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junho 16, 2010
Arte enferma por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 15 de junho de 2010
Dupla de alemães interna artistas, galeristas, curadores e críticos em clínica de reabilitação em Berlim
Arte tem cheiro de cocaína. Num mundo de festas encharcadas de champanhe, da velocidade do mercado que acompanha a voracidade do vício, dois alemães decidiram levar artistas, curadores, críticos e galeristas para a clínica de reabilitação.
Benjamin Blanke e Claudia Kapp, também artistas, fizeram dos colegas cobaias para entender o papel das drogas nas artes visuais.
Em vez de mostrar suas obras, pediram ao KW, centro de arte contemporânea em Berlim, que bancasse a desintoxicação de personalidades do meio artístico numa clínica de reabilitação perto da capital alemã.
No meio de uma floresta, o sanatório Havelhoehe recebe até 291 pacientes, tem duas alas de desintoxicação e usa pintura, escultura e também ginástica nos tratamentos.
São adeptos da chamada medicina holística, ou antroposófica, que tenta dar atenção equivalente a aspectos físicos e mentais do paciente.
Internos do projeto, que passaram cerca de dez dias na clínica, foram convocados por e-mail. O convite tinha só uma imagem, a de uma porta fechada, usada pelos artistas para divulgar o projeto.
"Uma pessoa já disse que era uma reflexão sobre estética", resume Claudia Kapp à Folha. "Não diria que é uma performance, mas um trabalho mais conceitual, de estética relacional iconoclasta."
Jargões à parte, a realidade dos mais de 200 inscritos no projeto passou longe dessas dimensões filosóficas.
"Desde que cheguei, me dão doses de um pó branco três vezes ao dia para reduzir a ansiedade", escreveu um crítico de arte internado na clínica. "É como cocaína ao contrário, precisaria cheirar toneladas para sentir qualquer sensação de alívio."
Mais do que alívio, uma pausa. Na visão dos artistas, as drogas nesse meio não têm mais a ver com ampliar horizontes da percepção, como os anos 60 e 70 popularizaram o uso do LSD e afins.
"É menos hedonista", diz Kapp. "Está mais ligado à competição: aumentar, melhorar, acelerar a produção."
Tanto que, além dos artistas que se inscreveram, maior alvo do programa, críticos e galeristas insones com preços nas alturas e a rotina pesada dos vernissages correram para a clínica.
VÍCIOS REAIS
"Alguns deles não eram viciados em nada", conta Kapp. "Queriam só se desintoxicar do mundo da arte."
Esses que buscavam uma limpeza ideológica ficaram fora da clínica, onde médicos de verdade, além de psicanalistas e psiquiatras, trataram seus vícios reais.
"À noite, uma toalha encharcada de chá medicinal é aplicada contra meu fígado para absorver as toxinas", escreveu um crítico alcoólatra internado na clínica.
Ele adianta o relato descrevendo as esculturas de argila que fez para passar o tempo. Enquanto seus dotes artísticos permitiram fazer só umas vasilhas, uma colega esculpiu até um busto de Hitler.
"Conhecemos artistas, amigos pessoais, que estão sofrendo muito com isso", conta Kapp. "É horrível."
Ela vê nesse ponto uma relação cada vez mais estreita entre arte e o mundo das celebridades, "estrelas do rock conhecidas pelos excessos".
Muitos dos inscritos na reabilitação, aliás, achavam que teriam seus trabalhos expostos em Berlim como contrapartida ao tratamento.
"Achavam que ficariam famosos, mas o projeto é anônimo", diz Kapp. "Tudo tem cada vez menos a ver com arte, há um grande vazio."