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junho 20, 2016
Francisco Bosco escreve sobre a cultura dividida e o vaivém do MinC, Folha de S. Paulo
Francisco Bosco escreve sobre a cultura dividida e o vaivém do MinC
Artigo de Francisco Bosco originalmente publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo em 12 de junho de 2016.
RESUMO O ex-presidente da Funarte, exonerado do cargo pelo presidente interino Michel Temer, escreve sobre diferentes ações para a cultura na história do país e a atual divisão da classe artística. Há aqueles que reconhecem a recriação do Ministério da Cultura e os que, como ele, não querem diálogo com a direção da pasta.
De um presidente sem votos, chefe de um partido especializado na realidade das relações de força do Congresso, e não na da sociedade, dificilmente se poderia esperar outra coisa: sem fazer a menor ideia de onde pisava, extinguiu logo o Ministério da Cultura –aquele antro de petistas mamadores da Lei Rouanet– e acabou por se deparar com o mais barulhento foco de resistência a seu governo em suas semanas iniciais.
Primeiro, o setor cultural inteiro se manifestou contra o remake do fim do MinC (a versão original foi obra de Fernando Collor). O novo ministro da Educação e Cultura, Mendonça Filho, já na chegada teve que encarar um protesto humilhante dos servidores. Em um primeiro recuo, Temer anunciou que a Secretaria de Cultura sairia da Educação e seria ligada à Presidência. Procurando o que para ele seria unir o inútil ao desagradável, buscou uma mulher para o cargo. Bateu de frente com a recusa pública de ao menos cinco delas.
Forçado a retornar ao ponto de partida, decretou a volta do MinC e nomeou um novo ministro, mas as sedes do ministério em todas as capitais do país permaneceram ocupadas, e diversas associações, como a Frente Nacional do Teatro, além de diversos artistas, mais e menos conhecidos, declararam não reconhecer o novo MinC. Para essa parte do setor, não há qualquer diálogo possível com o novo ministério. A reivindicação é única e posta nos mesmos termos do vício de origem de todo esse processo: #foratemer.
Ao mesmo tempo e por outro lado, associações como o Procure Saber, o GAP (Grupo de Ação Parlamentar da música) e a APTR (Associação de Produtores Teatrais do Rio de Janeiro) manifestaram contentamento com a recriação do MinC e apoiaram o novo ministro. O diretor de teatro e realizador cultural Marcus Faustini o saudou como "primeiro ministro pós-participante da geração de resistência à ditadura, pós-tropicalismo, pós-hegemonia de sociólogos no comando da cultura". E viu nisso "uma mudança importante" (que importância, não se sabe).
É preciso, portanto, primeiramente assinalar a oposição entre essas duas vertentes e, em seguida, compreender o que está em jogo em sua diferença. Se o setor cultural está dividido, é porque há dois projetos de cultura fundamentalmente diferentes sendo disputados. Como costuma ser a regra, ao status quo interessa dissolver a diferença. Com efeito, tem sido essa a estratégia do novo ministro da Cultura –mas isso, como procurarei demonstrar, só acaba por revelar com clareza maior a distinção. Para compreendê-la, precisamos recuar no tempo.
RECENTE
A história das políticas públicas do Estado brasileiro para a cultura, enquanto conjunto de ações articuladas e sistemáticas, é relativamente recente e pode ser em larga medida sintetizada, como identifica Albino Rubim, pelas palavras "ausência, autoritarismo e instabilidade".
Foi na década de 1930, durante o governo Vargas, que ocorreram as primeiras experiências mais conscientes e consequentes de políticas públicas para a cultura, por meio das figuras de Mário de Andrade e Gustavo Capanema.
O primeiro, embora gestor municipal –diretor do Departamento de Cultura de São Paulo–, avançou formulações e práticas inaugurais de vocação e interesse nacionais: afirmou a cultura como instância central ("algo tão vital como o pão"); estabeleceu uma intervenção estatal sistemática, articulando diferentes áreas da cultura; realizou pesquisas sobre o folclore em diversos Estados, recusando identificar cultura e belas-artes; formulou um ambicioso e criterioso programa de proteção ao patrimônio; entre outras ações.
Seu contemporâneo Gustavo Capanema, ministro da Saúde e Educação de Vargas, realizou também um conjunto articulado de intervenções, estabelecendo legislações para as diversas artes e criando instituições culturais, entre elas o Instituto Nacional do Livro e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituição mais forte da cultura no país até os anos 1970. "Esteticamente modernista e politicamente conservador", como o define Rubim, sob a gestão Capanema estavam tanto o Departamento de Informação e Propaganda, órgão de controle e censura da cultura, quanto alguns dos mais importantes artistas modernistas, como Drummond, seu chefe de gabinete, Portinari e Niemeyer.
Acelerando a história, o período de 45 a 60 é marcado por um desenvolvimento forte da indústria cultural, desacompanhado de intervenções sistemáticas por parte do Estado. Já durante a ditadura, após a fase de brutalidade máxima, a partir de Geisel, com o começo da distensão do regime, ocorre um intenso investimento do Estado na cultura, com ampliação de orçamento para a área e criação de diversos organismos, entre eles a Funarte.
Nesse momento, sob a gestão do ministro da Educação e Cultura Ney Braga, o governo incentiva um conjunto de atividades culturais no meio universitário, abrangendo 21 universidades. Como observa Lia Calabre, "a perseguição e o desmantelamento dos trabalhos realizados pela UNE, por meio dos CPCs [Centro Popular de Cultura], deixou espaço para projetos institucionais artísticos no campo universitário". Essa situação tem caráter exemplar.
Com a Nova República, começa a se formar uma mentalidade liberal na relação entre Estado e cultura. Apesar da própria criação do MinC, o sentido do período é sobretudo de enfraquecimento das ações estatais: Lei Sarney de incentivo fiscal, o desmonte institucional da cultura por Collor, a Lei Rouanet e a gestão de Francisco Weffort nos oito anos de FHC se dão sob essa égide.
Durante todo o governo FHC quase não há políticas culturais, a não ser alterações na Lei Rouanet. Para pior, distorcendo seu correto espírito original e produzindo um desequilíbrio no ecossistema cultural que permanece até hoje, apesar dos esforços de retificação do governo seguinte.
Foi na gestão de Gilberto Gil (2003-08), seguida pela de Juca Ferreira (2008-10), que o Ministério da Cultura viveu um processo inédito de engrandecimento. Substituiu uma ideia restritiva de cultura por outra abrangente, capaz de abarcar a complexidade e heterogeneidade do país.
Criou mecanismos de gestão participativa, fortalecendo o CNPC (Conselho Nacional de Políticas Culturais) e realizando as Conferências Nacionais de Cultura. Identificou a necessidade de um Sistema Nacional de Cultura, baseado no fortalecimento institucional de Estados e municípios e de sua articulação com a União, com o objetivo de produzir uma relação mais eficiente entre os entes federados.
Criou o programa Pontos de Cultura, efetivando uma compreensão contemporânea e descentralizada da cultura brasileira. Assegurou transparência e republicanismo aos mecanismos do ministério. E, sobretudo, propôs a cultura como uma instância indissociável de um projeto geral de sociedade brasileira mais democrática. Como observa Isaura Botelho, esse MinC considera "fundamental a articulação entre cultura e cidadania". Pois bem, esse é o ponto.
KAFKA
Se estivesse vivo e observando a conjuntura brasileira, Kafka escreveria a seguinte sucinta parábola: um homem invade a sua casa de madrugada, rouba seus pertences, em seguida o acorda e o convida a dialogar para ajudá-lo a decidir o que fazer com eles. Pois bem, para todos da cultura que consideram o governo Temer fruto de um golpe, o homem da história é o seu ministro da Cultura Marcelo Calero.
Não reconhecer sua legitimidade significa recusar a armadilha do paradigma proposto: dialogar ou não dialogar. Ora, ninguém precisa ser leitor da dialética do senhor e do escravo para perceber que dialogar já implica reconhecimento. E reconhecer esse ministro da Cultura implica necessariamente reconhecer o presidente Michel Temer (chamado por Calero, aliás, de "grande líder"). Não há interesse particular mal disfarçado de malabarismo retórico capaz de desconstruir essa lógica.
Calero fez uma boa gestão como secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Tudo indica que ele manterá programas importantes oriundos da gestão Gil e Juca e insistirá na tecla do diálogo. O problema é que, no fundo, o que está em jogo é precisamente a dissociação entre cultura e cidadania, que é, no limite, o maior legado de Gil e Juca.
Há uma contradição lógica entre a manutenção dessas políticas culturais e a compreensão da cultura como uma instância que pode e deve ser tratada isoladamente da situação geral do país, uma vez que essas políticas culturais têm como ponto de partida justamente a compreensão da cultura como uma instância na qual se pensa e se experimenta um projeto de sociedade mais profundamente democrática. Ou seja, precisamente o que se compromete com o golpe que esse novo MinC reconhece e perpetua.
Trata-se, portanto, de uma falsificação decisiva. Dissociar a cultura de um projeto de sociedade brasileira é um retrocesso. Os setores da cultura que se recusam a dialogar com esse MinC o fazem porque estão cientes disso; porque pensam a cultura como cidadania, para muito além de obras de arte, editais e espetáculos.
Há aqueles que defendem o diálogo com esse MinC lembrando que na ditadura se deu a institucionalização da cultura de maneira intensa, com um importante legado. Sério? O que é o legado da Funarte em comparação ao legado da própria ditadura? Volto aqui à referência aos CPCs, à perseguição a eles, e depois à reativação de um circuito universitário. Destruir ilegitimamente para reconstruir à base de um "semblant" de diálogo. É esse o programa, que se filia, desse modo, ao da ditadura.
Os que o recusam se filiam a outra tradição. No projeto cultural sonhado por Mário de Andrade havia não apenas bibliotecas públicas, mas parques infantis, com atividades esportivas e serviço de nutrição. Isso mesmo, a cultura mobilizada para combater o então grave problema da desnutrição infantil. É a essa tradição que se filia o MinC de Gilberto Gil e Juca Ferreira – o MinC de todos os ocupantes, de todos os artistas, produtores e cidadãos que desejam uma sociedade brasileira mais democrática e estão lutando por ela.
FRANCISCO BOSCO, 39, é ensaísta e ex-presidente da Funarte.