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janeiro 24, 2011
Se vende por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Se vende
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 24 de janeiro de 2011.
Exposição em São Paulo explora a relação conturbada entre artistas e dinheiro
Na escadaria do lado de fora do Paço das Artes, enormes letras anunciam: "se vende". Dentro, começa amanhã uma exposição que tem um preço como título. No caso, os R$ 748.600 captados para financiar esse projeto.
Toda a mostra parece uma alegoria do que se propõe a discutir, a relação entre os artistas e o dinheiro que suas obras movimentam num mercado de cifras e valores cada vez mais hiperbólicos.
Logo na entrada do espaço, um trabalho de Deyson Gilbert força visitantes a olhar um sinal de adição gravado em lâmpadas de halogênio, deixando um rastro na retina de quem vai à mostra.
"Tudo é uma tentativa de exacerbar o capital dentro das artes plásticas", resume Renan Araújo, curador da exposição financiada pelo banco Santander. "Até o texto do catálogo foi revisado por economistas que tentaram mudar palavras para termos econômicos mais técnicos."
Mas nenhum jargão ofusca uma relação que está clara em boa parte dos casos. "Zero Dólar", em que Cildo Meireles altera uma cédula para que perca o valor, colares de notas feitos por Marcelo Cidade e até os rabiscos de Jac Leirner sobre cédulas de cruzeiro denotam a intimidade dos autores com os mandos e desmandos do capital.
Fora alguns clássicos, Lourival Cuquinha acaba de produzir "R$ 102", em que imprime uma nota falsa de R$ 100 sobre uma verdadeira de R$ 2, série vendida agora por esse novo valor de face.
São trabalhos com ressonância ainda maior num país como o Brasil, que já trocou oito vezes de moeda ao longo da história e registra agora expansão vertiginosa no mercado de arte, um aumento de sete vezes no volume negociado nos últimos quatro anos, segundo um levantamento recente do setor.
Em dezembro passado, "Sol sobre Paisagem", de Antônio Bandeira, foi leiloado por R$ 3,5 milhões em São Paulo, maior valor já pago pela obra de um brasileiro.
EBULIÇÃO GLOBAL
Enquanto isso, o mercado internacional dá sinais de recuperação. Uma feira de arte on-line, a primeira do tipo, põe gigantes como as galerias White Cube e Gagosian para negociar obras na esfera virtual até o fim da semana.
No mês que vem, a Sotheby's de Londres tenta voltar a patamares pré-crise vendendo uma obra de Pablo Picasso de 1932 com preço inicial de R$ 45 milhões.
Um retrato da mesma série e da mesma Marie-Therèse alcançou há dois anos a cifra de R$ 177 milhões, recorde absoluto na história dos leilões que, analistas esperam, será desbancado agora.
Paris acaba de montar a primeira bolsa de valores de arte no mundo, em que investidores compram ações de trabalhos negociados, como títulos de grandes empresas, e lucram com as oscilações repentinas do mercado.
Mas longe da algazarra de leilões e pregões, outras obras no Paço das Artes, enclave frondoso na Cidade Universitária paulistana, dão conta de outro aspecto dessa relação com o mercado.
Cartazes do grupo Pino anunciam produtos inúteis que se encaixariam bem em ambientes corporativos, espécie de arsenal de aspones.
Rodrigo Matheus replica esse habitat cinzento em sua obra: mesa e monitores para vigiar o vaivém das bolsas e das bolhas especulativas.
Livro enxerga arte na esfera do entretenimento
Não é de hoje que artistas se relacionam bem ou mal com dinheiro. Artesãos medievais guardavam segredos de produção e pintores das cortes trocavam telas por proteção e prestígio político.
Mas algumas coisas aconteceram entre os toques finais dos afrescos na capela Sistina e a mutação da arte contemporânea em commodity e forte ativo financeiro.
Um livro recém-lançado pela Zahar tenta dar conta desses fatos, ilustrando cada etapa com obras clássicas que juntam grana e estética, do "Zero Dólar" de Cildo Meireles a peças de Duchamp.
"Essa relação entre arte e dinheiro sempre foi central para o significado da arte", diz Paul Mattuck, um dos autores de "Arte & Dinheiro".
"Mas agora isso está mais claro: arte tem a ver com progresso, sucesso e poder, virou uma coisa glamourosa."
Na esteira do glamour, outros ensaios no livro vão direto ao ponto, enxergando a arte contemporânea num contexto semelhante às megaproduções de Hollywood.
"Esse fenômeno deslocou as artes visuais para a indústria do entretenimento", escreve o crítico Paulo Sérgio Duarte em seu ensaio. "Alguns museus viraram grifes e exportam sua marca usando métodos que o mercado conhece como "franchising"."
Num contexto mais histórico, Paul Ardenne compara a preocupação atual com dinheiro ao que foram nus e paisagens no neoclassicismo, um "tema ao gosto".(SM)