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julho 3, 2017
Uma Documenta autocrítica por Paula Alzugaray, seLecT
Uma Documenta autocrítica
Artigo de Paula Alzugaray originalmente publicado na revista seLecT em 10 de junho de 2017.
A D14 pode ser interpretada mais como exposição de um statement curatorial do que como expressão de estados da arte atual
Dois meses após ser inaugurada em Atenas, na Grécia; cinco meses após a posse de Trump nos EUA; três meses depois de aprovado o Brexit; dez dias após atentado matando 80 pessoas e ferindo mais de 300 em Cabul, no Afeganistão; e poucas horas depois dos últimos ataques terroristas em Londres e Paris, a Documenta 14 abre em 10/6 (sábado) em Kassel, na Alemanha.
Ainda que o engajamento com realidades sócio-políticas tenha sido o partido de nove entre dez grandes exposições periódicas internacionais nos últimos 15 anos, é preciso notar que poucas vezes chegou-se ao grau de eloquência política como nesta 14ª edição da Documenta de Kassel, intitulada Aprendendo com Atenas.
A primeira voz curatorial da conferência de imprensa que teve lugar em 7/6 (quarta-feira), no Kongress Palais, foi contundente. Não veio de Adam Szymczyk, diretor artístico da mostra, mas do curador Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, quem de entrada conferiu um tom de fórum político a este que é um dos mais importantes eventos artísticos do planeta, e que tem lugar a cada cinco anos na cidade alemã de Kassel.
Em uma sequência de três horas de apresentação, seis membros da equipe curatorial de Adam Szymczyk revezaram-se com burocratas para apresentar os diversos layers conceituais da mostra. Mas foi o curador Bonaventure Ndikung, nascido em Camarões e residente em Berlim, quem demarcou os principais preceitos da mostra: colocar a crise dos refugiados do meio oriente no centro do debate; questionar a divisão do mundo por “identidades”; promover a escrita de histórias “contra-hegemônicas” e reconhecer a incerteza como um retrato do nosso tempo. Um sinal dos tempos, duas das palavras de ordem que orientaram Bienais de São Paulo neste milênio – mais precisamente a 32ª e a 27ª –, ressoaram repetidamente nos discursos curatoriais: a incerteza e o “viver junto”.
Com obras de cerca de 150 artistas e coletivos ao longo 31 museus, espaços culturais e locais abandonados, a Documenta exige do visitante a disposição ao deslocamento e à interlocução com a cidade, seus acervos, sua história e, principalmente, as histórias de poder e dominação que envolveram as relações entre a Alemanha, a Europa e o mundo.
Nas sub-curadorias distribuídas pela cidade, contrapõem-se teorizações sobre expedições coloniais de séculos passados com movimentos migratórios decorrentes das guerras atuais; conflitos do mundo árabe versus os desastres da Europa moderna; revisões críticas do nazismo em tempos de novos extremismos; o estado transitório dos corpos e da sexualidade contemporânea em paralelo às transformações das instituições museológicas.
No movimento de varredura geográfica da cidade, é particularmente interessante a ocupação dos “pavilhões de vidro” da Kurt-Schumacher-Strasse. Em vez da casa de vidro da arte e arquitetura moderna de Bo Bardi ou Dan Graham, ou de vistosos pavilhões ao modo das exposições universais do século 19; o que se encontra ali são seis galerias comerciais desativadas, em estado precário de conservação, em uma região da cidade fronteiriça com comunidades imigrantes da Turquia, Etiópia e Bulgária.
Os projetos artísticos ocupantes são irregulares, com momentos altos nos trabalhos de Mounira Al Solh (Nassid’s Bakery) e do coletivo escandinavo Joar Nango, formada por arquitetos, carpinteiros e músicos. Eles foram os responsáveis por fabricar a primeira “obra” exposta: o púlpito onde discursaram os oito responsáveis pela D14.
A Neue Gallery – que ganha centralidade nesta 14ª edição, ao ser configurada como espaço de memória e “autoconhecimento das forças históricas que tornaram a Documenta possível” – expressa bem as tensões históricas a que a documenta se propõe. Logo na primeira sala do museu, frente a frente, encaram-se Real Nazis (2017), instalação de Piotr Uklánski, uma galeria de retratos dos monstros do século 20, e Planting of Trees (1971), pintura do albaniano Edi Hila, que por trás de uma cena campestre aparentemente inofensiva e naïf escondem-se vidas caladas por um regime totalitário.
Assim como a tentativa de plantio de Hila, descobrem-se na Documenta momentos sublimes de construções poéticas sobre o desastre. Como os escombros de barcos – memória trágica das migrações mediterrâneas – transformados em instrumentos musicais pelo mexicano Guillermo Galindo, exibidos na Documenta Halle. Há também a potência da insubmissão, expressa na vídeoinstalação Monday (2017), do coletivo Iqhiya, de Cape Town, montada em uma estação de metrô desativada. O trabalho mostra um furioso protesto de alunos em sala de aula e traça um insuspeito paralelo aos acontecimentos vivenciados recentemente por estudantes secundaristas em São Paulo, em reinvindicações por melhorias da educação. A residência artística Capacete (RJ) é o único participante brasileiro da Documenta 14, em Atenas.
As ressonâncias que as propostas da Documenta 14 assumem em diversos campos da vida contemporânea fazem pensar por que a curadoria não teria encontrado, entre artistas brasileiros, uma pesquisa que pudesse vir a contribuir em seus debates. Por outro lado, a presença da arte contemporânea grega apresenta-se excessiva e problemática.
Ao “importar” grande parte da coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea da Grécia, instalando-a no edifício-símbolo da Documenta, o Fridericianum, o curador polonês Adam Szymczyk quer enfatizar sua tese de que “desaprender tudo o que acreditamos saber é o melhor começo”, como declarou na conferência de abertura, bem posicionado atrás do púlpito de peles e neon do coletivo nórdico.
A participação de Atenas como tema e sede da D14 tem varias camadas de sentido. As primeiras razões alegadas dizem respeito ao papel de mediação que a Grécia tem no processo migratório de refugiados sírios. Mas o que se vê em Kassel é uma coleção de obras com muitas fragilidades. Além disso, diferentemente de outros grupos de artistas, colocados em circulação e respirando entre espaços e conceitos, os artistas gregos estão “ilhados” no Fridericianum, talvez tanto quanto o país esteja, desde que mergulhou na pior crise econômica entre os membros da UE.
“Aprendendo com Atenas” é uma mostra altamente autorreflexiva, de fortes colocações. Mas apesar de seus momentos altos, seu discurso nem sempre encontra eco nas obras expostas. Nesse sentido, parece conter mais a exposição de um statement curatorial do que a livre expressão dos estados da arte atual.
Resolvem bem a complexa proposta da curadoria, no entanto, projetos comissionados, realizados por artistas convidados a pensar as relações pós-coloniais entre Grécia e Alemanha em residências entre Atenas e Kassel. Caso do duo Prinz Gholam, autor da série Speaking of Pictures (2017), espécie de videodiário de relações corporais estabelecidas entre os artistas com monumentos gregos e alemães.
Documenta 14
De 8/4, em Atenas, até 17/9, em Kassel