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julho 20, 2010
Arte em movimento por Camila Molina, Estadão.com.br
Matéria de Camila Molina originalmente publicada no caderno Cultura do Estadão.com.br em 20 de julho de 2010.
A relação com o cinema é forte vertente da 29.ª Bienal de São Paulo, que exibirá obras de Harun Farocki e Apichatpong Weerasethakul
SÃO PAULO - Alemão com ascendência checa, o artista e diretor de filmes Harun Farocki é celebrado como um dos criadores principais em atividade no cenário contemporâneo. Estava desde o início do ano na primeira lista de participantes da 29.ª Bienal de São Paulo, que será inaugurada em 25 de setembro para o público no Ibirapuera, integrando, assim, o forte time de criadores da mostra que trabalham na linha do audiovisual e as artes visuais de raiz cinematográfica - ao lado de outros como o português Pedro Costa, o tailandês Apichatpong Weerasethakul (leia mais na pág. 3) ou o inglês Steve McQueen, que transitam em suas obras sempre impactantes entre a grande tela e o cubo branco em instalações.
Sendo assim, é a imagem - a produção de filmes como "forma de pensamento", numa expressão do próprio Farocki - a grande questão de sua arte. Como ele diz na entrevista que concedeu ao Estado enquanto participava de programa cultural na África do Sul, sua preocupação maior é a discussão sobre "o status da arte digital". Na Bienal, nessa que será de fato sua primeira mostra no Brasil, Farocki vai exibir uma obra nova, a videoinstalação Serious Games, deste ano e ainda em produção. Ele traz mais uma vez a questão da guerra, propondo uma relação entre experiência e memória e utilizando animação computadorizada.
No ano passado, em uma palestra em São Paulo, a crítica de arte americana Rosalind Krauss o elogiou e afirmou que o sr. é um dos rebeldes da arte contemporânea ao lado de criadores como Ed Ruscha, William Kentridge, James Coleman, Sophie Calle e Marcel Broodthaers. Concorda com Rosalind Krauss?
Uma vez eu sonhei em ser um rebelde - hoje sou feliz de apenas fazer um trabalho que tem uma atualidade, de certa maneira. Uma obra que contribui para se refletir sobre questões urgentes, como: O que abastece as pessoas em nossas sociedades?
Considerando a ideia anterior, o sr. acredita que haja espaço na arte para continuar a ser radical hoje em dia?
Talvez esse rótulo não seja tão importante. Um artista pode ser radical apenas sendo um criador preciso. Ou abrindo um novo acesso para uma questão ou questionamento.
O que está planejando apresentar na 29ª Bienal de São Paulo? Considerou realizar um trabalho especial tendo como referência alguma questão relacionada ao Brasil ou a um tema especial?
Uma parte do trabalho que vou exibir na Bienal de São Paulo utiliza imagens digitais que preparam soldados para o "teatro da guerra". E há outra parte que se faz quase das mesmas imagens, só que interativas, criadas com animações computadorizadas, para propostas terapêuticas. De um lado se mostra para veteranos de guerra cenas do Afeganistão ou do Iraque com o objetivo de lembrá-los da experiência traumática que eles vivenciaram nos conflitos. Já produzi a obra e exibi uma parte desse projeto. Mas só mais tarde conseguirei completar as três faces da obra.
O que o sr. pensa do tema desta 29.ª Bienal de São Paulo, que propõe uma discussão sobre a relação entre arte e política?
Não posso julgar antes de ver a exposição. Por exemplo, não posso falar de um livro lendo apenas o seu título. Um título é o menos importante do que o conteúdo. Neste caso, o importante são os trabalhos e a maneira como eles comentam uns ao outros.
Qual seria então sua opinião sobre Bienais de Arte?
Nunca participei da Bienal de São Paulo. De uma maneira geral, as bienais podem ser comparadas a festivais de filmes. Elas atraem um público que geralmente não iria ao cinema num dia de semana.
O sr. tem algum interesse particular e especial hoje em dia que o motiva a trabalhar em suas obras? Há alguma questão que considera urgente dizer?
Quero discutir o status da imagem digital. Parece que a animação computadorizada logo será o padrão e substituirá a imagem fotográfica e cinematográfica.
O sr. faz uma separação de suas obras como diretor de cinema e como artista? Como lida com as duas formas de expressão? Acredita, enfim, ser mais experimental como artista ou como cineasta?
Tento não fazer diferença. Mas não posso negar que haja uma diferença. Para cinema ou televisão os códigos já são fixos. Os gêneros, definidos. No campo da arte as pessoas sabem que têm de encontrar um código. Então acredito que posso ser mais experimental no espaço da arte.
O sr. tem algum tipo de relação com o Brasil ou com a cultura brasileira? Está planejando vir a São Paulo?
Não há tempo! Irei apenas por dois dias. Adoraria fazer um projeto no Brasil onde nunca estive antes. Uma vergonha!
Certezas abaladas por Erlon José Paschoal, Cultura e Mercado
Texto de Erlon José Paschoal originalmente publicada na revista blog Cultura e Mercado em 25 de junho de 2010.
Por vezes faz bem reler autores que questionam as estruturas tidas como inabaláveis e perenes, tanto na arte quanto na vida. Como sabemos é intrínseca à criação artística uma certa insubordinação e crítica da ordem vigente. Muitos artistas e filósofos reformularam conceitos, elaboraram ideais utópicos e propuseram novas linguagens para se abordar e compreender a realidade. Entre eles, o teatrólogo francês Antonin Artaud. Sua principal obra “O Teatro e Seu Duplo” pode ser encontrada em qualquer livraria.
Artaud exalta a entrega às forças naturais primitivas, o rompimento das amarras sociais e almeja atingir as dimensões mais profundas do espírito, provocando o encanto e o fascínio. Faz uso de termos abstratos e ambíguos, tais como Guerreiro, Duplo, Peste, Crueldade, colocando no palco não mais temas psicológicos ou sociais, mas míticos e cósmicos.
Suas descrições do teatro ideal são virulentas, poéticas e pulsivamente emotivas, por vezes bombásticas e concludentes. A sua premência de se expressar e a sua rejeição do abuso predominante e excessivo das palavras, leva-o à impossibilidade de compartilhar suas ideias com seus contemporâneos, e ao vazio: “Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta”. Desse modo, em sua não definição, a linguagem concreta, espacial e física do teatro, “faz surgir a idéia de uma certa poesia no espaço que se confunde com a bruxaria”.
Artaud foi um vate, um visionário, que dialogava com as forças inconscientes e pretendia resgatar o poder primitivo e transformador do teatro. Ao mesmo tempo em que rejeitava as formas teatrais então convencionais, ele almejava revolucionar o convívio social, retomando tradições ocidentais instigadoras e sendo fortemente influenciados pelo teatro oriental.
Recorrendo às imagens presentes nas pinturas de Grünewald, Brueguel, Goya e Bosch, Artaud vislumbra um espetáculo ideal, composto por verdadeiras tentações, capaz de extrair as forças primitivas presentes nos mitos e no inconsciente das massas, denominando-o Teatro da Crueldade. Nele, tal como nos ritos e na magia, o público deve ser levado ao delírio e ao êxtase, vivenciando a totalidade física e espiritual do Ser. Os seus ingredientes básicos são a ruptura, a criação de uma linguagem gestual comunicativa e a primazia da encenação em detrimento do uso estático da palavra.
Em sua busca de um teatro que despertasse os nervos e o coração dos homens, Artaud chega à formulação de uma concepção teatral que insufle miticamente as massas, levando-as a acreditar nos sonhos apresentados no palco – mas como sonhos de fato e não como “decalque da realidade” – estimulando no público a “liberdade mágica do sonho”. Artaud é categórico: “farei aquilo com que sonhei, ou não farei nada”.
É preciso sem dúvida coragem para ler e cultivar autores, cujas ideias abalam nossas certezas e insuflam vida em nossas atitudes e gestos automáticos. Ainda bem que eles existem.
julho 19, 2010
As inquietações de Wesley, Estadão.com.br
Matéria originalmente publicada no Estadão.com.br em 19 de julho de 2010.
Mostra feita como tributo ao controverso artista promove seu reencontro com o público carioca
RIO - É uma frase mentirosa, reconhece, mas a usa mesmo assim o marchand e diretor da Pinakotheke Cultural, Max Perlingeiro: "Wesley Duke Lee nunca expôs no Rio de Janeiro." É que, apesar de terem sim ocorrido na cidade carioca, desde 1964, mostras do artista paulistano, há uma sensação de que ele tenha sempre feito mais ‘barulho’ em São Paulo.
Como em outubro de 1963, quando Wesley criou, literalmente, estardalhaço com o happening Grande Espetáculo das Artes no João Sebastião Bar, na Rua Major Sertório, na capital paulista - nele apresentava para uma multidão desenhos eróticos da Série das Ligas vistos com lanternas em meio a um strip-tease. Ou ainda, quando fundou em São Paulo, em 1966, com outros artistas, a Rex Gallery (leia mais no texto abaixo), espaço alternativo em que se propunha nova relação de mercado de arte.
"Estava sempre cheio de ideias. Para ele, tudo se resumia em festa", diz agora Max Perlingeiro, que conheceu o artista, "um personagem de terno e chapéu, um dândi, mas um homem sempre à frente de seu tempo", como diz, em 1968, na Petite Galerie do Rio. Desde então, muitos anos se passaram e apenas em 2006 o marchand, curador e editor veio a São Paulo encontrar Wesley novamente e lhe propor a realização de uma grande mostra com suas obras para o público carioca.
O projeto rendeu frutos e amanhã será inaugurada na sede da Pinakotheke Cultural, um casarão da década de 1910 no bairro de Botafogo, no Rio, a exposição Wesley Duke Lee, que reúne 65 obras do controverso e irreverente artista, tão amado por uns - e mestre de criadores como Carlos Fajardo, Frederico Nasser, José Resende e Luiz Paulo Baravelli - e tão criticado por outros (durante a ditadura, por ser deliberadamente ligado aos EUA - seu avô era americano - e considerado um ‘alienado’ de direita). Tanto que em 1964, como define a historiadora Cacilda Teixeira da Costa, Wesley se sentiu "hostilizado" no Rio, "sobretudo por motivos ideológicos", pelo grupo de criadores que propunha novas formas de criação - entre eles, por Lygia Clark, Lygia Pape e Ivan Serpa, "mas não por Oiticica". Entretanto, diz Cacilda, os integrantes da geração seguinte, de Antonio Dias, Gerchman e Vergara, o receberam bem e foram influenciados por sua obra.
A mostra atual, é assim, mais um reencontro do "salmão na corrente taciturna", como definiu o historiador Walter Zanini, ou seja, de Wesley, nome essencial em se tratando das décadas de 1960 e 1970 no Brasil, com o Rio.
Total
Tributo, a mostra organizada por Perlingeiro, que entrevistou diversas pessoas ligadas ao artista em sua pesquisa, é uma boa oportunidade de se acompanhar toda a carreira de Wesley Duke Lee - hoje com 78 anos e enfermo, com o mal de Alzheimer -, passando por criações como desenhos, pinturas, "obras ambientais" e objetos realizados entre 1952 e 1999, algumas delas pontuais como o tríptico O Nome do Cadeado É: As Circunstâncias e Seus Guardiães (66); A Zona: Considerações. Retrato de Assis Chateaubriand (68); os desenhos da Série das Ligas (63), os da Zona (65) e os da Caligrafia (1977), as criações de sua "fase lisérgica", de 64.
Uma das passagens especiais da mostra na Pinakotheke - que, curiosamente, por ter como espaço expositivo os cômodos do casarão antigo tombado, se torna uma exposição intimista - é a sala dedicada ao emblemático happening Grande Espetáculo da Arte, de 1963. No João Sebastião Bar, além dos desenhos das Ligas e de um strip-tease às avessas, era exibido um filme em que a pintora Maria Cecília Gismondi andava pelas ruas de São Paulo vestida de gala, numa performance registrada em película pelo fotógrafo Otto Stupakoff (os dois eram companheiros de Wesley no "movimento do realismo mágico"). O filme se perdeu, mas Perlingeiro encontrou fotografias inéditas (uma delas no destaque) que um assistente de Stupakoff realizou como making of da performance. A sequência de imagens se transformou em um filme que possibilita uma recriação do espírito do happening.
É uma exposição completa, levando-se em conta que em 1992 houve retrospectiva do artista no Masp, apresentada também no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio. Mostra feita agora quase em sua totalidade com obras de coleções particulares brasileiras e estrangeiras, coloca também a biografia de Wesley, o "realista mágico" como inúmeras vezes ele próprio se define, e criador de alter egos - por meio de fotos, documentos, vídeos com depoimentos de entrevista do artista concedida à TV, cartas de amor que trocou com Lydia Chamis, a máscara de Noh que ganhou como prêmio na Bienal de Tóquio, em 1965. Acompanha, ainda, a mostra o livro Wesley Duke Lee (Edições Pinakotheke, 164 págs., R$ 110), com textos de Perlingeiro, Thomaz Souto Corrêa, dos artistas Nelson Leirner, Antonio Dias e Carlos Vergara e cuidadosa cronologia feita por Cacilda Teixeira da Costa, especialista na obra de Wesley.
Polêmico, sedutor, inquieto, bem-humorado, crítico e atualmente "muito cobiçado" no mercado, como diz Perlingeiro, exemplificando que um desenho do artista da Série das Ligas está avaliado em US$ 20 mil, Wesley Duke Lee teve sua formação em publicidade e propaganda nos EUA. A mostra ressalta toda a gênese de sua arte, destacando as reverberações do pop americano em suas criações, os conceitos de Duchamp e ainda um fascínio pelas artes clássica e oriental.
Wesley Lee Duke
Desenhista, pintor, gravador, artista gráfico e professor, nasceu em dezembro de 1931 em São Paulo, onde vive. Teve ainda como formação a publicidade nos EUA.
Missão impossível por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada em 19 de julho de 2010.
Agente secreto do FBI lança livro em que narra bastidores dos maiores crimes de arte que investigou em 20 anos de carreira
Estocolmo, Natal de 2000. Bandidos explodem dois carros perto do Museu Nacional da Suécia e bloqueiam acessos ao prédio. Roubam um Renoir e um autorretrato de Rembrandt, de US$ 36 milhões, e fogem numa lancha atracada atrás do museu.
Cinco anos depois, porta-vozes do FBI, a polícia dos Estados Unidos, chamam a imprensa e anunciam o resgate do Rembrandt. Alguém tentava vender a tela por US$ 250 mil em Copenhague.
Atrás da cortina, durante a entrevista coletiva, estava Robert Wittman, agente secreto do FBI que passou 20 anos no rastro de obras de arte roubadas no mundo todo.
"Sempre ficava escondido enquanto os chefes se gabavam diante das câmeras", lembra Wittman em entrevista à Folha. "Só fazia meu trabalho: recuperar as obras."
Ele foi o primeiro agente do FBI destacado para a função, depois fundou e liderou um time especializado em crimes de arte na agência, hoje com 13 homens.
Em "Priceless" (sem preço), livro que ele acaba de lançar nos EUA e que deve sair no Brasil pela Zahar, Wittman narra os bastidores de suas investigações. Tem como fio condutor o maior roubo de todos os tempos, até hoje sem solução.
Em 1990, ladrões vestidos de policiais invadiram um museu em Boston e roubaram US$ 500 milhões em obras, entre elas um Vermeer, dois trabalhos de Rembrandt e quatro de Degas. "Nenhuma delas foi encontrada", conta Wittman.
"Mas acredito que estão por aí, não foram destruídas." Wittman chegou a viver anos na França e em Miami tentando recuperar as telas.
Fingindo ser um comprador, estava bem próximo de fechar negócio com mafiosos na ilha de Córsega quando o plano todo fracassou. Segundo ele, havia gente demais envolvida na investigação.
DISFARCES E MENTIRAS
Mesmo sendo bom farsante, não conseguiu resolver o maior caso de sua carreira. "Já encarnei todo tipo de personagem, professor, colecionador, marchand", conta.
"É como ser um ator, com a diferença que não podemos refazer um take ruim e as consequências são bem mais severas quando erramos."
Ladrões de arte são muitas vezes os mesmos por trás de assaltos a banco ou líderes do tráfico internacional de drogas e Wittman tinha noção do perigo das operações. "Temos só uma chance para resolver o caso", conta.
"Por isso, sempre mantive os disfarces bem próximos da realidade, já que era difícil demais decorar as mentiras."
Também os cifrões. Wittman diz não prestar atenção no valor da obra que procurava. Conta que seu caso preferido foi recuperar uma bandeira usada na Guerra Civil.
"Ela valia só US$ 30 mil, mas cinco pessoas morreram carregando aquela bandeira", lembra. "Dinheiro é muito fluido, não significa nada. É mais importante resgatar um pedaço de cultura."
Do fazer ao exibir-se por Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo
Matéria de Ferreira Gullar originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 18 de julho de 2010.
Questionei o fundamento do vanguardismo nas artes plásticas. Qual fator o fez manter-se só neste campo?
POR QUE o radicalismo de vanguarda, que surgiu com o movimento "dada", por volta de 1915, atravessou o século 20 e até hoje se mantém como tendência predominante nas artes plásticas?
Formulei essa pergunta há alguns anos sem conseguir respondê-la satisfatoriamente. Como se sabe, o movimento "dada", que teve como figuras principais Marcel Duchamp e Tristan Tzara -sem falar em Kurt Schwitters, Hans Arp e muitos outros-, caracterizou-se por um radicalismo que se voltava contra toda e qualquer busca de coerência ou princípios no processo de criação artística.
Se é verdade que o cubismo pôs fim à linguagem pictórica que nascera no Renascimento, o dadaísmo, ao contrário dos movimentos derivados daquele, tinha por lema a liberdade sem limites e a negação de tudo o que se considerasse arte. Era a antiarte, cujo ícone maior foi o urinol que Duchamp expôs em 1917. Se, paralelamente, surgiram outros movimentos artísticos, alguns, aliás, de caráter construtivo, foi o cadaísmo, em sua expressão mais irreverente, que se impôs no curso do século 20.
Minha pergunta implicava outra questão: se os movimentos de vanguarda se manifestaram não apenas nas artes plásticas, mas também na poesia, no romance, na música, no teatro, por que só naquelas se manteve dominante até hoje, enquanto as outras artes, depois de absorverem inovações vanguardistas, retornaram, enriquecidas, a seu leito natural?
Por exemplo, a poesia dadaísta chegou, após a "Ursonate", de Schwitters, a poemas que, em lugar de palavras, usavam traços, sinais abstratos. O caso extremo do experimentalismo na literatura foi o "Finnegans Wake", de James Joyce.
Felizmente, a literatura de ficção não o tomou como exemplo a seguir, como as artes plásticas o fizeram com o urinol de Marcel Duchamp. Se isso houvesse ocorrido, não teríamos hoje as obras de Borges, Faulkner, Clarice Lispector etc. Sem exagero, a literatura ter-se-ia tornado indecifrável e ilegível.
Diante disso, questionei o fundamento desse vanguardismo que só se manteve nas artes plásticas. Qual fator o fez manter-se apenas neste campo, e não nos outros? Deduzi eu que, se fosse uma necessidade da época, teria se mantido em todas as outras artes. Esse me parecia um argumento lógico, mas não me satisfazia, mesmo porque a vanguarda, em qualquer campo que se manifestou, nascera de fatores históricos identificáveis. A pergunta permaneceu, portanto, sem resposta, até que, quase por acaso, julgo tê-la encontrado.
Não pensava nesse problema, quando observei que, no passado, não havia exposições de arte, mesmo porque ainda não se inventara o quadro de cavalete: o artista pintava afrescos nos muros dos mosteiros e igrejas e, depois, nas paredes dos palácios dos nobres e das mansões dos burgueses.
Como o número de paredes era limitado, foi preciso surgir o quadro de cavalete para nascer o colecionador de arte, que passou a ir ao ateliê do artista e ali comprava a tela que lhe agradasse. O artista não expunha suas obras. Só no século 19 criaram-se os salões de arte, onde passou a expor.
Distribuíam-se prêmios que, por consequência, determinavam o valor das obras no incipiente mercado de arte. E aí surgiram as galerias e os marchands.
Expor obras é um fenômeno relativamente recente na história da arte. Da Vinci, Rafael, Ticiano não expunham suas obras e isso influía no resultado do que criavam. No século 20, surgiram as grandes mostras internacionais, como a Bienal de Veneza, a de São Paulo e outros certames que se tornaram o espaço onde a arte acontece: um depende do outro. Essas exposições internacionais é que garantiram a sobrevida da vanguarda, estimulando o artista a produzir obras que "aconteceriam" ali. Ele trabalha para grandes mostras e necessita impactar o espectador, ao contrário do pintor do passado, preocupado em criar obras permanentes, que dele exigiam dedicação e apuro técnico.
Creio ser essa uma das razões por que a chamada arte contemporânea não elabora uma linguagem, não requer domínio técnico, já que o artista não busca a permanência e, sim, antes de tudo, expor e expor-se. Daí o improviso: as instalações, os "happenings", as performances.
Francês ensina como fechar o Louvre por Ana Paula Sousa, Folha de S. Paulo
Matéria de Ana Paula Sousa originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 17 de julho de 2010.
Sindicalista líder de greves que fizeram parar os museus nacionais de seu país fala em fórum do setor no Brasil
Arquiteto afirma que a França está regredindo em políticas culturais e aponta "guerra" com o presidente Sarkozy
Se algum dia você chegar ao Museu do Louvre ou ao Pompidou, na França, e der com o nariz na porta, é possível que você encontre, ao lado de uma faixa com um anúncio de greve, Nicolas Monquaut.
O sorriso levemente maroto faz com que Monquaut, 41, guarde no semblante certo idealismo juvenil. Mas, na prática, ele joga duro.
Arquiteto contratado pelo ministério da Cultura da França, ele preside, há dez anos, o sindicato dos trabalhadores do setor.
No final de 2009, organizou o movimento que deixou os museus nacionais fechados por quase dois meses. Em 1999, liderou a greve que parou os essas instituições por 21 dias.
No ano passado, não ganharam nada. Em 1999, conseguiram a regularização dos funcionários que tinham contratos informais.
"Conseguindo ou não o que queremos, as greves são importantes porque mobilizam o país", diz, lembrando que só o Louvre recebe 10 milhões de pessoas por ano.
Foi para falar sobre o significado do trabalho nos museus que Monquaut veio ao Brasil. Sua palestra no 4º Fórum Nacional de Museus, em Brasília, era sobre "memória e trabalho". Mas a política laçou sua fala.
É que a França vive dias tumultuados. O presidente Nicolas Sarkozy anunciou cortes nas subvenções para a cultura e redução no quadro do funcionalismo.
"É A GUERRA"
Há duas semanas, os presidentes dos museus do Louvre, d'Orsay e Pompidou escreveram um artigo no diário "Le Monde" posicionando-se contra tais decisões.
"É a guerra", diz Monquaut, de olhos arregalados. "A França está regredindo. Estudos mostram que cada euro investido em museus dá, de retorno, 20. Mas eles não querem saber disso."
Segundo o sindicato, a cada ano aumenta o número de frequentadores dos museus e cai o de funcionários. Há, além disso, corte nos orçamentos. "Algumas exposições estão sendo canceladas", conta.
"NÃO CUSTO CARO"
Monquaut entrou no Museu de Versalhes em 1985, quando fazia faculdade de arquitetura, para pagar os estudos. Mas eis que veio a convivência com os funcionários e, com ela, a descoberta: "São todos orgulhosos do que fazem e são mais conscientes de que os museus são um bem público do que o Estado".
Moldava-se assim a fala que Monquaut difunde pela França e em viagens pelo mundo. "Sou pago pelo ministério para fazer greves", ri. "Mas não custo caro."
Brasil usa museu como "geladeira", afirma governo, Folha de S. Paulo
Matéria originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 17 de julho de 2010.
O Brasil possui, segundo o Ministério Cultura (MinC), 2,8 mil museus que empregam 27 mil pessoas.
"Mas boa parte desses funcionários foram parar nos museus por acaso", diz José Nascimento Junior, presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).
"Muitas vezes, principalmente em cidades pequenas, o museu é uma geladeira política para quem não apoiou o prefeito", diz.
"Mas a pessoa toma gosto e se envolve. Quase todos os funcionários têm uma relação afetiva com o lugar onde trabalham."
Para tentar apoiar esses funcionários que, à diferença da França, têm pouca chance de mobilizar a atenção do país, o Ibram criou a Unimuseus, universidade que terá sede em Brasília e dará cursos via internet.
A formação e a capacitação de funcionários deve integrar o Plano Nacional de Museus, que será votado hoje em Brasília, no encerramento do 4º Fórum.
Janelas do cinema por Paula Alzugaray e Nina Gazire, Istoé
Matéria de Paula Alzugaray e Nina Gazire originalmente publicada na Istoé em 16 de julho de 2010.
Artistas derrubam fronteiras entre cinema, vídeo e artes plásticas em três exposições
CINEMA – Eder Santos/ Luciana Brito Galeria, SP/ até 31/7
Quando o cinema se desfaz em fotograma – Solon Ribeiro/Galeria Virgilio, SP/ até 30/7
A grande ilusão – Sara Ramo e Cinthia Marcelle/ Galpão Fortes Vilaça, SP/ até 21/8
Em “Histoire(s) du Cinéma” (série para televisão francesa produzida entre 1988 e 1998), Jean-Luc Godard cantou a bola: “O cinema sempre quis ser mais real do que o real.” Mas se o cinema é uma máquina de ilusão que quer criar um mundo à imagem e semelhança do real, o artista que faz cinema insiste em desvendar os dispositivos dessa máquina e mostrar que um filme de guerra não é a própria guerra. Esse é o argumento de “A Grande Ilusão”, no Galpão Fortes Vilaça. Além da instalação de Sara Ramo e Cinthia Marcelle, duas outras exposições em cartaz em São Paulo flertam com estruturas narrativas do cinema clássico, tensionando seus limites e explodindo as fronteiras imaginárias que sustentam a distinção entre arte e cinema.
Embora não tenha começado sua trajetória como cineasta, mas sim como realizador de vídeo, nos anos 80, Eder Santos sempre teve o cinema como um horizonte a ser contemplado. Ele introduz em seus vídeos ruídos e interferências bastante similares aos do cinema antigo e, como Godard, constrói uma linguagem híbrida, resultante da soma entre as duas gramáticas. No início, produzia esses ruídos manualmente. Hoje, utiliza softwares que simulam os efeitos da celulose no vídeo. Em “Cinema”, na Luciana Brito Galeria, Santos apresenta quatro trabalhos que operam no registro de um casamento – às vezes perfeito, outras vezes conflituoso – entre imagem digital e analógica.
“Enredando Pessoas” (2004) é o ponto de partida da mostra. “Esse é o último vídeo de uma série em que brinco com os suportes do cinema, falsificando sua imagem e incluindo o barulho de um projetor”, comenta Santos, para quem o vídeo ainda não alcançou a maturidade. Consequência dessa reflexão sobre o desenvolvimento dos suportes cinemáticos é a instalação “Distorções Contidas II” (2010), que resgata o mecanismo da lanterna mágica e faz uma homenagem à tela de Duchamp “Nu Descendo a Escada”, um desdobramento da imagem em movimento, em forma de pintura. Mas o destaque é a videoinstalação “Cinema” (2009), que, embora projetada em formato cinemascope, não é passível de ser classificada dentro das categorias “vídeo” ou “cinema”. O esgarçamento dos limites faz-se particularmente presente na imagem da cerca de arame farpado, uma citação do clássico experimental “Limite”, de Mário Peixoto.
Outra exposição que importa acervos analógicos para os termos da cultura digital é “Quando o Cinema se Desfaz em Fotograma”, de Solon Ribeiro. O trabalho se dá a partir de um duplo procedimento de corte efetuado sobre filmes hollywoodianos, que eram projetados pelo avô do artista, dono de sala de cinema no interior do Ceará. Em um primeiro corte, estrelas como Rodolfo Valentino, Lauren Bacall e Liz Taylor eram recortadas de seus filmes pelo projetista do cinema, para logo serem organizadas em álbuns. Na segunda operação de corte, Ribeiro se debruça sobre esses acervos e inicia novos procedimentos de edição e aproveitamento das imagens. O resultado é um cinema que se desfaz não só em fotogramas, mas em performance, projeção, colagem, videoinstalação.
Solon Ribeiro se apropria de fotogramas hollywoodianos para construir novas narrativas
Os arquivos de Ribeiro ganham uma dimensão performática que altera a aura glamourosa das estrelas de cinema. Semelhante desconstrução pode ser experimentada na instalação “A Grande Ilusão”, em que Sara Ramo e Cinthia Marcelle fazem uma releitura do filme de Jean Renoir. O trabalho é uma videoinstalação atípica, que descarta o recurso da projeção em loop, mas se apoia num recurso básico da narrativa cinematográfica: a estrutura linear de começo, meio e fim. A presença de um projetista – figura tradicional da sala de cinema –, responsável por acionar o filme, é outro elemento importante, que demarca a identidade desse território como cinema. Todos esses elementos corroboram para criar uma ilusão que será colocada em suspensão. A revelação do dispositivo, oculto durante toda a projeção, acaba com a ilusão de que o cinema seja, afinal, imitação da vida.