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abril 19, 2012
Por um fio de vida por Angélica de Moraes, Istoé
Por um fio de vida
Matéria de Angélica de Moraes originalmente publicada na seção artes visuais da Istoé em 13 de abril de 2012.
Porto Alegre expõe o sempre surpreendente Arthur Bispo do Rosário, 23 anos depois de o ex-marinheiro ser revelado ao circuito da arte
ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: A POESIA DO FIO/ Santander Cultural, Porto Alegre/ Até 29/4
Para que serve a arte? A pergunta atravessa a história da civilização e já ocupou filósofos, semiólogos e uma enorme gama de intelectuais de todas as épocas. Uma das respostas mais cristalinas, daquelas que satisfazem o coração, e não apenas o intelecto, foi dada por um ex-marinheiro, boxeador e lavador de bondes, que acabou seus dias como interno da Colônia Juliano Moreira, instituição carioca dedicada a doentes mentais crônicos. Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), na solidão da cela, desfiava o uniforme azul e, com esse fio da cor do céu, envolvia os objetos do seu entorno e bordava estandartes, mantos e casacos. Classificava famílias de coisas. Construía pequenos navios embandeirados. Com o Manto da Apresentação, queria ser enterrado, para estar vestido com a história de sua vida ao chegar à presença de Deus.
Do mais fundo desamparo e abandono, Bispo do Rosário extraiu e teceu sua razão de viver, sua classificação detalhada do que entendia ser o mundo e a transcendência dele. Não conhecia Marcel Duchamp, mas, em processo análogo ao do grande artista e teórico da arte do século XX, usou objetos prontos (ready mades, na expressão emblemática para a arte contemporânea). Um conjunto emocionante desses objetos foi reunido na mostra individual em cartaz no mezanino do Santander Cultural de Porto Alegre. Um dos destaques é o Manto da Apresentação. Mesmo o mais cético e agnóstico visitante não deixará de se emocionar com essa bela e livre concentração de bordados, entrelaçamento de fios e signos que configuram a representação da existência de alguém que se manteve humano e capaz de articular desejos e objetivos mesmo diante do diagnóstico de insano. Reunindo fragmentos, de dentro e de fora de si próprio, Bispo do Rosário justificou em profundidade a função da arte.
Uma lástima, porém, que a expografia da mostra tenha cometido pelo menos uma impropriedade grave. Pendurou dezenas de objetos envoltos em fio azul em uma compacta “instalação” que tornou a maior parte deles invisível. Não se pode alegar que faltava espaço expositivo. O Santander Cultural da capital gaúcha oferece uma das maiores superfícies contínuas de parede de que se tem notícia no circuito brasileiro.
Em vez de ocultar a visão da maior parte das obras dessa “instalação” canhestra, os objetos podiam ter sido dispostos ao longo das paredes. Exatamente, aliás, como fez o crítico Frederico Moraes, em 1989, no Parque Lage, na mostra que revelou Bispo do Rosário para o circuito das artes: Registros de Minha Passagem pela Terra, exposição itinerante que foi a Belo Horizonte e São Paulo (MAC-USP) antes de chegar ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em 1990. Seguir essa boa ideia não seria demérito. Seria aprender com um dos críticos que melhor souberam ver e exibir a obra desse artista singular, que já representou o Brasil na Bienal de Veneza, em 1995.