto mais problemático do projeto”, pondera Marcos Souza, do Minc. “É uma vergonha. É o Estado interferindo naquilo que é um direito claramente privado”, protestou Roberto Mello, presidente da Associação Brasileira de Música e Arte (Abramus), durante ato no dia 8 de abril. Até o fechamento dessa edição, o projeto ainda não havia sido colocado em consulta pública (apesar de o prazo inicial do Minc ser meados de abril). Ainda assim o ministério aproveitou o I Seminário de Políticas Públicas para a Digitalização de Acervos Digitais, em São Paulo, para fomentar o debate. O Ecad, claro, faltou ao evento.
Curiosidades autorais Você sabia que...
– Pela lei atual, um exemplar único de obra rara de uma biblioteca não pode ser xerocado, ainda que esteja sendo comido por traças?
– Academias de ginástica e consultórios dentários são obrigados a pagar direitos autorais ao Ecad?
– É proibido cantar músicas em lugares públicos?
– A família de Vinícius de Morais liberou a obra para domínio público?
“O Ecad arrecada bem e distribui mal”
Além de pianista, arranjador e autor teatral, Tim Rescala é produtor musical da Globo desde 1988 e um dos profissionais mais requisitados desse mercado. Entre outros trabalhos, estão produções como “Hoje é dia de Maria”, “Escolinha do Professor Raimundo” e “Zorra Total”. Crítico do Ecad, ele foi processado pelo escritório por tê-lo chamado de “caixa preta” em entrevista a um jornal. Nessa entrevista para Fórum, ele avalia (e defende) o projeto do Minc, além de passar a limpo o sistema de arrecadação de direitos no Brasil.
Fórum – Você apoia a reforma de lei de direito autoral?
Tim Rescala – Essa reforma não só é oportuna como é urgente. E devia ter acontecido antes. O cenário atual se mantém há décadas e piorou com a revisão da lei em 1998. A lei brasileira é sui generis no mundo.
Fórum – Acha que o Ecad deve ser fiscalizado?
Tim – O Ecad arrecada bem e distribui mal. Todas as sociedades de gestão de coletiva do mundo têm supervisão estatal. No Brasil, por conta da revisão de 98 e em consequência de muito lobby, manteve-se o monopólio do Ecad na arrecadação e distribuição. Eles têm esse direito, por lei, e, ao mesmo tempo, não são fiscalizados. Trata-se de uma empresa privada. Essa situação é absurda. O governo tem a obrigação de fiscalizar. Se tem monopólio, tem que admitir fiscalização.
Fórum – Você recebe do Ecad todo dinheiro a quem tem direito?
Tim – Não recebo. Meu dinheiro foi tungado, assim como o de todos os autores do audiovisual. Desde 2001, meu recebimento foi reduzido em 1/12 avos.
Fórum – Como é sua relação com o Ecad hoje?
Tim – Eu disse, em uma entrevista ao O Globo, que o Ecad é uma caixa preta. Estou sendo processado por isso, mas também estou processando eles.
Fórum – Como funciona a arrecadação?
Tim – A Globo, por exemplo, tem um contrato com o Ecad. Ela paga (por ano) por todo o repertório. Dentro desse repertório estão as minhas músicas e a de todo mundo. Então a emissora tem direito patrimonial. Ou seja: não posso exibir em outra emissora, mas o direito autoral é meu. Cabe ao Ecad repassar isso.
Fórum – De quanto é esse contrato com a Globo?
Tim – Era de R$ 3,9 milhões. Mas (o Ecad) reduziu nosso recebimento.
Fórum – Por quê?
Tim – Porque a Globo e o Ecad estão brigando na Justiça. Eles pediram 2,5% do faturamento bruto da empresa. Funciona assim: o Ecad pede o quanto quiser. Aí começou a briga jurídica e a Globo passou a pagar em juízo. Mesmo assim, eles conseguem receber 90% do dinheiro. Só que estão pagando 12 vezes menos que em 2001.
Fórum – Como é formado o Ecad?
Tim – Por dez sociedades (de autores). Seis são efetivas e quatro não têm direito a voto. A lei exige que seja assim. As sociedades competem entre si, oferecem adiantamento para o autor sair de uma ir e para outra. Acusam-se mutuamente de aliciamento. Vivem se acusando de ilícito criminal. É um dinheiro muito fácil de ganhar. Os autores não têm como reclamar. Manda mais quem arrecada mais. Antes, a Abramus era mínima. Ela foi fundada por Wilson Sandoli, da Ordem dos Músicos de São Paulo. Pesquise no Google para saber quem ele é... Hoje, a Abramus é a mais forte.
Fórum – O Ecad diz que a nova lei se caracteriza por intervenção estatal e empreguismo...
Tim – Eles querem caracterizar como intervenção estatal, mas isso é desviar do cerne da questão. O autor prejudicado vai reclamar a quem? Ao Estado ou a uma empresa privada? O que o Estado vai fazer é fiscalizar. É um dever. Tem que fazer isso. Quem paga reclama que paga muito, como a Globo, e quem recebe, reclama que recebe pouco. Tem algum erro aí, né? Já o Ecad sempre comemora recorde de arrecadação. Compositores de nome passaram ou passam dificuldade como o Johnny Alf, o Walter Alfaiate.
Fórum – O que mudou na relação entre os autores a as gravadoras com o fenômeno da internet?
Tim – As gravadoras que não se interessavam por direitos autorais passaram a se interessar, com o fenômeno da internet e do download, que abalou muito o mercado. Eles perderam muito dinheiro. As gravadoras hoje em dia se ocupam muito de empresariar o artista. Antes, o dinheiro principal deles era com venda de discos. Hoje, é com direito autoral. Os contratos são leoninos e para a vida inteira. São perenes. O autor, que normalmente está sem dinheiro, recebe um adiantamento que nunca consegue pagar. Então passa a vida preso à editora-selo, que pode ou não divulgar sua obra. Existem casos em que o autor libera o direito para uma obra didática, por exemplo, mas a editora não. O autor nunca se nega quando tem fundo educacional. Mas a editora não abre.
Fórum – Como era essa relação antes?
Tim – Os empresários dos artistas não eram necessariamente ligados a gravadoras. Hoje, são. Elas estão fazendo o papel dos empresários. Estão tentando sobreviver de alguma forma. Eles viram que no direito autoral circula muito dinheiro.
Na Cultura, a primeira crise do Ministério de Dilma por André Miranda e Catarina Alencastro, O Globo
Na Cultura, a primeira crise do Ministério de Dilma
Matéria de André Miranda e Catarina Alencastro originalmente publicada no caderno País do jornal O Globo em 1 de março de 2011.
RIO e BRASÍLIA - Em apenas dois meses de nova gestão, o Ministério da Cultura (MinC) já passa por uma crise institucional que pode derrubar um presidente de fundação e que tem feito com que setores artísticos se voltem contra medidas da ministra Ana de Hollanda. No centro dos problemas estão críticas feitas à ministra pelo sociólogo Emir Sader , anunciado como novo presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa; a intenção explícita do MinC em não dar continuidade à política do governo Lula referente aos direitos autorais; e a insatisfação de parte do PT.
Dentro do MinC, o clima é de apreensão. Sader, cuja nomeação para a Casa de Rui Barbosa ainda não foi publicada no "Diário Oficial", chamou Ana de Hollanda de "autista" em entrevista ao jornal "Folha de S. Paulo" e disse que ela não reagiu aos cortes orçamentários. Sader também teria manifestado intenção de transformar a fundação num centro de debates sobre "o Brasil para Todos", um slogan do governo Lula. A ministra ainda não anunciou o que fará em relação a Sader, mas fontes no MinC dizem que ele pode ser demitido nos próximos dias.
Nesta terça-feira foi a vez de o coordenador da campanha da presidente Dilma Rousseff na internet, Marcelo Branco, se manifestar via Twitter. Defensor da reforma da Lei do Direito Autoral que vinha sendo preparada pelo governo Lula há quatro anos e que está sendo abandonada pelo governo Dilma, Branco usou o microblog para atacar a ministra. Ele reclamou que a substituição do titular da Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI), Marcos Souza, foi um "retrocesso".
"Pois é, parece que caiu a máscara da ministra", publicou Branco. E seguiu: "Ministério da cultura do atraso. Queremos continuidade das políticas de Lula." Suas declarações foram propagadas no microblog, onde seguidores acusaram a ministra de não ouvir a sociedade civil nem os artistas.
No lugar de Souza, a DDI será dirigida por Marcia Regina Barbosa, servidora da Advocacia-Geral da União, e ligada a Hildebrando Pontes Neto, advogado do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), uma das principais instituições contrárias à reforma da lei.
Sader, procurado nesta terça-feira, disse que preferia não se manifestar. A ministra também não se pronunciou. Em seu lugar, o secretário-executivo da pasta, Vitor Ortiz, tentou minimizar a crise:
- Tenho certeza de que o desejo da sociedade brasileira não é que a gente fique colocando uns contra os outros em termos de direito autoral, mas sim que saiba fazer no MinC a discussão dos temas polêmicos da sociedade com grandeza, maturidade e tranquilidade - afirmou ele, por meio de sua assessoria. - Ela (Marcia) é uma pessoa muito aberta, que vai querer dialogar com todo mundo. Todos serão ouvidos. Não cabe nenhuma "demonização" do assunto. Isso é muito importante para que o tema possa avançar.
março 1, 2011
Racha agita área de direitos do Minc por Jotabê Medeiros, O Estado de S. Paulo
Racha agita área de direitos do Minc
Matéria de Jotabê Medeiros originalmente publicada no caderno Cultura do jornal O Estado de S. Paulo em 1 de março de 2011.
Servidores ameaçam demitir-se em protesto contra saída de Marcos Souza, da direção de Direitos Intelectuais
Um racha atingiu ontem a Diretoria de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura em Brasília. A internet foi tomada com diversas manifestações de protesto pela exoneração do diretor da área, Marcos Alves de Souza. O imbróglio deve se radicalizar: 16 pessoas ameaçam afastar-se daquele setor do ministério nos próximos dias, segundo informações obtidas pelo Estado.
O Ministério da Cultura ofereceu a Souza, especialista jurídico em direitos de autores e um dos principais consultores do novo anteprojeto da reforma da Lei de Direitos Autorais, a possibilidade de assumir outra função na Diretoria de Direitos Intelectuais, mas ele recusou. Em seu lugar, foi nomeada a advogada carioca Marcia Regina Vicente Barbosa, de 56 anos, que integrou o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) entre 1982 a 1990. Advogada da União, Marcia foi integrante da Consultoria Jurídica do Ministério da Cultura, de 2006 a 2010, e integra a Consultoria Geral da União desde maio de 2010.
O setor de direitos intelectuais do ministério foi organizado durante a gestão de Gilberto Gil/Juca Ferreira - a área, desde a extinção do CNDA, no governo Collor, estava praticamente sendo tocada por uma só pessoa no governo federal, de forma precária. Alguns apontam que, por trás da mudança de gestão, está uma clara inclinação da nova gestão pendendo à defesa irrestrita do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos (Ecad).
Marcia Regina Vicente Barbosa é amiga do advogado Hildebrando Pontes, considerado um defensor extremado das teses do Ecad. Ela foi secretária executiva do CNDA quando Hildebrando Pontes foi presidente.
O motivo da ameaça de demissão coletiva, segundo informaram servidores do MinC, foi a nova orientação dos direitos autorais do ministério, levada adiante pela ministra Ana de Hollanda. Além de resolver revisar o anteprojeto de lei que reforma os direitos autorais, Ana declarou esta semana à revista Isto É que o debate foi insuficiente - o MinC discute a reforma há 3 anos, e fez 80 encontros nacionais, 7 seminários e pesquisas nas legislações de 20 países. Depois disso, o anteprojeto ainda ficou em consulta pública pela internet, que durou 79 dias e recebeu 8.431 sugestões.
Marcos Souza foi um dos principais alvos dos opositores da reforma a partir de 2009, quando vazou o primeiro esboço do anteprojeto de lei dos direitos autorais. Ele se bateu contra associações como a Abramus e a Academia Brasileira de Letras, que não concordam com o texto. Foi o incumbido de separar as contribuições durante a fase de consulta pública, e sempre disse que a ideia não se destinava a "colher manifestações de caráter plebiscitário", mas aperfeiçoar e enriquecer o texto.
A Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI) é vinculada à Secretaria de Políticas Culturais (SPC) do Ministério da Cultura. É responsável pela formulação e gestão da política brasileira sobre bens intelectuais no que diz respeito a direitos autorais e conexos. Sua atuação extrapola os limites do País - participa de fóruns mundiais na defesa dos interesses do Brasil, além de assessorar o governo federal na adequação da legislação nacional às convenções e tratados internacionais ratificados pelo País.
Marcos Alves de Souza, que veio do Ministério do Planejamento, não polemizou em sua saída. Localizado ontem pelo Estado, comentou apenas que acha "legítimo" que a nova dirigente do MinC escolha pessoas de sua confiança para cargos de confiança. "É legítimo, da mesma forma que é legítimo que eu não tenha interesse em continuar na equipe da Marcia. Espero continuar ajudando o governo em outro ministério", disse.
ENTENDA A QUESTÃO
Novembro de 2009
Imprensa obtém minuta de
projeto de lei que o MinC pretendia levar ao Congresso
Julho de 2010
Associações como Abramus, Ecad, ABL manifestam desagrado, dizendo que é avanço do Estado sobre direitos privados do autor
Setembro de 2010
MinC acusa opositores do projeto de estarem plantando "sugestões" negativas na internet para desqualificar debate
Janeiro de 2011
Ministra decide retirar selo do Creative Commons do site do MinC, o que provoca milhares de protestos no Brasil e no Exterior
Fevereiro de 2011
Ex-ministro Gil diz que atos da nova gestão são "apressados"
Giro pela arte contemporânea por Ana Cecília Soares, Diário do Nordeste
Giro pela arte contemporânea
Matéria de Ana Cecília Soares originalmente publicada no Caderno 3 do jornal Diário do Nordeste em 1 de março de 2011.
Em entrevista exclusiva ao Caderno 3, o curador e crítico Agnaldo Farias tece reflexões sobre a arte contemporânea a partir de experiências recentes dele na área
Em Fortaleza para integrar a comissão de seleção de artistas para participar do 62º Salão de Abril, o crítico de arte e curador geral do Rumos Artes Visuais (2011-2013), do Itaú Cultural, Agnaldo Farias, conversou com exclusividade com a equipe do Caderno 3 sobre algumas das principais atividades a que vem se dedicando nos últimos tempos.
O curador destaca como funcionará o mapeamento de artistas para o Rumos. Projeto o qual ele acredita ser importante para estimular a produção artística em todo o Brasil.
"A estrutura que tenho sob a minha coordenação são quatro curadores. Estes, por sua vez, são responsáveis pelas regiões do País, e têm sob a sua coordenação dois curadores-mapeadores. São pessoas da própria região que têm conhecimento da área e do meio artístico do lugar", diz. Paralelo ao mapeamento, haverá também uma série de debates, seminários e workshops, para que os interessados conheçam o edital e se inscrevam. O programa não é só destinado aos artistas, mas também a pesquisadores da área.
"Não haverá um número determinado de artistas selecionados por região. Escolheremos em torno de 50. A ideia é acolhermos trabalhos com qualidade. O Rumos propicia aos contemplados a oportunidade de aprimoramento profissional por meio de ações formadoras, como concessão de bolsas de estudo, participação em palestras e ações de difusão através de exposições". Ao contrário da edição passada, cuja temática foi "Trilhas do Desejo", Agnaldo adianta que não vai determinar uma linha a seguir. Ele quer deixar o tema livre.
A 29ª Bienal de São Paulo também foi um assunto falado por Agnaldo Farias, que assinou, junto a Moacir dos Anjos, o projeto curatorial do evento, realizado no segundo semestre do ano passado.
Balanço
"Foi uma experiência interessante; conseguimos reunir artistas de várias partes do mundo. Foram cerca de 850 obras de 159 artistas. Tirando o sensacionalismo dado pela cobertura da imprensa (pela qual já perdi a esperança!), acho que essa foi uma edição importante que teve como a ´menina dos olhos´ um investimento forte no setor educativo. Conseguimos mobilizar um número significativo de educadores", conta.
O projeto educativo da Bienal contou com a curadoria de Stela Barbieri, artista plástica e educadora. Ele foi estruturado em três etapas, incluindo ações antes, durante e depois da mostra. As atividades foram divididas em formação de educadores de ONGs e das redes pública e privada de São Paulo, interior e outros Estados, totalizando cerca de 30 mil atendimentos; integração de artistas com comunidades; formação de 300 educadores para atendimento ao público durante a exposição, organizada em parceria com 22 instituições culturais paulistas.
"A educação é a base de tudo. Nós somos muito carentes nesse campo. Agora é que as escolas terão em sua grade curricular o ensino de música, mas nós não temos uma disciplina voltada para a compreensão da imagem. Uma vez que fazemos parte de uma sociedade imagética. Acho que cabe às instituições investirem mais nessas iniciativas".
Para o curador, outro destaque da última Bienal foi a proposta dos terreiros, que consistiam em espaços de discussão para o público interagir e participar. "Os seis terreiros foram projetados por artistas e eram usados para atividades diversas, como shows, projeções, performances e leituras. Era uma forma que encontramos de fazer do público protagonista".
62º Salão de Abril
No último fim de semana, o curador participou do júri de seleção do Salão de Abril, cuja exposição acontecerá de 15 de abril a 31 de maio. Segundo ele, um dos motivos para aceitar o convite é o interesse em ampliar o seu conhecimento sobre a produção local. "Pelo que andei vendo dos trabalhos inscritos no Salão, posso dizer que temos produções de boa qualidade. Acho que vamos ter uma bela exposição pela frente. Eu e meus companheiros de seleção priorizamos os trabalhos mais criativos", diz.
Veja a lista dos selecionados para o 62º Salão de Abril no blog Salões e Prêmios.
Ana de Hollanda nomeia advogada ligada a representante do Ecad para o MinC e indica que vai abandonar a reforma da lei de direito autoral por André Miranda, O Globo
Ana de Hollanda nomeia advogada ligada a representante do Ecad para o MinC e indica que vai abandonar a reforma da lei de direito autoral
Matéria de André Miranda originalmente publicada no caderno Cultura do jornal O Globo em 1 de março de 2011.
Após dois meses de especulação, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, deu o principal sinal de que vai abandonar a reforma da Lei de Direito Autoral, um dos principais pontos defendidos pela política cultural do governo Lula. Ana afastou Marcos Souza da gestão da Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI) do Ministério da Cultura (MinC), órgão responsável por coordenar a reforma, e convidou Marcia Regina Barbosa, servidora da Advocacia-Geral da União, para o cargo. Souza era o principal defensor dentro do governo da necessidade de se continuar o processo da reforma da lei, cujos debates são promovidos pelo governo desde 2007.
O nome de Marcia teria sido indicado para o MinC por Hildebrando Pontes Neto, ex-presidente do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), órgão que regulou o setor entre 1973 e 1990, até ser extinto. Após deixar o governo, ele vem advogando em mais de cem processos para o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad, uma instituição que conglomera associações de compositores e músicos e que sempre foi contrária à reforma. Entre as dezenas de pontos que o Ecad critica, o principal é a criação de uma instância que regulamentaria as ações do escritório, hoje com autonomia para recolher e distribuir direitos autorais.
Em janeiro, era dada como certa dentro do MinC a nomeação de Hildebrando para a DDI. Ana de Hollanda chegou a se encontrar com o advogado do Ecad no dia 27 de janeiro, numa reunião oficial em Brasília, gerando especulações em redes sociais e reações de grupos a favor da reforma da lei. Mas o MinC negou que Hildebrando fosse assumir o cargo.
Até que, há dez dias, foi publicada no Diário Oficial a cessão de Marcia de sua função como advogada da Consultoria-Geral da União para a DDI. Na última sexta-feira, Marcos Souza, titular da DDI desde sua criação, em 2009, coordenador da revisão do projeto, foi informado de que seria substituído na direção do órgão. Ana de Hollanda convidou Souza a continuar no MinC, mas ele não aceitou e vai voltar ao Ministério do Planejamento, onde é especialista em gestão de políticas públicas, à espera de uma nova função.
- É prerrogativa do dirigente escolher as pessoas para o cargo de confiança, é normal a mudança - diz Souza. - Mas eu tenho muita convicção a respeito do trabalho que foi executado pela DDI. Direito autoral não é fácil. Não é fácil agradar todo mundo. Mas foi um trabalho sério, honesto. O meu maior lamento é sair sem dar um retorno para a sociedade do que fizemos. Agora, espero poder ajudar o governo em outra área.
A reforma da Lei do Direito Autoral (a 9.610, de fevereiro de 1998) começou a ser debatida em 2004. Três anos depois, o então ministro da Cultura Gilberto Gil lançou o Fórum Nacional de Direito Autoral, cujo objetivo era discutir com a sociedade a necessidade de se revisar a Lei. O governo promoveu oito seminários nacionais, um internacional e mais de 80 reuniões, e a reforma era vista como prioridade tanto por Gil quanto por Juca Ferreira, ministro de julho de 2008 até o fim do ano passado.
De 14 de junho e 31 de agosto de 2010, o projeto foi posto em consulta pública, onde pôde receber sugestões de interessados. Mais de oito mil ideias foram analisadas pela DDI e discutidas pelo Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual, antes que uma proposta fosse enviada para apreciação da Casa Civil. Ana de Hollanda não quis falar ao GLOBO sobre as mudanças na DDI. Mas, neste fim de semana, ela deu uma entrevista à revista "Isto É Dinheiro", em que disse: "Ainda nem consegui ler o texto que foi mandado pela Casa Civil, nem acho que seja o caso, porque não sou eu que vou analisar. Minha responsabilidade é de ministra".
- Eu não acho que a ministra esteja má intencionada, mas acho que existe uma precipitação de se tomar a posição de um lado sem consultar a própria classe - afirma o músico Ivan Lins. - Parece-me que ela está sendo usada por pessoas próximas e que têm interesses em impedir que se mude a legislação autoral.
fevereiro 28, 2011
Não há como distribuir cultura sem o direito autoral por Rodolfo Borges, Istoé Dinheiro
Não há como distribuir cultura sem o direito autoral
Matéria de Rodolfo Borges originalmente publicada no caderno Economia da revista Istoé Dinheiro em 25 de fevereiro de 2011.
Nenhuma das trocas de ministro deste ano foi mais ruidosa do que a substituição de Juca Ferreira por Ana de Hollanda, no Ministério da Cultura.
Antes mesmo de tomar posse, a ministra, até então mais conhecida como irmã do compositor Chico Buarque de Hollanda, anunciou a revisão do anteprojeto da nova Lei de Direitos Autorais, que prevê maior acesso do consumidor à obra de autores e artistas.
A lei atual é de 1998 e está defasada diante de novidades como a profusão de músicas na internet. Por isso, a revisão da legislação começou a ser debatida ainda quando o cantor Gilberto Gil ocupava a pasta da Cultura (2003-2008) e se intensificou com Ferreira, recebendo contribuições nas sessões de consulta pública.
Uma das maiores polêmicas da proposta elaborada na gestão passada era a figura da licença não voluntária, que permitia ao presidente da República autorizar a autorizar o uso de obras artísticas sem a anuência da família do autor já falecido.
A criação da licença pretendia impedir que os herdeiros de artistas dificultassem a exposição ou reprodução de suas obras – o autor vivo não teria sua vontade questionada.
O anteprojeto também autorizava a dispensa de pagamento de direito autoral em alguns casos, especialmente para fins didáticos. Mas, para alguns representantes da área cultural, brechas como essa podem prejudicar os artistas.
“A democratização da cultura não pode passar por cima do direito autoral”, disse a ministra à DINHEIRO. Em 2009, último dado disponível, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) arrecadou R$ 374 milhões só na área musical.
DINHEIRO – O anteprojeto que cria a nova Lei de Direitos Autorais foi fruto de 80 reuniões setoriais, sete seminários nacionais e do estudo da legislação de 20 países. Por que revê-lo?
ANA DE HOLLANDA – A discussão não se esgotou. Quando o Ministério colocou em sua página da internet uma proposta de lei, a maior parte das posições era de questionamento. O que foi enviado à Casa Civil pelo antigo ministro nos foi devolvido, como todas as propostas enviadas no fim do governo anterior. Tenho de rever o projeto e mandar de volta. Como o texto enviado à Casa Civil não era exatamente o mesmo que estava no site, eu não tinha como endossar a proposta. Vamos fazer essa análise.
DINHEIRO – Como vocês pretendem avançar na discussão?
ANA – Vou montar uma equipe de consultores e juristas com visões diversas. Que-remos chegar a uma proposta que atenda à demanda da área criativa, que é a que mais se mostrou insatisfeita com as mudanças apresentadas, e do resto da sociedade.
DINHEIRO – Há algo que a incomodava particularmente no anteprojeto?
ANA – Não. No geral, acho que o projeto merece uma discussão maior, porque só o fato de ter um percentual muito grande de insatisfação em relação a ele é suficiente para isso. Ainda nem consegui ler o texto que foi mandado pela Casa Civil, nem acho que seja o caso, porque não sou eu que vou analisar. Minha responsabilidade é de ministra.
DINHEIRO – Seu posicionamento foi encarado como tendencioso, favorável ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), que arrecada os direitos de reprodução musical.
ANA – Isso não é justo. A Academia Brasileira de Letras, a Câmara Brasileira do Livro e outros setores que não têm ligação nenhuma com a música também rejeitaram o anteprojeto. Assim como muita gente das áreas de fotografia, design, cinema e artes gráficas reclamou da forma como estava a lei. O Ecad é uma dessas associações que reclamaram. Não represento o Ecad. Faço parte de uma associação de músicos e compositores porque isso é obrigatório. Qualquer pessoa que trabalha na área de música tem de estar ligada a uma associação, e o ex-ministro Gilberto Gil também estava.
DINHEIRO – Qual o objetivo prático da secretaria?
ANA – O primeiro objetivo é medir a economia criativa com mais clareza, para podermos dimensionar seu peso no PIB. Nossas medições são bem antigas. Um estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro ( Firjan), de 2006, estima que a cadeia criativa responde por 16,4% do PIB local, mas esse dado se restringe ao Rio. Vamos fazer um estudo como esse para medir a economia como um todo, que ainda é muito informal. Imagino que tenhamos esse quadro mais claro dentro de um ano. Esse é um dado fundamental para o Estado redimensionar sua política em relação ao mundo da cultura. A informalidade é um problema. Já quando falamos da indústria criativa temos uma noção mais clara, porque o trabalho é formal. Nesse universo, arquitetura, moda e design são a maior parcela da cadeia, com 82,8% do mercado, 82,5% dos estabelecimentos e 73,9% da massa salarial. Isso representa um peso muito grande. São os setores mais bem organizados da economia criativa.
DINHEIRO – Como a sra. chegou ao nome de Cláudia Leitão para essa secretaria?
ANA – Ela tinha sido secretária de Cultura no Ceará, mas eu vinha acompanhando seu trabalho na área de economia criativa. Ela esteve na Austrália fazendo um trabalho muito interessante e realizou um estudo na região do Cariri, no interior do Ceará, nesse sentido. A secretaria vai ser transversal a todo o trabalho do Ministério da Cultura.
DINHEIRO – A retirada do selo Creative Commons, que disciplina a reprodução gratuita de conteúdo, do site do MinC causou polêmica no meio digital, porque foi visto como um retrocesso no estímulo ao compartilhamento de informações pela internet. O que baseou a decisão?
ANA – A questão do selo é administrativa. Não havia contrato ou licitação que justificasse a presença no site do ministério. Não é uma questão política. Eu respondo pela página oficial do ministério, que não é o mesmo que um blog.
DINHEIRO – O orçamento do ministério, de R$ 2,5 bilhões, é suficiente?
ANA – O orçamento é bem maior do que antes (em 2003, por exemplo, o orçamento era de R$ 287 milhões). Claro que o ministério cresceu muito nesses anos, mas as demandas são maiores. Existem as emendas parlamentares, que atendem a alguns projetos específicos. Mas só agora, que foram anunciados cortes, vamos lidar com a questão orçamentária.
DINHEIRO – O Programa Nacional de Fomento à Cultura (Procultura), que substitui a Lei Rouanet (dá incentivos fiscais a empresas que patrocinam cultura), ja foi encaminhado ao Congresso. Ele soluciona os gargalos identificados depois de 20 anos de Lei Rouanet?
ANA – No Procultura existe um favorecimento maior para o Fundo Nacional de Cultura (o fundo que recolhe os recursos da renúncia obtida pela Lei Rouanet). É uma grande vantagem em relação à legislação anterior. Representa uma possibilidade maior na forma de dedução para o fundo nacional, que vai ser gerido de uma forma mais democrática, passando pelas comissões de cultura. Tudo isso já está previsto para a seleção de projetos prioritários, uma evolução em relação à simples vinculação do patrocinador com o patrocinado, que deixava a seleção muito na mão dos patrocinadores. O ministério estava um pouco ausente, o que prejudicava as políticas culturais de áreas hoje menos favorecidas.
De volta para casa por Nina Gazire, Istoé
De volta para casa
Matéria de Nina Gazire originalmente publicada na Istoé em 25 de fevereiro de 2011
Welcom e Home - gUI Mohallem/ Galeria Emma Thomas, SP/ até 19/3
Para um fotógrafo, uma câmera significa um prolongamento, uma extensão de suas capacidades. Seu olhar é ampliado pelo dispositivo e, consequentemente, aquilo que é visto se torna vulnerável aos critérios dessa lente. Mas é possível que os papéis se invertam neste jogo? Que o fotógrafo, de repente, se torne o alvo do objeto que pretende fotografar? Essas são algumas das questões que o artista gUI Mohallem coloca em sua recente série denominada “Welcome Home”. Em 2009, quando se encontrava nos Estados Unidos para uma série de trabalhos, gUI resolveu fazer um retiro e visitou um santuário queer no Tennessee. “O santuário é um lugar de retiro, de refúgio. O lugar não passa por um crivo institucional. E a palavra queer, originalmente, tem a ver com a ideia de ‘estranho’. Antigamente, ela era usada em um sentido pejorativo para definir homossexuais. Boa parte desse santuário é uma comunidade feita de pessoas que se consideram queer, mas não necessariamente são gays”, explica Mohallem.
Em 2010, ele retornou ao local com o objetivo de registrar um festival em comemoração ao início da primavera. O exercício proposto foi o de confrontar-se com o “estranho”, o que modificou o seu olhar diante da câmera. “Antes, eu fotografava pessoas que não sabiam que estavam sendo fotografadas. A fotografia era um gesto secreto e as fotos não eram necessariamente sobre as pessoas que nela apareciam. A experiência do santuário me trouxe uma postura de vulnerabilidade na fotografia. O que você faz quando a pessoa sabe que está sendo fotografada?”, se pergunta o artista. A resposta para a questão são as próprias fotos de Mohallem.
As imagens apresentam a comunhão de pessoas em um cenário bucólico e secreto, com enorme cautela e delicadeza, nos lembrando que fotografar nunca é um gesto de solidão e sempre um gesto duplo: no qual aquilo que é registrado também acaba por se oferecer ao olhar do fotógrafo.
A quatro mãos por Paula Alzugaray, Istoé
A quatro mãos
Matéria de Paula Alzugaray originalmente publicada na Istoé em 25 de fevereiro de 2011
A galerista Luisa Strina faz papel de artesã e vira assistente do artista Alexandre da Cunha na exposição "Fair Trade"
É certo que toda economia deveria ser regida por preceitos éticos de equilíbrio e sustentabilidade. No entanto, existe apenas uma modalidade específica de comércio internacional em que a regulação de preços garante ao produtor uma remuneração justa por seu trabalho. Trata-se do “comércio justo” (fair trade, em inglês), que também dá nome à individual do artista Alexandre da Cunha na Galeria Luisa Strina, em São Paulo.
O artesanato e os produtos agrícolas, duas das principais categorias contempladas pelo fair trade, são também a matéria-prima da recente série de trabalhos do artista. Para representar esse mecanismo que estrutura a economia sustentável, Cunha convidou ninguém menos que Luisa Strina para trabalhar como sua assistente na realização da série.
“Há alguns anos, descobri que a Luisa tinha o bordado como hobby e desde então isso sempre me intrigou”, conta ele. “Decidi então me apropriar da Luisa bordadeira e convidá-la a ser minha assistente.” Com o convite, Alexandre da Cunha exercita o que já vem praticando há mais de dez anos: a apropriação de objetos do cotidiano. Se em trabalhos anteriores ele se valia de vassouras, esfregões, garrafas pet, tecidos de barracas e cadeiras de praia para reinventar um mobiliário artístico, dessa vez foi mais fundo e voltou-se para o hobby de sua galerista. “Gosto muito de trabalhos manuais, me relaxa muito”, conta Luisa Strina. E foi assim que Cunha ofereceu para sua assistente Luisa uma série de pedaços de tecidos de juta – utilizados originalmente para ensacar produtos agrícolas de exportação – para serem por ela bordados.
“Ele me pagou por isso, deu um trabalho enorme”, continua Luisa. Como pagamento, a marchande recebeu uma das obras do artista. Mas, como as regras de um autêntico fair trade mandam, a relação entre artista e assistente foi se modificando e Luisa acabou por ser promovida ao status de “artista colaboradora”. Os trabalhos em exposição são, portanto, assinados por ambos. A parceria implica a divisão de 50% do preço da obra para cada “artista”, o que em realidade corresponde à divisão entre artista e marchande.
Na mostra “Fair Trade”, marchande e artista discutem as regras do mercado de arte. A presença de Luisa Strina na feitura das obras não modificou seu preço de mercado. Mas a assinatura da conceituada marchande, responsável pela mais antiga galeria de arte contemporânea de São Paulo, sem dúvida contribuiu para que as obras fossem vendidas antes mesmo da abertura da exposição, no sábado 19. “Nesses trabalhos, eu não sou artista, mas artesã”, insiste Luisa. “Estamos discutindo aqui de quem é a criação. Até onde o artesão pode infringir o trabalho do artista?”
Além dos tensionamentos entre os papéis do artista, do galerista e do artesão, a proposta de Alexandre da Cunha nesta exposição é também pensar outras inversões de papéis. Os quadros de juta bordada e as duas esculturas de chão expostas confrontam as consistências do duro e do mole, do masculino e do feminino, do doméstico e do industrial, do minimalismo e do artesanato.
Muntadas ataca utopia de Alphaville por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Muntadas ataca utopia de Alphaville
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 26 de fevereiro de 2011.
Artista espanhol compara cidade controlada do filme de Godard a complexos imobiliários de metrópoles atuais
Em retrospectiva na Estação Pinacoteca, vídeos e instalações também refletem sobre a natureza da imagem
Alphaville é um lugar escuro, onde o amor é proibido. É também um mundo de felicidade e sonhos, onde a vida é cercada de tranquilidade.
Está no contraste entre a distopia cinzenta de Jean-Luc Godard e as promessas dos complexos imobiliários o ponto central do novo trabalho do artista Antoni Muntadas, tema de uma retrospectiva na Estação Pinacoteca.
Cenas do filme francês costuram comerciais de televisão dos condomínios fechados nos arredores de São Paulo, também em versão preto e branco. Muntadas contrasta sonho e pesadelo numa grande instalação, que estampa no chão uma vista aérea de Alphaville rodeada de grades e arame farpado.
Isso porque segurança, ou isolamento, parece ser a única promessa em comum entre os conjuntos imobiliários das metrópoles modernas e a cidade controlada do filme clássico da nouvelle vague.
No vídeo projetado no museu, algumas das cenas embaralham mesmo os dois espaços, que abusam de cercas e dispositivos de controle. É nesse ponto que o artista espanhol retoma suas ideias sobre o poder da imagem.
"Existe um paradoxo", diz Muntadas à Folha. "Imagens ajudam a acreditar, mas não quer dizer que estejam certas, podem ser construídas."
Num trabalho dos anos 70, que também está na mostra, Muntadas enviou fotografias publicadas na revista "Life" a críticos de arte espalhados pelo mundo, pedindo que descrevessem o que viam.
Transformou então fotografias em artefatos, inventando uma espécie de "museu antropológico da imagem", sublinhando a visão com o peso das palavras.
Na sala ao lado, uma nova versão de uma obra dos anos 80 reforça essa ideia. Uma espécie de estádio cenográfico faz par com imagens de estádios reais do mundo todo, entremeados de projeções de feitos históricos e esportivos.
Entre os fotogramas, enumera uma série de palavras. Muntadas faz aqui um paralelo entre a arquitetura dos espaços de espetáculo e o tecido semântico arquitetado na tensão entre palavra e imagem, signo e referente.
Em relatos nas fronteiras entre México e Estados Unidos e Espanha e Marrocos, também explora como a imagem pode estar a serviço da construção do medo, como as cercas de Alphaville.