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julho 17, 2017
Gestos vitais ao porvir por Luisa Duarte, O Globo
Gestos vitais ao porvir
Crítica de Luisa Duarte originalmente publicada no jornal O Globo em 17 de julho de 2017.
Com curadoria de Marisa Flórido, a mostra ‘Miragens’ se inspira na Saara e expressa a vitalidade advinda do caos
Miragens, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro, RJ - 05/06/2017 a 22/07/2017
Em uma época de grave crise como a que atravessamos hoje, somos convocados a imaginar e criar, diariamente, diferentes formas de resistência.
Se a situação atual da cidade, do estado e do país gera massacres de diferentes tipos, retirando direitos dos cidadãos, esvaziando os sonhos dos jovens por uma vida mais digna, ou ainda, em geral, deixando a todos com uma sensação de temor e incerteza no horizonte, essa mesma situação pode, também, nos seus melhores casos, inaugurar gestos que nos recordam a chance de seguir de maneira vital em meio ao nevoeiro espesso e complexo no qual caminhamos hoje.
A coletiva “Miragens”, curada por Marisa Flórido, no Centro de Arte Hélio Oiticica, é um gesto dessa natureza.
Ao ser convidada pelo CAHO para pensar uma exposição a partir da questão da cidade, tendo como leitmotiv a região na qual o Centro se encontra, a Saara (Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega), Flórido edificou, em conjunto com sete artistas que haviam sido seus alunos — Claudia Lyrio, Gilberto Martins, Fernanda Leme, Talita Tunala, Rafael Prado, Eduardo Garcia e Jean Araújo —, uma mostra realizada com poucos recursos financeiros mas prenhe de pensamento.
A partir dessa provocação inicial os artistas deram início a uma pesquisa na região, de tal forma que o que vemos na exposição é um cruzamento da poética de cada um e as impressões despertadas nesse encontro.
Na mostra, a cidade e a Saara são pontos de partida que não se tornam temas ilustrados de maneira literal. Na medida em que cada uma dessas respostas vinha ao mundo começava uma outra rede de diálogo. Dessa vez, a curadora, em parceria com um dos artistas, Gilberto Martins, se punha a escrever um pequeno conto que traduzia uma “cidade”.
No caso da obra de Eduardo Garcia, o que testemunhamos é uma evocação da pólis como espaço de trocas monetárias. “Apagamento” é uma instalação na qual vemos uma máquina de realizar compras em débito ou crédito à frente de uma multidão de comprovantes de transações apropriados do comércio da região da Saara.
O texto que traduz essa cidade de fluxos financeiros nos diz: “Que os rios correm como o tempo, disso nunca houve dúvida em ‘Cérbera’, cidade onde o fluxo é lei, nada deve fixar, os excedentes são sinal de prestígio e sinônimo de passagem, como estendidos apertos de mão ao som do silvo de guardas de trânsito fluvial, determinando que todos sigam logo seu destino de transeuntes e consumidores. ‘Cérbera’, cidade das águas, possui cinco rios invisíveis onde se vive em trocas perpétuas: Dádiva, Avareza, Ganância, Fetiche, Espetáculo.”
CALVINO COMO INSPIRAÇÃO
Lembrando Ítalo Calvino e o seu “Cidades invisíveis”, os ensaios que antecedem cada trabalho nos alimentam de forma poética e crítica para o encontro por vir. “Lexia” é a pólis de Gilberto Martins.
Em sua obra “Sem título” (2017) vemos um grande bloco formado por milhares de jornais empilhados e marcados com tinta asfáltica. O veículo que comercializa a notícia tem a sua dimensão verbal eclipsada em favor de sua aparição enquanto pura imagem. O artista subverte a cronologia dos dias, comprime anos em um só tempo e espaço. A rua adentra através do asfalto, que é tanto tinta quanto combustível fóssil.
Uma mostra como “Miragens”, cujo título significa “espelhismo”, ou seja, o efeito óptico produzido pela reflexão da luz solar que ocorre nas horas mais quentes, mas também quimera, sonho, finda por surgir como um exemplo para o tempo por vir. Ato de resistência que nos recorda a chance de uma potência vital e ativa por meio da arte em meio ao nevoeiro crepuscular que atravessamos.