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agosto 10, 2014
Resenha: Arte e multidão de Antonio Negri, Quadrado dos Loucos
Arte e multidão
Resenha de NEGRI, Antonio. Art & multitude. Cambridge: 2011, Polity, originalmente publicada no Quadrado dos Loucos em 1 de novembro de 2012.
A arte não acontece descolada do sistema de produção. Qualquer fabricação, ação, acontecimento ou crítica de arte passa, necessariamente, pela organização das forças produtivas. Por “sistema produtivo”, aqui, se adota uma concepção ampla. Mais do que a produção de sujeitos e objetos, é um conceito radicalmente construtivista. O sistema produtivo é o que cria o próprio mundo, natureza e cultura; é subjetividade em estado fluido, dinâmico, disforme. É uma essência atuante, um campo de forças a partir do que se podem constituir e desconstituir as formas de vida, as perspectivas, os regimes expressivos e as relações sociais. Para Negri, a produção não se esgota no produtivismo, que é sobredeterminar a produção por seu aspecto econômico. A produção neste sentido negriano não se subordina a uma lógica — economicista, politicista ou culturalista que seja. Produção tem um caráter ontológico. Baseia-se nas mutações incessantes do trabalho vivo — o núcleo conceitual da filosofia da práxis constituinte. O trabalho vivo reúne as qualidades de cooperação, criatividade, procriação, comunicação e imaginação; o que condiciona uma ética e uma política. Pesquisar o lugar do trabalho vivo convoca certa antropologia, uma etnografia dos processos produtivos de subjetividades, em suma, uma copesquisa, militante e perspectivista, capaz de ativar pontos de vista e, a partir deles, construir o comum das diferenças e singularidades — uma força política composicional.
A arte é expressão do trabalho vivo. Como tal, vem primeiro de qualquer captura. A captura da arte para finalidades diversas ocorre sempre depois. Estas podem ser o mercado, a linha do partido, o futuro da nação, a didática “revolucionária”, o recesso do museu, a egolatria do Artista ou o narcisismo do colecionador. A captura mais usual, pelo mercado, transforma o trabalho vivo em valor, isto é, submete a turbulência da criação artística, domestica-a, e então confere um valor, coloca-a na circulação de sujeitos e objetos formatados pelo capital.
Mas esse processo vem depois. O antecedente ontológico da captura não deixa de ser a criação viva. Porque o capital não cria nada por si mesmo. Não é autônomo. O comum é quem cria, na contingência de sua historicidade, segundo as formas do viver juntos e viver bem. A imaginação resulta de um excedente decorrente desse viver mais. É fundamental que haja o ‘mais’. Sem surplus, o sujeito acaba fabricado somente por suas necessidades. No capitalismo, governa-se o excedente e paga-se literalmente o mínimo necessário. Ir além do trabalho necessário, exceder-se — das necessidades como conformação a uma natureza determinista e determinada de fora, adstrita às limitações de uma consciência moral, — consiste no primeiro passo para o momento especial da criação. Logo, da afirmação de subjetividade, que então se propaga em novos processos cruzados de individuação e coletivização — singularização.
Para Negri, arte é excesso de vida convertido em imaginação, que se exprime imediatamente na realidade como construção e reinvenção do comum.
A arte não exprime o seu tempo histórico. Não tem a ver com o Espírito do Tempo. Pesquisar-lhe as condições, apesar disso, é necessário para fazer a arte. A relação da arte com a história é a mesma entre o intempestivo e o tempo cronológico. Fura o tempo histórico, estilhaçando tudo o que nele é estático, amortecido, suas regularidades e suas mesmerizações. É ruptura. Se a arte não está perturbando ninguém, tem algo errado. O intempestivo da arte define sua própria medida — é, portanto, desmedida no tempo e espaço existentes, cria-se enquanto medida própria, incomensurável aos valores já existentes, a ser compilados apenas por funcionários — jamais artistas. O artista, — que qualquer um pode ser enquanto composição do trabalho vivo, — vive o próprio tempo além dele. Está no presente mas morde a borda do futuro. Não há telos senão kairós.
O artista não renuncia à contingência. Coloca-se na crise e a vive em sua loucura e exasperação. Das crises, se multiplicam vanguardas, que importam menos por seus programas e diktats, do que pelo desejo de selvagem recriação de todo o existente. A arte não pode dizer para onde vai, mas ela tem que ir — ou não perseverará. Essa ida sem volta é revolucionária nos mesmos termos que o trabalho vivo: quando desborda das necessidades e limites externos. O capital precisa seguir a produtividade da arte, e adaptar-se para continuar subordinando e explorando, — e não o inverso. A arte é primeira.
Qual o diagnóstico das forças produtivas hoje?
Vivemos a abstração derradeira. A capitalização comprime o futuro no presente, o tempo das finanças quando a vida está toda ela, inclusive em sua virtualidade, subsumida. O mercado mil vezes liquefeito do capitalismo globalizado e integrado. A realidade sólida do vazio: o dinheiro sem nenhum peso, acelerado à velocidade da luz. A sucessão incessante de formas fantasmáticas configura a nova condição do ser. Menos a abstração da verdade, do que a verdade do abstrato. Somos o abstrato, a sua mais maravilhosa consumação. O que fazer? Voltar? Se o abstrato cobre como segunda pele, não há mais pele anterior para regressarmos. Nada por debaixo que possa nos redimir. Nenhuma nostalgia do concreto, nenhum elo perdido do valor de uso.
Um critério ético se coloca para a criação, com três possíveis posicionamentos.
Primeiro, o niilismo eufórico, que comemora a enchente do abstrato. Apólogos de tudo que é fluxo e singular, uma mera reiteração acrítica do idêntico em movimento uniforme. É o autômato chinês. O niilista artístico se aninha nas rachaduras e dobras do vazio, e então o parasita. Facilmente vendável e ultimamente cínico. É a arte reduzida a joguete estético, o comum reduzido (e assim mais uma vez drenado) no capital simbólico, seus memes, sua fusão com o tempo histórico. Cronos da conservação.
Segundo, quem o vazio assombra. Teóricos do espetáculo, da indústria cultural ou da sociedade de consumo, — de qualquer Moloch abissal que tenha dominado tudo e lamentam não haver mais o que fazer de substantivo. Escoaram-se para sempre os momentos em que ainda poderíamos acreditar em nossa libertação. Tudo é corrupto. Tudo é profanado. Esses nostálgicos de uma utopia retrógrada. E cúmplices da posição anterior em seu niilismo passivo. Resultam daí o pesadelo, a covardia e a resignação. É a noite insuperável dos catastrofistas. Acuso-lhes sobretudo a falta de imaginação.
“A diferença entre reacionários e revolucionários está em que os primeiros negam a massiva vacuidade ontológica do mundo, enquanto os últimos a afirmam; os primeiros operam na retórica; os últimos, na ontologia. (…) somente estes apreendem o mundo na prática e podem exercer a sua crítica, porque reconhecem que fomos nós que fizemos este mundo, inumano como ele é.” [p. 22]
Terceiro, afirmar o vazio, e da borda do precipício preenchê-lo de novo ser. O comum preenche as formas vazias do capital. É o construtivismo radical do comum, da arte como trabalho vivo, antimercado e antiniilista. Tarefa de uma ontologia materialista: reapropriar-se positivamente da abstração. Construir o ser como ritmologia no silêncio, uma explosão que faz uso das abstrações dando-lhes outro sentido. Só reclama da falta de sentido da vida quem não é forte o suficiente para criá-lo (N.) — tarefa antes coletiva. Eis repetição com diferença: ritmo com estilo.
O abstrato enfim não é prerrogativa do capital. Não há classe sem uma abstração determinada pela rede de antagonismos, produtividades e diferenças reais. Só assim, na abstração potente de que o comum se apropria, o intempestivo rasga um novo ser no tempo-espaço mesmerizado. Essa também é uma ruptura na métrica homogênea do mercado. Se o biopoder opera no abstrato subsumindo a vida, a biopolítica age no outro sentido: é a vida subsumindo o abstrato. É a própria condição da multidão, um modo biopolítico imanente, cooperativo e liberto, que o trabalho vivo corporifica.
O confronto entre as forças organizadas do comum e as do capital se desenvolve sobre o deserto do próprio abstrato. Hoje, só no abstrato, — por onde passam as forças e se inscrevem os agentes no sistema produtivo contemporâneo, — a arte pode agir, e inclusive já age, como trabalho da multidão.