|
outubro 5, 2018
Uma Bienal de São Paulo congelada no silêncio das formas por Daniela Name, O Globo
Uma Bienal de São Paulo congelada no silêncio das formas
Crítica de Daniela Name originalmente publicada no jornal O Globo em 16 de setembro de 2018.
A 33ª edição do evento perdeu a oportunidade de ser o espelho de um Brasil ferido
RIO — Quando anunciado, o projeto para a 33ª Bienal de São Paulo, concebido pelo curador Gabriel Pérez-Barreiro, soou interessante e necessário: incluir os artistas e o público na sua concepção e montagem. Realizar uma Bienal que evidenciasse sua escassez de recursos e até mesmo seus vícios poderia ser uma excelente oportunidade para transformar a exposição no espelho para um Brasil ferido, ameaçado em sua liberdade e em sua vida cultural. O que se vê no Ibirapuera, no entanto, é uma mostra que permanece congelada na beleza e no silêncio das formas.
Não há nada de errado com a beleza. Não há nada de errado com o silêncio. Uma exposição, qualquer que seja, não precisa estender faixas ou entoar palavras de ordem para estar aberta ao espírito de sua época. Em 2010, Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos partiram de um verso de Jorge de Lima (“Há sempre um copo de mar para um homem navegar”) para falar de política das mais variadas formas, inclusive daquelas mais belas.
Em 2012, Luis Pérez-Oramas fez da 30ª Bienal uma exposição sutil, que se revelou extremamente transgressora a partir de um gesto simples: transformar o artista esquizofrênico Arthur Bispo do Rosário em seu centro irradiador poético, questionando hierarquias e sistemas de validação do meio de arte. Em 2016, a 32a Bienal, a cargo de Jochen Voz, radicalizou as relações entre arte e vida ao fazer da mostra literalmente um alimento: a obra do artista Jorge Menna Barreto, “Restauro”, era o único restaurante e café do prédio, e oferecia exclusivamente comida orgânica e vegetariana, muitas vezes preparada com espécies recolhidas no Ibirapuera.
Se na história recente da exposição chamam a atenção a ousadia de transbordamentos muito heterogêneos, nesta Bienal a tônica é uma contenção que é quase timidez. Esta edição tira seu título, “Afinidades afetivas”, de duas referências: o romance “Afinidades eletivas” (1809), de Goethe, e a tese “Da natureza afetiva da obra de arte” (1949), de Mário Pedrosa.
Goethe mostra como a vida tediosa de um casal aristocrata é perturbada pela chegada de dois visitantes; já Pedrosa, que acreditava na crítica como militância política, vai anunciar a ideia de “natureza afetiva” pensando no poder mobilizador da obra de arte. São dois textos que concebem afeto como perturbação e transformação. E é exatamente isso o que falta à Bienal, uma bela adormecida que não desperta para o debate e o conflito.
A partir do conceito químico de “afinidade eletiva”, que norteia a obra de Goethe, Pérez-Barreiro convidou sete artistas para fazerem a curadoria de exposições com obras de suas escolhas, com a única condição de que se incluíssem nelas. O próprio curador selecionou ainda 12 projetos individuais de artistas brasileiros e estrangeiros.
Isoladamente, há obras e mostras interessantes, mas o conjunto não forma um arquipélago de ilhas que se intercomunicam, e sim uma sucessão de artistas e obras que parecem ser planetas muito distantes um do outro. A falta de diálogo entre as partes faz com que perca de vista a “afinidade eletiva” fundamental: a empatia na direção do público.
Na análise da mostra ponto a ponto, há, no entanto, trabalhos que valem a ida ao Ibirapuera, a começar pelo pequeno núcleo histórico dedicado a Friedrich Fröbel (1782-1852), alemão que foi o inventor do conceito de “Kindergarten”, que derivou no “Jardim de infância” que temos hoje nas escolas. Parte da curadoria realizada pelo artista espanhol Antonio Ballester Moreno (“Sentido/comum”), a sala dedicada a Fröbel procura mostrar como seus jogos e livros educativos voltados para crianças pré-alfabetização foram uma das bases para as transgressões das vanguardas modernas.
Afinal, artistas como Kandinsky e Paul Klee foram ao “Kindergarten” e, a partir do método de Fröbel, entenderam as possibilidades de transgressão contidas na cor e na forma. Talvez resida neste pequeno e extremamente significativo conjunto de trabalhos um caminho que a Bienal poderia ter radicalizado como concepção geral da mostra – o lúdico e a infância como pontos de partida para desobediências e novas significações. Mas não há conversa evidente entre essa sala e outros bons trabalhos selecionados por Moreno e o restante do Pavilhão.
Outro bom momento é a coletiva “Stargazer II”, com curadoria da pintora sueca Mamma Andersson. Ela seleciona artistas e obras de arte que teriam funcionado como um inventário de imagens para a formação de sua obra, entre eles seis conterrâneos de diferentes épocas e ícones russos. O segmento também inclui uma joia rara: o filme de animação “A vingança do cinematógrafo” (1912). Feito por um pioneiro da imagem em movimento, o polonês Ladislas Starevich (1882-1965), ele mostra baratas descobrindo as maravilhas e as agruras do cinema.
Waltercio Caldas assina a curadoria da mostra “Os aparecimentos”. O conjunto evidencia o processo de formação do olhar de Waltercio, sobretudo pela inclusão de brasileiros como Goeldi e Sergio Camargo. Mas a excelência de alguns trabalhos - do próprio artista-curador e de nomes como Bruce Nauman, Blaise Cendras, Gego e Armando Reverón - é perturbada pela expografia. O piso foi forrado por um questionável carpete marrom e a luz da sala é feita com lâmpadas frias, além de as obras terem pouco espaço entre uma e outra, o que dificulta sua fruição.
Muito mais grave é o caminho tomado por Sofia Borges em sua coletiva “A infinita história das coisas ou o fim da tragédia do um”, na qual apresenta obras de Tunga, Leda Catunda e Sarah Lucas presas ou em frente a um fundo feito por teatrais cortinas de veludo molhado, em cores variadas.
Nem a iconoclastia e a atmosfera de um barroco contemporâneo que permeiam os trabalhos selecionados poderiam justificar esta escolha cenográfica, que é quase uma ofensa – às obras e à percepção do visitante. Nos raros momentos em que esta mostra dentro da mostra encontra respiro visual fora das cortinas, é possível perceber de forma ainda mais contundente o erro do cenário, já que os bons diálogos encontram possibilidades de existência.
Um dos mais fortes e felizes ocorre entre uma pintura-objeto monumental de Catunda, feita em tons de dourado, e um pequeno quadro nos mesmos tons do artista do inconsciente Artur Amora, revelado por Nise da Silveira.
Nos projetos individuais, chamam a atenção as salas dedicadas a dois artistas falecidos: o paraguaio radicado na Argentina Feliciano Centurión (1962-1996) e a goiana Lucia Nogueira (1950-1998), ainda pouco reconhecida e estudada no Brasil por ter passado a vida em Londres.
Mesmo que Centurión parta da delicadeza do bordado para reinventar uma iconografia guarani e Nogueira do rearranjo de materiais pré-existentes para evidenciar o risco e a tensão, ambos são autores de objetos turbulentos. A exemplo do que aconteceria com o “Jardim de infância” de Fröbel, esta dupla de artistas criadores de objetos tão indisciplinados poderia ser propulsora de uma Bienal que se propôs a ressaltar a transformação afetiva das formas.
Outra individual bem—sucedida é a de Nelson Félix, que apresenta obra ainda em processo na qual foi a pontos extremos do planeta, como o Alasca e o Ushuaia, para pensar uma reinvenção da paisagem. Os cáctus que crescem na direção de espetos de ferro são uma dupla raridade no Ibirapuera: abrem-se para uma interlocução com nossos tempos pontiagudos e dialogam com a arquitetura de Oscar Niemeyer. Desafiador em usa onipresença, o prédio da Bienal foi explorado como campo de criação e conflito por outras edições. Nesta, reina soberano como na desenergizada “Bienal do vazio” (28ª edição, 2008): sequer seu vão central foi ocupado. Não seria exagero dizer que, visualmente, Niemeyer é a presença mais marcante da mostra.
De um modo geral, obras e exposições foram pensadas como núcleos ensimesmados, montados de costas para o lugar que os abriga e para a vida fora do prédio, que começa no parque. Também de um modo geral, a Bienal de Pérez-Barreiros — que é diretor de uma importante coleção privada em Nova York e Caracas, a de Patricia Phelps de Cisneros — apresenta trabalhos que poderiam ser vistos em qualquer galeria, e esta simplicidade, que poderia ser acolhimento, dá ao visitante uma sensação de trivialidade e domesticação. Se é adormecida, essa bela revela-se ainda, em alguns momentos, recatada e do lar.
*Daniela Name é crítica de arte.