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setembro 15, 2010
O multiartista Nuno Ramos testa os limites do excesso na exposição ‘Fruto estranho’ no MAM por Suzana Velasco, O Globo
Matéria de Suzana Velasco originalmente publicada no caderno Cultura do jornal O Globo em 14 de setembro de 2010.
O multiartista Nuno Ramos testa os limites do excesso na exposição ‘Fruto estranho’, que abre hoje no MAM unindo natureza e tecnologia, vida e morte, sujeira e pureza
“VERME”: duas esferas de areia socada que projetam nas paredes vídeos de atores lendo um texto do artista
No alto de um andaime, o artista plástico Nuno Ramos se misturava aos cerca de 20 trabalhadores que inseriam sabão no molde de uma estrutura de seis metros de altura e mais de dez toneladas. Eram dez da manhã da última quarta-feira, e Nuno já estava na quinta operação de preenchimento de sabão. Seriam 33 até o fim do dia, todas exigindo total concentração da equipe, porque o líquido penetrava até nos parafusos dos dois aviões monomotores que o artista levou para o salão monumental do Museu de Arte Moderna (MAM). Cada um deles está embrenhado num tronco de árvore sem folhas, um como se fosse cair de vez, o outro como se ainda tentasse levantar voo. No fim de semana, já com o sabão endurecido, os moldes começaram a ser retirados para que a obra “Fruto estranho” seja revelada na exposição de mesmo nome, com curadoria de Vanda Klabin, que será inaugurada hoje, às 19h.
Após a quinta inserção de sabão, Nuno desceu e retirou a máscara cirúrgica e o plástico que envolvia seus braços, já cheios de queimaduras causadas pela soda cáustica, material corrosivo que dá origem a ao líquido que é símbolo de limpeza. Com as calças imundas, o “operário” deu lugar ao artista reflexivo, cujas obras têm origem em referências da literatura, da música — campos em que também atua com maestria —, do cinema e da própria arte. Ainda assim, o embate com a matéria é fundamental em seu trabalho, como se vê ainda nas duas outras obras da mostra. A também inédita “Verme” é formada por duas esferas de areia socada das quais são projetados nas paredes dois vídeos em que dois atores se intercalam na leitura do texto “Verme”, escrito pelo artista. Já em “Monólogo para um cachorro morto”, um texto é gravado na face interna de cinco pares de lápides de mármore. Numa delas, há um vídeo de um cachorro morto e o som do monólogo escrito por Nuno.
— Num primeiro momento da minha obra, os materiais se misturaram. Depois, eles se transformaram em códigos culturais, viraram literatura, poemas. Há uma cópula entre a matéria e o sentido — explica o artista plástico e premiado escritor.
Nuno cria diversas cópulas na mostra, até chegar à mais explícita, num vídeo pornô que finaliza as projeções de “Verme”. Em “Fruto estranho”, o artista une as ideias de natureza e tecnologia, vida e morte, sujeira e pureza. Soda cáustica pinga de duas ampolas acopladas às asas de cada um dos aviões, caindo em dois contrabaixos abertos e repletos de banha, que permanecerá sempre quente. A ideia surgiu depois que Nuno leu um poema de Pushkin sobre uma árvore que pinga veneno.
— A imagem de uma árvore coberta numa gordura é meio mística, e o avião é o oposto, algo muito do século XX. Os materiais também copulam quimicamente no sabão, que é feito de um líquido muito violento. Quando faço sabão, a sensação é que há uma reação de alergia que une os elementos — diz ele, atestando o caráter trágico da escultura. — Para mim, o lance não é a morte, mas a reconfiguração que a morte faz. Não é o desastre, mas a transformação.
Para reconfigurar seu desastre, o artista precisou de um engenheiro calculista, que garantiu que o MAM ficaria no lugar depois que se distribuíssem as cerca de 35 toneladas das obras pelos três mil metros quadrados do museu. Nuno conseguiu os troncos de flamboyant na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba. Comprou um dos aviões perto do aeroporto de Viracopos, em Campinas, e o outro em São Paulo. Os dois terão alguns pedaços aparecendo em meio à cobertura de sabão.
— Sobra uma energia do fato de os aviões serem de verdade — diz ele, admitindo ter tido receio durante a criação. — Fiquei com uma certa vergonha, pensando se seria muito excessivo. Tenho um problema com o limite. A falta de limite do Orson Welles, por exemplo, fazia com que ele não executasse os projetos. No meu caso, eu saio do limite e fico me matando para voltar para ele. Vou ficando culpado e penso: onde estou me enfiando?
A obra “Fruto estranho” é composta ainda de uma cena do filme “A fonte da donzela” (1959), de Ingmar Bergman, em que o personagem de Max Von Sidow balança uma árvore até derrubá-la. O som será a voz de Billie Holiday cantando “Strange fruit” (“Fruto estranho”), composta por Abel Meeropol após um linchamento de negros em Indiana, em 1936.
No salão monumental, os visitantes também poderão ouvir ecos dos sons vindos do mezanino, com as vozes dos dois atores “anunciando a visão do verme”, como diz Nuno. O espectador nunca conseguirá ver os vídeos ao mesmo tempo.
— É como se eles tentassem saber se são um ou dois, se foram cortados ao meio. Buscam uma unidade que não volta — diz Nuno, que se inspirou em textos de William Blake sobre anjos e vermes.