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outubro 21, 2018
Ai Weiwei: Comunicação pela raiz, revista seLecT
Ai Weiwei: Comunicação pela raiz
Matéria originalmente publicada na revista seLecT em 18 de outubro de 2018.
O artista chinês Ai Weiwei é mundialmente conhecido por seu ativismo pelos direitos humanos e pela liberdade, além do uso inteligente das tecnologias de comunicação e das redes sociais. Há exatamente um ano, em outubro de 2017, quando iniciou um período de sete meses de residências artísticas no Brasil, Weiwei se juntou a protesto contra a censura à arte sob a marquise do Masp. Não deu entrevistas, mas usou sua imagem diante da câmera do celular de manifestantes para dar o seu depoimento: censura nunca mais. Um ano depois, quando a sociedade brasileira sucumbe à onda de ódio e violência e o candidato que lidera as intenções de voto na corrida presidencial advoga pelo fim dos ativismos e da diversidade de ideias, a volta do artista chinês para inaugurar a exposição Ai Weiwei Raiz, na Oca, em São Paulo, é significativa e muito bem-vinda.
A mostra apresenta ao Brasil um artista que estruturou toda sua obra em torno da prática de monitorar o poder e investigar a corrupção policial e política em seu país de origem. Em 2009, devido à apuração da morte de 5.335 crianças no desabamento de escolas durante um terremoto em Sichuan e à denuncia em seu blog da corrupção na construção das “escolas de tofu”, conhecidas assim por sua fragilidade, Ai Weiwei levou uma surra na rua, sofreu dano cerebral e quase morreu. Em 2011, foi preso sem acusação formal e, ao sair, teve o passaporte confiscado por quatro anos. Vivendo desde 2015 em Berlim, com a mulher e o filho, o artista pesquisa hoje a crise migratória mundial. Human Flow (2017), seu filme sobre a busca de refugiados por segurança, abrigo e justiça, abriu a 41ª Mostra de Cinema de São Paulo. “Na Alemanha, esse assunto gerou uma enorme crise social. Vamos lá, a Alemanha é um estado muito poderoso, eles podem facilmente absorver essas pessoas”, diz Weiwei à seLecT. “Mas não se trata só de oferecer ajuda. A imigração beneficia a economia e a cultura alemã. A Alemanha definitivamente precisa ter mais diversidade, assim como os EUA. Eles construíram essa estrutura dura e monstruosa, e mudar isso é quase impossível. Mas a arte tem a liberdade e o direito de questionar e está na posição perfeita para fazer isso”.
A mostra “Ai Weiwei Raiz” traz a São Paulo (e a Belo Horizonte e Brasília, em 2019) uma série de obras consagradas. Entre elas, “Law of Journey” (2017), um bote inflável que carrega refugiados em tamanho maior que o real com coletes salva-vidas. A instalação é toda negra e foi posta por um dia no Lago do Ibirapuera, mas agora, por sua fragilidade, está instalada dentro da Oca. A obra ganhou uma versão em madeira talhada por artesãos de Juazeiro do Norte (CE), que colaboraram com o artista durante sua residência no Sul da Bahia. A experiência brasileira gerou cinco novas séries de trabalhos feitos com madeira, sementes, tecidos, pele de vaca e raízes de pequi-vinagreiro, árvore da Mata Atlântica baiana em risco de extinção.
De um artista engajado na luta contra a injustiça nos países aos quais viaja, talvez pudesse se esperar comentários mais diretamente implicados com as mazelas políticas e sociais brasileiras. Sobre isso, Weiwei responde: “Não gosto de nenhum tipo de envolvimento casual. Qualquer comentário deve ter muitas profundidades. O trabalho que fiz no Brasil relaciona-se com artesãos locais, que são elementos básicos e essenciais de qualquer sociedade. Esse é o posicionamento político que escolhi fazer, e não o comentário à situação política local”, esclarece.
Os trabalhos com artesanato brasileiro se relacionam com sua pesquisa sobre as tradições manuais chinesas que foram proibidas pela Revolução Cultural e ameaçadas de extinção pela soberania da produção industrial do país. Desta série, é apresentada no Brasil a instalação “Sunflower Seeds” (2010), composta por milhões de sementes de girassol de porcelana pintadas à mão por artesãos chineses. Outra conhecida obra que tece um comentário bombástico sobre a destruição da memória e da cultura tradicional é “Dropping a Han Dynasty Urn” (1995), fotoperformance em que o artista quebra uma urna de 2000 anos.
O múltiplo FODA, com título formado pelas as iniciais de alimentos que seduziram o artista em sua estadia em Trancoso, Sul da Bahia – fruta do conde, ostra, dendê e abacaxi – é composto por esculturas em porcelana – criando um elo entre a percepção sensorial e sensual que o artista teve do Brasil com a técnica milenar chinesa. As peças foram elaboradas em uma fábrica de porcelana em São Caetano, na região do ABC paulista, em tiragem de 300 edições, e comercializadas pela galeria ArtEEdições a fim de contribuir para o financiamento da exposição na Oca.
“A palavra-chave desta exposição é raiz”, diz o curador Marcello Dantas. “Há um poema do pai dele, Ai Qing, escrito em 1940, que fala da comunicação entre as árvores através de suas raízes. Ai Weiwei desvendou as raízes perdidas da China e agora ele vem para o Brasil e encontra uma maneira de cavar nossas raízes e fazer a comunicação entre os dois países pelo subsolo de nossas tradições culturais”.
Árvore
Uma Árvore, outra árvore,
Cada uma de pé e eretas
O Vento e o Ar
Dizem de sua distância
Mas Abaixo da capa da terra
Suas Raízes se estendem
E em profundezas que não se vê
As raízes da árvore se entrelaçam
Ai Qing, 1940
A seguir, leia os principais trechos da conversa de Weiwei com a seLecT:
Tivemos contato há um ano, no Masp, em uma manifestação contra a censura nas artes. Eu te pedi uma declaração, você me respondeu com uma selfie. Acho que entendi sua declaração. A fotografia postada é, para você, uma ferramenta política?
Acho que está além da política. O significado do gesto de tirar uma foto e postar em redes sociais é, muitas vezes, maior do que pensamos. Esta não é só mais uma foto. Ao ser postada ela se torna algo diferente. Para mim, esta prática serve como um diário, um esboço. Porque nossas vidas se tornaram tão fragmentadas, viajamos muito, conhecemos muitas pessoas. (…) Nossa memória é muito questionável. Como nos lembramos das coisas? Eu não sei como a memória realmente funciona. Mas se olho para uma foto eu vejo detalhes que eu nunca prestei atenção antes. Na vida, você não presta atenção a determinadas coisas. Então, a fotografia funciona como um paralelo à realidade. A fotografia é sobre a vida. E a vida é muito mais que a política.
Para você, a arte tem a função de denunciar e monitorar o poder de uma forma que outras instituições, como a imprensa, não se comprometem a fazer por questões de censura, por exemplo?
Em alguns eventos, acho que fui jornalista, fui advogado, fui alguém que batalhou por justiça social. Como no caso específico de um menino que matou seis policiais. Na China, matar seis policiais é o fim, este é o caso mais impossível de pedir por sua defesa. Eu li cerca de sessenta artigos sobre este caso. Este foi o caso mais difícil da história nacional. Um menino de 20 anos anda de bicicleta, de férias, pára a bicicleta no semáforo vermelho e é interceptado por policiais que perguntam “como você conseguiu essa bicicleta?”. Ele diz que alugou, eles pedem para ver os comprovantes, ele diz que não tem os comprovantes com ele, então levam-no para a estação e ele é espancado em um quarto escuro. Depois, quando o menino pede retratação, defendendo os seus direitos, a polícia negou que o tivesse espancado, alegando falta de provas. Um ano depois, o menino preparou uma sacola com uma faca, entrou na sede no prédio da polícia e matou os seis policiais. E, claro, na China, se você matar alguém, terá sentença de morte. Eu desenvolvi um forte argumento quando este caso se desenvolveu, porque todo o procedimento foi totalmente errado. Ele pode depor, não teve direito a testemunhas e foi sentenciado como assassino. Toda a mídia começou a tratá-lo como louco ou mentalmente doente. Mas se ele estivesse mentalmente doente, ele não poderia ser morto, certo? Eu fiz um filme sobre isso. Escrevi em meus blogs. Apenas porque eu e um único advogado escrevemos sobre isso, o caso então recebeu muita atenção e tornou-se o caso mais falado de 2008, durante as Olimpíadas.
A arte pode substituir o jornalismo?
Eu não sei se a arte pode substituir o jornalismo, mas certamente não são tantos os artistas que estão fazendo isso. Eu não vejo as pessoas fazendo isso. Eu fiz por causa da minha personalidade: eu gosto de discutir, argumentar, gosto de encontrar detalhes da vida que criam fortes argumentos, e isso não apenas a respeito de uma pessoa, mas a respeito de sociedades onde falta esse tipo de argumento. O meu caso é bastante singular, porque se você é um profissional da notícia, comprometido com esse programa, você tem que processar as notícias rapidamente, e publicá-las antes de qualquer outra pessoa. Daí você se comprometerá com outra notícia. Você nunca irá tão fundo. Nenhum editorial lhe daria espaço suficiente para desenvolver o assunto. Mas, no meu caso, eu poderia ir até o canto mais escuro que eles estiveram, o hotel onde ele ficou, onde ele comprou sua faca, como era a mãe dele, como o pai falava dele, todos esses detalhes. Ninguém iria atrás desses detalhes para dar dignidade a esse menino.
Como as peças feitas no Brasil abordam problemas que você viu e experimentou aqui?
Eu não diria que fiz comentários sobre o momento político do Brasil. Não gosto de nenhum tipo de envolvimento casual. Qualquer comentário deve ter muitas profundidades. O trabalho que fiz no Brasil relaciona-se com artesãos locais, que são elementos básicos e essenciais de qualquer sociedade. Esse é o posicionamento político que escolhi fazer, e não um comentário à situação política local.
Como foi sua relação com eles para realizar as obras aqui expostas?
Em uma escala maior, foi como jogar uma pedra na água tranquila. A arte é basicamente jogar uma pedra em uma superfície de água lisa. Dei a eles um novo elemento relacionado à minha prática e desafiei-os para ver o que era possível fazer. Eles se saíram muito bem, foi uma grande surpresa.
O múltiplo FODA induz a uma relação sensual e sensorial com a cultura brasileira… me conte sobre isso.
Sim, acho que sim. Nessa série eu e Marcello (Dantas) queríamos misturar algumas coisas que tocam a sensibilidade da cultura aqui e é claro que chegamos em frutas e alimentos… e acho que a peça é muito divertida e lúdica. No começo, buscamos fabricantes que estivessem dispostos a trabalhar com alguém como eu, cheio de ideias. Isso se tornou para eles um desafio. A porcelana é a mais antiga linguagem humana, criada desde que surgiu o fogo… mas hoje seu produto é tão limitado e turístico. Pensei que seria muito bom trabalhar com esses produtores locais para desafiar isso. E eles fizeram isso perfeitamente bem. O resultado nunca seria o mesmo na China. Aqui a forma e a linguagem ficaram perfeitas. Esse trabalho foi um exemplo muito bem-sucedido de respeito à linguagem local e ao mesmo tempo de desafiá-la, procurando levá-la a outro nível. Eu acho que é como a luz de uma vela. Se apenas uma vela é acesa, a sala certamente ainda fica escura. É preciso acender muitas outras velas para a iluminação… e isso não é uma conquista automática.
Leia aqui portfólio de Ai Weiwei, produzido para a edição #35 da seLecT.